Ensaio Rodrigo Alonso, 09/2006
Andrés Denegri, da distância à proximidade
O universo audiovisual de Andrés Denegri é construído, de um modo geral, a partir do encontro de elementos opostos: por um lado, nos deparamos com imagens distantes, estranhas, esquivas e, por outro, sentimos uma aproximação íntima e pessoal com essas imagens. Em cada uma de suas obras, a tensão criada a partir dessa oposição se resolve de diferentes maneiras. Às vezes, a distância se transforma em voyeurismo e a intimidade, em confissão. O estranhamento às vezes cai em um certo hermetismo, inclusive quando são trabalhadas situações cotidianas ou dados autobiográficos do artista. Seu gosto pelos recortes e detalhes - que escapam à totalidade do campo visual - costuma ter a contrapartida na origem pessoal do material audiovisual trabalhado, na tradução da vida privada do próprio artista.
Esse modo de composição manifesta-se desde seus primeiros trabalhos. Yo estoy aquí, colgado de la ventana (1997), por exemplo, reúne imagens de uma garota que, sem perceber, é observada à distância - provavelmente de uma janela, como sugere o título -, com um poema de amor que se desenrola através de uma simples animação. As imagens da garota ocupam pequenas partes da tela, porém, o enquadramento evidencia uma distância notável entre ela e a câmera que a registra. Essas imagens parecem ser o resultado de uma situação de espionagem, de um autêntico ato de voyeurismo que tem como cúmplice o espectador. Por outro lado, o poema expressa um alto grau de intimidade, não apenas pelo conteúdo, mas principalmente por ser manuscrito e em primeira pessoa. A distância e a proximidade se conjugam nesta primeira obra, e serão a resposta para toda a obra do artista.
III Momentos (1998) baseia-se, novamente, numa paciente tarefa de voyeurismo. A obra apresenta três registros de pessoas anônimas, capturadas através das janelas abertas de seus lares. Aqui, a distância das pessoas observadas manifesta-se na ampliação da trama eletrônica que praticamente dissolve as figuras. O uso exagerado do zoom transforma a superfície da imagem numa retícula vibrante e luminosa. A ausência de som concentra a atenção, induzindo a uma percepção contemplativa, meditativa e intensa. A escassez de dados sobre o que acontece aumenta o interesse, multiplicando as situações possíveis. Esse interesse surge também do estranhamento de ações cotidianas e banais, que se revelam lentamente, criando um suspense ausente da realidade. O enquadramento extrai uma narrativa que não está lá, constrói um narrador/olho-de-câmera presente e ativo, e sugere, definitivamente, uma reflexão sobre a produtividade do ato de olhar.
Uma das grandes qualidades da obra de Andrés Denegri é sua capacidade de gerar um relato a partir de elementos mínimos. Cuando vuelvas vamos a ir a comer a Cantón (2001) é talvez sua expressão mais bem realizada. O vídeo toma como base um pequeno grupo de fotografias, re-enquadradas e revistas obsessivamente, mas sem jamais se revelar por completo. Assim, o suporte estático converte-se em dinâmico, e seu lacônico mimetismo dá vida a uma narração. O som é fundamental nesta obra: trata-se da voz do artista que sussurra palavras a uma pessoa, que supomos presente nas fotografias, ainda que impossível de identificar. O relato oral é profundamente íntimo e emotivo; é uma confissão de amor, fala de encontros e despedidas. Mesmo que nunca se ancore nas imagens, a necessidade de atribuir um sentido à obra gera a conexão sonora e visual. A convenção cinematográfica que une imagem e som funciona como garantia única de uma possível relação. Uma vez não admitida, a obra se rompe em fragmentos irreconciliáveis.
Denegri gosta de forçar essa relação entre imagem e som, principalmente em situações onde a associação narrativa parece evidente. Se observarmos seus vídeos com atenção, perceberemos que estes partem com freqüência de um rompimento, em geral não disfarçado, entre o som e a imagem. Na maioria dos casos, as vozes em off que conduzem os relatos encontram-se num primeiro plano, muito próximo, contrastando com imagens geralmente longínquas, disfarçadas ou fora de foco. É estabelecido, desta maneira, uma espécie de efeito Kuleshov entre os registros sonoro e visual: a proximidade produz um sentido que parecia ausente nas partes isoladas. Como conseqüência, imagem e som gozam de uma certa autonomia que lhes permite uma relação de forma não unívoca.
Podemos encontrar esse mesmo procedimento em Uyuni (2005). Aqui, as imagens mostram ruas desertas de uma pequena cidade sem identificação, mas que supomos ser a cidade boliviana que dá título ao vídeo. As tomadas são longínquas, borradas e com um tremor de câmera quase permanente, ao que se soma um efeito de defasagem, também contínuo. Sobre as imagens, um casal fala em off, num plano sonoro próximo. Trata-se de viajantes instalados em Uyuni, que discutem suas diferentes percepções acerca do lugar: ele parece estar tranqüilo ali; ela, entediada. A discussão constrói uma história sobre algumas imagens tratadas (originalmente registradas em Super 8), porém de um ponto de vista plástico. A convenção relaciona imediatamente as palavras dos viajantes com o lugar, porém, o casal fala de um hotel, de restaurantes e militares que nunca vemos. A conexão entre palavras e imagens, mesmo que funcione do ponto de vista narrativo, não está estritamente assegurada na construção sintática da obra.
Essa atitude sugere, nas entrelinhas, o suposto caráter indicial do vídeo. Segundo Rosalind Krauss, o vídeo compartilha com a fotografia o fato de ser um índice; isso significa que depende de uma realidade a qual se refere, por proximidade. Denegri questiona essa declarada dependência postulando, em contrapartida, um princípio de incerteza, ao obscurecer o vínculo entre o registro eletrônico e a realidade sobre a qual opera. Esse procedimento se repete num grupo de obras de cunho documental. Inclusive quando recorre ao registro direto, o artista consegue desarticular a relação imediata entre o que vemos e o fato documentado, geralmente através de pontos de vista forçados ou pouco usuais. O vídeo Luján (2004) é paradigmático nesse sentido. Enquadramentos inusitados e tomadas excessivamente longas desviam a atenção do acontecimento registrado - uma procissão religiosa - para o próprio acontecer do vídeo. Boa parte das ações importantes tem lugar fora do alcance da câmera; como espectadores, só vemos pistas que nos obrigam a completar o que a imagem é incapaz de transmitir na sua totalidade. Aqui manifesta-se outro dos elementos-chave da linguagem formal dos vídeos de Andrés Denegri: seu eterno retorno à metonímia, sua predileção por construir o relato audiovisual a partir de fragmentos que remetem a um todo ausente, que o espectador deve completar.
Denegri exige muito do seu público. Não só pede que preencha as lacunas voluntárias das suas histórias, como, às vezes, força os níveis de informação, exigindo sua ativa participação na organização discursiva. Aqui, os procedimentos centrais são a acumulação e a sobreposição. Explorando ao máximo os diferentes canais de informação do vídeo (imagens, sons, textos, composição visual, intervenção gráfica, efeitos de edição, etc.), o artista oferece ao espectador uma estrutura audiovisual complexa, rica em múltiplas leituras, que não se cristaliza num relato unificado.
É a partir dessa perspectiva que Denegri aborda seu documentário sobre o artista Oscar Bony (Acerca de Bony, 2005), uma figura-chave da arte argentina da década de 1960, com quem conviveu alguns anos antes de sua morte. À maneira de Godard em La Chinoise ou Histoire(s) du Cinéma, Denegri sobrepõe diferentes registros de imagens, sons e textos, incentivando os choques, as redundâncias, as contradições. O resultado é uma espécie de palimpsesto no qual convivem relatos biográficos e autobiográficos, reflexões estéticas e filosóficas, opiniões e conceitos, veiculados através de uma colagem de situações cotidianas, urbanas, familiares e de trabalho. Uma complexidade compositiva que ecoa a complexidade da vida de Bony, um artista polêmico e controverso, às vezes marginalizado, mas, sem dúvida, fundamental.
Nos últimos anos, Andrés Denegri voltou-se para a produção de um grupo de obras totalmente autobiográficas. Partindo de fotografias e filmes caseiros, o artista se entregou à tarefa de reconstruir sua própria vida, marcada por uma ambígua relação com seu pai e seu crescimento durante a última ditadura militar argentina. As duas obras produzidas até agora (o vídeo El ahogo e a videoinstalação Un martes, ambos de 2006) são algo herméticas, mas conseguem transmitir um efeito perturbador. Como em toda sua produção, o sentido definitivo fica por conta do espectador. Aqui, como sempre, recorre à sua imaginação, mas também à sua capacidade de estruturar dados que, à primeira vista, parecem desconexos, ou até irrelevantes.
Apesar da sua juventude, Andrés Denegri é um dos autores mais conseqüentes e pessoais da videoarte argentina. Transita com fluidez entre a ficção e o documentário, o relato biográfico e a experimentação. Sua obra demonstra um conhecimento profundo do meio audiovisual, de suas capacidades estéticas e de suas técnicas de construção de sentido. Mas, fundamentalmente, Denegri encontra no vídeo um meio de aproximação das pessoas e do mundo, uma ponte para a interioridade e os afetos, capaz de transformar a distância midiática em proximidade emocional.