Entrevista Eduardo de Jesus, 09/2006
A questão do espaço aparece como um direcionamento forte na construção de trabalhos como Cuando vuelvas vamos a ir a comer a Cantón, III Momentos e Yo estoy aquí, colgado de la ventana. Existe nas suas obras a intenção de pensar questões típicas do espaço contemporâneo?
Esses vídeos não tiveram como primeira intenção refletir sobre a problemática do espaço contemporâneo, esta nunca foi uma abordagem anterior, tendo como perspectiva o vídeo. Porém, é uma questão que me interessa particularmente, por isso é natural que se construa como um dos assuntos tratados na maioria dos meus trabalhos. Acredito que os meus vídeos enfrentam antes o tema da cidade, talvez um problema mais moderno que contemporâneo. Isso também aparece como uma idéia forte em Uyuni e é a base de Duchamp: Buenos Aires no existe, onde é construída uma cidade atemporal no olhar criador de Marcel Duchamp, propondo um vínculo direto entre a produção artística do francês nos meses em que viveu em Buenos Aires e as características urbanas dessa cidade.
As grandes cidades me parecem muito ricas esteticamente, especialmente à noite. No texto do catálogo da mostra Sortilegio, eu explicava que, quando criança, me sentava na escuridão e olhava um aquário por horas e como esse aquário foi substituído por uma televisão e depois por uma janela, de onde via Buenos Aires: “...À minha frente tenho dezenas de janelas. O retângulo iluminado recorta-se num fundo neutro. Riem, não posso escutá-los. A sensação é semelhante à da infância. Eles sabem que estou no escuro. Percebem que estou em cada janela em frente à deles. Inclusive posso me ver na penumbra vizinha. Encaro Buenos Aires como uma grande videoinstalação, onde os monitores estão repletos de peixes. Janela-televisão. Janela-aquário. Indiferente”*. Este texto acompanhava Ventanas, uma versão de III Momentos, uma videoinstalação que justamente foi pensada para ser projetada sobre as paredes laterais dos edifícios, que geralmente destinavam-se a publicidade, criando um vínculo entre imagens cotidianas, em alguns casos bastante íntimas, com o espaço público.
III Momentos pode tratar-se de breves cenas da vida de outros a partir das quais podemos gerar um mundo. Podemos, nas cidades, encontrar-nos rodeados de ficções em permanente construção. Só vemos uma cena, o resto é “desenquadre” (Bonitzer), se o entendemos assim, potencialmente isso nos transforma de observadores em criadores. É aí que esse trabalho atravessa uma questão fundamental do espaço urbano, estamos sempre perto do outro, podemos vê-lo. Cuando vuelvas vamos a ir a comer a Cantón é uma carta de amor. O espaço tratado nele é a distância. Ela está longe, ele sente falta dela. Tenta-se uma aproximação no uso da memória através das quatro fotos com as quais o vídeo foi feito. O espaço se fragmenta, mas também, o corpo: é uma recordação reconstruindo sensações. E o referencial espacial concreto é Cantón, um restaurante de comida típica chinesa, típico de Buenos Aires.
Yo estoy aquí, colgado de la ventana foi meu primeiro vídeo e devo confessar que a fragmentação e o barroquismo nele talvez tenham muito a ver com o deslumbramento provocado nos anos 1990 pelo descobrimento do Adobe Première. Isso somado a uma importante influência não muito filtrada de alguns grandes videomakers como Larcher, Toti ou Greenaway. Eu entrava em êxtase com esses vídeos, e talvez entendesse que isso estivesse relacionado à manipulação excessiva da imagem. De todas as formas Yo estoy aquí...consegue construir uma certa ficção que atravessa a questão das distâncias entre os corpos no espaço urbano. Ele se desfaz de desejo por ela, está tão perto que pode ver como se despe ao chegar em casa, inclusive é testemunha do momento em que tem relações sexuais com outro. Ela vive na janela da frente, porém é inalcançável.
Como você chegou à percepção do espaço que está presente em Uyuni? A obra nasceu vídeo ou instalação?
Tinha estado viajando pelo norte da Argentina e grande parte da Bolívia, durante todo esse percurso não tirei a câmera a não ser para guardá-la entre as coisas que levava na mochila quando ia de uma cidade à outra. Para a cidade de Uyuni cheguei já planejando a volta, só para passar uma noite e pegar o trem que me levaria até Villazón. Mas o trem nunca saiu, uns mineiros, como protesto, cortaram as vias. Toda manhã caminhava até a estação onde me informavam se o trem sairia aquela tarde ou no dia seguinte. Mas o trem nunca saiu, então depois de uns dias tive que deixar Uyuni em uma caminhonete, cheia de gente e de coisas, que prometia chegar, por estrada nenhuma, até outra cidade de onde eu poderia continuar minha viagem.
Durante os cinco ou seis dias em que estive nessa cidade, caminhei. Não entendia a lógica do lugar: ruas desproporcionalmente compridas onde não havia tráfego algum. Só superei o juízo sobre a funcionalidade do espaço enquadrando essas avenidas, convertendo-as em paisagens. Então, quando se transformou em imagem, a incoerência do espaço de Uyuni mostrou-se esteticamente valiosa. Dediquei algumas tardes a registrar as esquinas de Uyuni, imagens que, ao término da viagem, ficaram guardadas por anos, até que eu escrevi um texto ficcional que relata um diálogo entre um casal que passou por Uyuni. Cada um constrói uma cidade totalmente diferente. Os formatos de imagens em movimento correspondem a dois pontos de vista: ele e ela, vídeo e Super 8. Na imagem fílmica e na eletrônica tenta-se gerar o mesmo enquadramento, mas é impossível.
Incompatibilidades de proporção de quadro, velocidade de duração, profundidade focal geram, a partir de um mesmo espaço, representações díspares. Essas duas imagens convivem durante todo o vídeo, variando seus níveis de opacidade. Em alguns momentos predomina o cinema, em outros, o vídeo, e existem casos em que é difícil identificar na imagem o que é próprio de cada suporte. Assim se constrói o espaço com um olhar múltiplo; é ao mesmo tempo um e muitos.
Uyuni nasceu como vídeo, logo a possibilidade de voltá-lo para o espaço potencializou a proposta da leitura múltipla que constrói o lugar. A técnica de trabalhar imagem fílmica e eletrônica para produzir uma mesma imagem duplica-se em duas telas. O que antes se podia entender como o olhar dele ou dela, agora nos diz que cada olhar é diferente em si. Propõe-se que um espaço, como texto, não é único, sequer para o mesmo observador.
No catálogo da sua exposição com Gabriela Golder e Silvia Rivas em Buenos Aires, você fala do espaço como ideologia. Essa idéia aparece mais em Uyuni, a instalação, ou no vídeo? Ou trata-se de uma característica inerente ao seu modo de registrar as imagens?
Entender a ideologia como um espaço que os homens habitam e de onde pensam, e não como algo pensado por eles, é um modelo proposto por Paul Ricoeur, autor em que cheguei através de um texto de Graciela Fernandes Toledo. É interessante relacionar essa idéia com escritos de Frederic Jameson, onde ele diz que: “O espaço - o hiperespaço pós-moderno - conseguiu transcender finalmente as capacidades do corpo humano individual para situar-se, organizar perspectivamente seu entorno imediato e localizar cognitivamente sua posição em um modelo externo suscetível de ser mapeado”. Essa impossibilidade de se localizar me impede de ter consciência da minha ideologia; não sei a partir de onde penso. Assim, é fácil entender o capitalismo como a natureza do ser humano, já que é a origem da turbulência que impede a geração de referências espaciais, impondo-se como o único espaço possível.
O lugar de onde falo ou penso é também a partir de onde vejo e crio uma imagem. Para mim, como realizador, ter isso presente é fundamental, pelo que digo, pelo que faço com a imagem do outro. Estudei cinema, me ensinaram como se faz um filme, foi doloroso o processo de enfrentar esse modelo. Primeiro, entendi que não havia uma linguagem cinematográfica, mas sim um modelo de produção. Depois, compreendi que esse modelo não era como fazer e sim de onde fazer: o modelo industrial de produção cinematográfica é uma situação ideológica. Prefiro me manter longe dela.
Em Uyuni, a questão do espaço está presente como temática; de onde se mostra esse espaço a cada um dos protagonistas, o que está antes da imagem, é a sua ideologia. Ver a partir de diferentes lugares supõe ver diferentes coisas, isso acontece com os personagens de Uyuni, o que é gerado pelo seu olhar não é a sua ideologia, senão o resultado dela.
Tanto no seu trabalho mais recente El ahogo, como em outros, como Cuando vuelvas vamos a ir a comer a Cantón, a fotografia serve de ponto de partida para a construção da imagem em movimento. Como você vê esse cruzamento entre meios de captação de imagens em seu trabalho?
Uso a fotografia para refletir sobre o passado. A fotografia tem a ver com a memória de uma maneira muito diferente da do vídeo, muito mais contundente e profunda. É uma marca cultural que parece sua natureza. “A fotografia é uma evidência extrema, carregada, como se caricaturizasse não a figura que ela representa (é exatamente o contrário), senão sua própria existência. A imagem, diz a fenomenologia, é o nada do objeto. Agora, bem, na fotografia, o que estabeleço não é somente a ausência do objeto; é também, através do mesmo movimento, a igualdade com a ausência, que esse objeto tenha existido e que tenha estado ali, onde eu o vejo.”**
Em El ahogo trabalho com fotos e Super 8; esse último formato, mais que memória, é memória dos anos 1970. Isso é fundamental para o tema tratado, porque ao estar relacionado com as fotos, estas, além de serem recordações, tomam o valor de documento histórico. Meus vídeos têm um forte componente narrativo e cada uma dessas informações dadas pelo suporte é parte constitutiva de um possível relato. Em Cuando vuelvas...acontece algo semelhante, como explicava antes, as imagens, as fotografias, são recordações atualizadas.
Acredito que esse é o valor que encontro na utilização de diferentes suportes, elementos culturais que entendemos como próprios de cada tecnologia que, sem serem as únicas possibilidades que existem na combinação de diferentes meios, me servem para dar pontos de apoio onde construir um relato absolutamente atomizado.
Poemas, textos plotados, falas que impõem o ritmo da edição. Qual é a importância do elemento texto na sua obra?
O texto é fundamental em alguns dos meus trabalhos, mas sempre num vínculo íntimo com a imagem; procuro que o trabalho terminado seja plenamente audiovisual, sem preponderância do elemento texto. Muitas vezes o texto cumpre a função da música. Nas propostas com uma estrutura totalmente livre, muitas vezes a música, como o texto, resolve o grande desafio de ir adiante, de avançar. Talvez por isso nunca use música nos meus vídeos, a música é uma expressão artística muito forte que, em muitos casos, submete a imagem, convertendo-se num esqueleto invisível que sustenta todo o trabalho, e é o único elemento que sustenta o avançar. Minha intenção é ter essa problemática muito presente quando trabalho nos meus vídeos. Em Cuando vuelvas...a imagem segue o ritmo da voz, porém acredito que se fundem em uma mesma experiência. O que fala, relembra, e a imagem se aproxima de sensações táteis relacionadas a essa memória, essa imagem háptica (Deleuze), adquirindo um valor que constrói junto com o texto, no mesmo nível, demandando uma audiovisão (Chion). Isso também acontece em Uyuni, a imagem diz tanto ou mais que a palavra, a imagem fala daqueles que escutamos falar, e o faz em nível reflexivo. Em nenhum caso o texto precede a imagem. Todos os meus trabalhos começam a partir da imagem, esse é o primeiro passo, o encontro com algum espaço (Uyuni), alguns corpos (III Momentos), uma recordação (Cuando vuelvas...), um gesto criador (Instante Bony), uma sensação física relacionada a uma história pessoal (El ahogo) que se transforma em imagem; em alguns casos, a partir dessas imagens surge, sempre depois, um texto.
Realizadores como Ivan Marino, Mariela Yeregui, Gabriela Golder, Silvia Rivas, Jorge La Ferla, Gustavo Galuppo, Marcello Mercado e muitos outros constituem uma potente cena de arte eletrônica na Argentina. Como curador e diretor de um centro de fomento, como você enxerga essa produção? Quais são suas linhas de força e suas características específicas?
Acredito que a produção argentina de vídeo é extremamente heterogênea. Essa diversidade, que vejo como algo muito positivo, impede-nos de fazer juízos generalizados. Deveríamos tratar esse assunto por casos e para isso precisaríamos de muito mais espaço do que estas linhas. Talvez, devesse aproveitar este lugar para esclarecer que, apesar de encontrar alguns realizadores com propostas muito interessantes, não existe uma grande produção sólida. Existem muitos vídeos, mas poucos se apresentam como resultado de um processo de criação reflexivo e consistente. A cena jovem é a mais deficiente, ao que parece. Eles não conseguem processar a MTV, e a estética “Flash” os tira de lado. A maioria dos alunos chega à universidade totalmente indefesa frente à imagem, é integralmente vulnerável ao discurso midiático corporativo, e não tem capacidade de gerar nenhum nível de enfrentamento crítico em relação a ele. Depois de um tempo de faculdade essa situação não varia muito. Dez anos de "menemismo" deixaram sua marca [Denegri se refere aos dois governos do presidente argentino Carlos Menem]. E isso se reflete nos trabalhos. Acredito que, na Argentina, devemos ficar muito atentos a esse fato alarmante e trabalhar para formar criadores livres antes de empregados úteis.
* Denegri, Andrés IN Rizzo, Patrícia (curadora), Sortilegio. Buenos Aires: Fondo Nacional de las Artes, 2001.
** Barthes, Roland, “La câmara Lúcida”. Buenos Aires: Paidos, 2003.