Biografia comentada Eduardo de Jesus, 10/2006
Em sua trajetória, Fernanda Goulart parece ir cada vez mais fundo nos temas e nas práticas mais freqüentes em suas obras: o corpo, a intimidade, o universo feminino, os modos de ocupar os espaços, a apropriação de imagens da arte, a tridimensionalização da imagem gráfica. Graduada em artes plásticas pela Escola de Belas Artes e mestre em comunicação social pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, ambas da UFMG, a artista investiga as formas de ocupar o espaço e de dar outras dimensões ao que é gráfico desde a primeira exposição, Carne de segunda (2000), no Centro Cultural da UFMG. Na instalação (In)verso, plotters de imagens retiradas do universo da arte são sobrepostos a palavras que se espalham pelo chão e pelas paredes do espaço expositivo.
Dois anos mais tarde, realiza sua primeira exposição individual, Nada que você não queira (2002), na galeria do Espaço Cultural Cemig, em Belo Horizonte. A exposição desdobrava-se em um labirinto de outdoors, adesivos espelhados, plotagens em papel (com figuras apropriadas das pinturas clássicas de Vermeer em dimensões humanas), frases em adesivo de vinil e uma silhueta de madeira com dobradiças. A exposição avança na pesquisa sobre a expansão do gráfico no espaço. No labirinto, o visitante é confrontado tanto com sua própria imagem quanto com as figuras de Vermeer. A ocupação do espaço expositivo e os modos de significação derivados desse confronto entre o visitante e as imagens no percurso ampliam os sentidos da obra e aprofundam a pesquisa da artista.
No mesmo ano, Fernanda ganha o primeiro prêmio do VIII Salão Victor Meirelles, em Florianópolis, com a obra-ação Para entender a arte (os mais importantes quadros do mundo analisados e minuciosamente explicados). Plotagem digital de imagens de um quadro renascentista, sobreposta com frases adesivadas que ironizavam o circuito da arte e as formas regulares de patrocínio e apoio cultural. A obra foi inscrita sob o pseudônimo “Anônimo”; no campo “currículo” da ficha, a artista escreveu: “Anônimo já participou de algumas exposições, mas não acha que isso deva interferir no julgamento do trabalho apresentado”. A não-performance foi levada às últimas conseqüências: a autora absteve-se de se manifestar mesmo quando a obra foi escolhida pelo júri para receber o primeiro prêmio do Salão.
À declaração de princípios políticos, segue-se a descoberta do audiovisual e da plasticidade da imagem eletrônica. Derivado da instalação homônima, Alugo-me (2004) dá prosseguimento, já nesse novo campo, às pesquisas formais e conceituais da artista. As indagações sobre a apropriação do espaço e a tridimensionalização das imagens ganham movimento. Selecionado para a mostra Novos Vetores do 15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil (2005), a obra percorre casas vazias, disponíveis para aluguel, ao som de programas populares de rádio que aproximam pessoas solitárias em busca de novos relacionamentos amorosos.
A instalação que abrigou a obra originalmente era composta por um pequeno monitor de vídeo e por uma fotografia. O áudio, deliberadamente baixo, só era audível para quem se aproximasse do monitor - o que fazia as pessoas se sentirem como se estivessem usando um pequeno rádio de pilhas, desses que precisávamos colar ao ouvido para ouvir. Exibido em looping, na instalação, ou como single-channel, o vídeo tem o mesmo efeito: escancarar a incômoda metáfora que aproxima o vazio das casas para alugar do vazio dos corações que se candidatam ao próximo inquilino.
O vazio e a solidão abordados em Alugo-me são potencializados na obra seguinte, Quem escuta o meu sim (2005). A artista retorna ao ambiente do audiovisual para mais uma vez recriar a intimidade, mas agora constrói, com imagens da memória, uma certa cronologia composta por infância, casamento e separação. A obra é uma videoinstalação composta por três monitores emoldurados e embutidos em uma parede falsa, revestida com papel de parede. No primeiro monitor, antigas imagens em Super 8 mostram crianças brincando repetidamente. No segundo, vê-se uma cena de casamento na qual um estranho juramento, feito pela noiva, sobrepõe-se em lettering à imagem: “Talvez até eu já vivesse em algum corpo emprestado, esperando só por você pra reunir meus pedaços”. No terceiro monitor, imagens apropriadas de uma edição do reality show Big Brother Brasil mostram uma concorrente que, em um momento desesperado de solidão, abraça um boneco em forma de homem, mas sem braços.
A obra fala de amor, memória, relações familiares - e confirma a pungência que caracteriza a fase da obra de Fernanda inaugurada por Alugo-me.