Ensaio Yana Tamayo, 10/2006
FERDINAND: "Por que esse olhar triste?"
MARIANNE: "Porque você me diz palavras, e eu te olho com sentimentos."
FERDINAND: “Não é possível então conversar! Você nunca tem idéias, só sentimentos!”
MARIANNE: “Não é verdade. Há idéias nos sentimentos.”
Diálogo entre os personagens de Anna Karina e Jean-Paul Belmondo em Pierrot le fou [O demônio das onze horas], filme de Jean-Luc Godard, 1965.
Forma-se a primeira imagem no vídeo: uma mão que abre uma porta; a imagem que se vê é um ponto de vista, a câmera subjetiva do olhar de alguém que, com uma das mãos, segura a câmera e, com a outra, abre a porta e entra na sala de uma casa vazia, onde se pode ver, pelo lado de dentro do vidro das janelas, um cartaz amarelo em que se lê, invertido, “aluga-se”. Inicia-se, quase que simultaneamente, o som que faz ecoar no espaço uma locução feminina de rádio apresentando o início de um programa de aconselhamento amoroso.
Em Alugo-me, vídeo exibido na mostra Novos Vetores durante o Festival Videobrasil de 2005, Fernanda Goulart visita os cômodos de casas vazias e disponíveis para aluguel enquanto se constrói, através da união e contraponto entre imagem e som, uma narrativa que preenche pouco a pouco os espaços vazios, os cômodos abandonados de cada casa visitada, com músicas e depoimentos; histórias de experiências cotidianas de solidão, desejos e enganos, narradas por ouvintes de um programa de rádio vespertino.
O vídeo é a primeira incursão da artista no campo do audiovisual, entretanto, consegue encontrar seu próprio tom, além de revelar bastante sobre procedimentos já utilizados por Fernanda em trabalhos anteriores. Seu interesse pela apropriação crítica de imagens advindas tanto do universo erudito da arte quanto do campo da publicidade e dos meios de comunicação de massa, aliado às constantes referências à vida privada, buscam produzir uma interface entre os elementos que compõem a vida cotidiana e uma experiência estética em que o espectador se reconheça através de clichês e de uma retórica sentimental sedutora.
Seu discurso se constrói de forma sutil e ambígua, de maneira que a obviedade da expectativa gerada através dos índices dados pela artista não se concretiza, mesmo quando esperada. Ocorre, sim, a constatação da extrema ambigüidade que rege as relações sociais na sociedade contemporânea, partindo-se, para tanto, dos depoimentos íntimos, pessoais, das ouvintes da rádio.
Após nosso primeiro contato com a locução de abertura do programa, dá-se a interrupção desta voz por uma melodia conhecida, provavelmente o tema de alguma novela das oito horas. Uma música que, mesmo involuntariamente, escutaríamos ao andar pelas ruas, ao passar pela frente de lojas do centro da cidade, ou ainda pelo rádio que toca no apartamento vizinho.
A câmera continua seu passeio, medindo sem pressa cada espaço vazio. Em seguida, ouve-se uma voz feminina que se sobrepõe ao áudio inicial, cantarolando baixinho o mesmo trecho da música que se ouve ao fundo enquanto a câmera caminha pelos cômodos.
Nesse momento, ao proceder dessa maneira, Fernanda Goulart provoca um estranhamento que aparece e desaparece rapidamente para o espectador, mas que tem como conseqüência uma pequena mudança na percepção da obra. A câmera se pronuncia colando a voz que cantarola sobre a voz que canta no rádio. A câmera, que enquanto era silenciosa guardava certa imparcialidade tanto em relação ao objeto retratado quanto ao fundo de músicas e histórias, termina por se aproximar ainda mais das diferentes vozes femininas que habitam o vídeo com seus relatos multiplicados em looping. Sua presença é confirmada através da ilusão que se dá pela justaposição entre o som ambiente que ecoa no espaço e a voz que canta, quase que sussurrando, como se a estivéssemos escutando perto do ouvido.* Desse modo, a voz que acompanhada melodia de fundo combinada às imagens que vemos reafirma, inevitavelmente, o olhar que passeia.
A escolha das músicas em Alugo-me é peculiar; é criada uma atmosfera familiar, de déjà vu, suscitada talvez pelo fato de quase todas as trilhas pertencerem ao universo da teledramaturgia. São músicas que descrevem, com intensidade açucarada, a paixão, o amor e o desencontro, evidenciando a fugacidade e fragilidade das relações afetivas, levando-nos, discretamente, a rever nossos próprios melodramas pessoais embalados pelo clichê universal da dor amorosa.
As histórias das ouvintes descrevem, ao longo do vídeo, expectativas individuais em relação ao amor e ao encontro com o outro, quase sempre otimistas em viver uma relação mais feliz e harmoniosa que as anteriores. É evidente a preocupação da artista com questões de gênero estabelecidas no ambiente doméstico, privado. Ao mesmo tempo, contrapõe ao conceito de espaço privado a exposição da intimidade num veículo público, no caso, um programa de rádio.
Esta contraposição entre público e privado transparece como uma preocupação em outros trabalhos, como por exemplo, em Nada que você não queira, obra em que a artista manipula imagens de pinturas de Vermeer onde aparecem mulheres em suas casas exercendo alguma atividade doméstica. A essas imagens são contrapostas imagens gigantescas, uma delas de um corpo feminino em biquíni (um dos outdoors), e textos retirados de livros de auto-ajuda que ensinam como se adaptar a normas e convenções sociais sem “perder a personalidade”.**
O sujeito inscrito em Alugo-me situa-se numa área fronteiriça; está entre a inocência e a complacência, entre a ironia e a constatação. Onde se cruzam histórias íntimas e a paisagem esvaziada da arquitetura que já foi habitada, morada, vivida. Se tomarmos aqui a casa como metáfora do corpo, tanto ela quanto os relatos revelam vestígios e gostos deixados por antigos moradores, bem como as transformações e interferências sofridas durante reformas e arranjos. Sob este ponto de vista, é possível dizer que Fernanda retoma em Alugo-me, de certa maneira, o mesmo olhar de confinamento*** descrito por César Guimarães no texto do catálogo de Nada que você não queira.
A artista parte da constatação de uma diferença de gênero, da alteridade, como forma de observar e tentar transfigurar as circunstâncias de limitação e conflito que se multiplicam por meio da constante dificuldade em conviver e em comunicar-se com o outro.
Um desencontro entre expectativa e realização também ocorre na videoinstalação Quem escuta o meu sim, de 2005. Nessa obra, é também o espaço privado o tema central que norteia a interlocução da artista. Mais uma vez Fernanda aborda o doméstico, o familiar, para falar das interdições e do desencontro. Como em Alugo-me, a noção de “casa” vai desenhando-se através da voz das mulheres que, quase sempre, são os atores que delimitam o espaço de estruturação do cotidiano e da rotina familiares.
Abrem-se e fecham-se várias portas que nos conduzem a ver, como questão central, os espaços compartilhados e a necessidade de transformação desses espaços como estratégia de sobrevivência. Trata-se de buscar os acordos através das evidências de discordância e dos encontros possíveis, acidentais. Fernanda Goulart constrói um diálogo infinito, inconcluso, mas persistente na inevitabilidade da eterna necessidade do outro.
* Em sua primeira montagem, na exposição En: Doze na galeria do Centro Cultural Cemig, em Belo Horizonte, 2003, a artista dispôs o vídeo num totem de madeira com uma pequena TV embutida, nos obrigando a aproximar o ouvido para escutar a trilha sonora.
** É importante ressaltar aqui o assédio mercadológico que orienta a criação e manutenção de perfis consumidores pessoais que custam cada vez mais caro (ao contrário dos materiais de que a artista lança mão para formalizar a obra, descartável ao fim da mostra), levando-nos a enxergar a individualidade como uma questão de sucesso ou fracasso no mundo contemporâneo. Esta é, a propósito, a idéia central de seu trabalho Para entender a arte (...), enviado anonimamente a um salão de arte, no qual se utiliza destas mesmas questões para falar da experiência de dissenso e legitimação no universo da arte.
*** GUIMARAES, César, em Quem nos interpela?. Texto do catálogo sobre a obra de Fernanda Goulart para a exposição Nada que você não queira. Galeria de Arte do Espaço Cultural Cemig, Belo Horizonte, abril de 2002.