Ensaio Jim Quilty, 10/2008
O elaborado jogo presente na videoarte de Mounira al-Solh
Há muitos vídeos arte e documentários insípidos e chatos. Como que ciente do segredinho sujo da mídia que escolheu, a artista libanesa Mounira al-Solh se dedicou, nos últimos anos, a criar obras em vídeo cuja inteligência não as impede de ser envolventes.
Rompendo com as premissas comumente atribuídas ao documentário, o trabalho de Solh restabelece discussões sobre pertencimento, representação e coisas do tipo – temas freqüentes numa época em que a identidade está em evidência. Ela indaga sobre as possibilidades artísticas de investigar e retratar a identidade, e o faz de maneira aparentemente leviana, em uma abordagem inversa que contraria suas sérias preocupações conceituais.
Em sua série de composições com câmera fixa As if I Don’t Fit There (2006), a artista é filmada em quatro performances minimalistas. Na primeira, segundo ela própria, a artista tenta recriar a pintura O tocador de pífaro (1866), de Manet. Na segunda, Solh caminha em direção a uma câmera e ao mesmo tempo se distancia do espectador. Em outra, ela posa de forma incongruente de biquíni junto a um lago holandês. Por fim, de pé em uma escada, ela canta uma canção da diva libanesa Fairouz.
Acompanhando o silêncio quase absoluto, um texto situa cada uma das peças na autobiografia fictícia, ou nas autobiografias, de uma artista que fez sucesso no passado e abandonou a arte para se tornar uma advogada especializada em questões de imigração envolvendo artistas, diretora de arte da previsão meteorológica em uma estação de televisão local, “comerciante independente de jóias falsas”, e esposa de um homem com quem se casou após ele ter elogiado seu desempenho em um restaurante.
Essas peças distintas entre si e enganosamente frágeis ressoam em vários níveis. O mais óbvio deles é a ironia em encenar uma peça imóvel (quase silenciosa) diante de uma câmera de vídeo – que aqui se limita em grande parte a gravar movimentos e ruídos de fundo incidentais (ou alterados).
A narrativa (na qual a narradora faz questão de denegrir o vídeo e a arte em novas mídias) discute onde a prática artística “se encaixa” em meio a diversas outras práticas mediadas “não-artísticas” – seja a reprodução da arte de terceiros (Manet ou Fairouz), a fabricação de bijuterias e de imagens de computador para televisão, ou a busca de práticas secundárias centradas na carreira e na família.
Alguns dos mesmos temas são abordados na obra seguinte de Solh. No entanto, como que impaciente com as imagens deliberadas e fixas de As if I Don’t Fit There, Rawane’s Song (2006) não pára de se mover.
A começar pelo título, que tanto lembra as representações cinematográficas sentimentais da feminilidade oriental, Rawane’s Song é ao mesmo tempo uma análise divertida de temas relacionados à identidade – e, conseqüentemente, à proliferação de obras nela centradas – e uma maquete de uma jornada cinematográfica de descoberta.
Essa investigação de sete minutos começa com a alegre cabeça da artista, do tamanho de uma foto de passaporte, emoldurada por um sapato fúcsia, de cujo dedão ela sai. A câmera mostra um sapato parecido, que desta vez contém o pé de Solh, visto como que da altura do peito. A lente permanece focada em seu pé enquanto ela caminha por um cômodo anônimo.
Um texto diz à platéia como a narradora está frustrada ao tentar habitar os diversos arquétipos da identidade libanesa que ela sentia impostos sobre si – seja a postura política pró-Palestina ou a suposta herança fenícia. Tendo confrontado aquilo que ela não é, a artista confessa que fez alguns questionamentos com o intuito de definir e documentar essa identidade fugidia.
Quando ela chega à canção que dá nome ao vídeo, nota-se que ela não é uma peça clássica tocada por ícones da música árabe como Umm Kalthoum ou Fairouz. Em vez disso, é um número pop relativamente recente gravado pela artista pop Nancy Ajram – cantada aqui ao estilo karaokê pela fictícia Rawane, e gravada em fita cassete com a cabeça alegre de foto de passaporte de Solh afixada a ela.
Na etapa final de sua jornada, a câmera de Solh revela seus dois passaportes libaneses – um com capa azul, outro com capa vermelha – lado a lado em uma superfície branca. A câmera faz um giro de 180o sobre os passaportes e depois dá um zoom, enquadrando o tricolor francês.
A canção final de Rawane’s Song é A Marselhesa, cantarolada pela artista para acompanhar este símbolo da identidade colonial do Líbano, um clichê (que ainda assim persiste em determinados círculos), ou, de qualquer forma, do local representado por aquela identidade.
Em seu trabalho mais recente, uma série intitulada The Sea Is a Stereo (2007-2008), Solh aborda mais uma vez a questão da migração como meio de extrair arte de uma representação. A obra, que no momento é um tríptico, é mais elaborada do ponto de vista formal e conceitualmente ousada.
A Buttock Sitting Comfortably on a Watery Threshold, primeira parte do tríptico, é uma palestra na qual Solh introduz o espaço liminar entre emigração e imigração. Uma vez que o período entre a decisão de emigrar e ser aceito como um imigrante pode ser longo, ela diz, os emigrantes entram em um espaço que não é aqui nem ali.
Relembrando sua própria experiência como estudante de arte na Holanda, Solh afirma que esse limiar entre aqui e ali não deixa de ter aspectos confortáveis. Na verdade, em termos metafóricos, um limiar pode tanto ser fluido [“watery” – aquático] quanto sólido.
Em seguida, a artista apresenta seus personagens, um grupo de homens libaneses de diferentes idades, classes sociais e regiões – que têm em comum o “limiar aquático” do litoral Mediterrâneo – que de forma regular dão as costas para Beirute e vão nadar no mar. Quando os homens são apresentados, a palestra termina, sem que eles digam uma palavra.
A Buttock Sitting Comfortably on a Watery Threshold é uma obra que assume riscos. A palestra envolve, com uma estrutura conceitual, uma veia muito explorada da cultura popular de Beirute – a prática, geralmente reservada aos homens, de nadar no Mediterrâneo, partindo dos rochedos que servem de praias no litoral noroeste da cidade.
Como forma de discurso, no entanto, a palestra gravada é desconcertante se comparada à narrativa tagarela e indiscriminada de seus trabalhos de 2006. A ironia incorporada à palestra ajuda. Solh veste uma túnica apropriada para uma professora do século 19. Imagens estáticas dela e de seus personagens se intercalam com fotos desconexas de gado holandês.
Sem nenhum comentário dos homens que supostamente exemplificam o argumento de Solh, a palestra faz pensar nas deficiências das palestras gravadas.
Os homens falam em Paris without a Sea, a segunda parte do tríptico. Nessa obra enérgica e divertida, a artista entrevista seus informantes na praia, sem aparecer, em diferentes estágios do processo de tirar suas roupas, e em locais fechados, onde ela pede que eles se vistam como se estivessem na praia, ou que coloquem uma máscara de mergulho.
A maioria de suas perguntas rápidas já tinha sido antecipada durante a palestra – ‘Qual é o seu nome?’, ‘Por que te chamam assim?’, ‘Quando e onde você aprendeu a nadar?’, ‘Qual é a cor do mar?’, ‘Quem é o melhor nadador de vocês?’, ‘Qual é a sua relação com as pastilhas para tosse Halls?’
Solh permanece invisível durante todo o vídeo, e as vozes de seus personagens, inaudíveis. Em vez delas, ouve-se Solh fazendo perguntas em árabe libanês e algumas em francês, e em seguida os homens respondem, enquanto ela recita as respostas deles em sincronia.
Embora nominalmente o vídeo siga as convenções próprias de documentários, a mediação surreal de Solh (máscaras de mergulho, dublagem, etc.) confere a Paris without a Sea uma textura cômica que lembra Rawane’s Song. As perguntas de Solh são respondidas com histórias breves e idiossincráticas dos homens sobre sua relação com seus corpos e com o mar.
Os espectadores poderão detectar uma fluidez divertida no exercício da masculinidade desses homens – acentuada pela locução “feminilizante” de Solh – sugerindo que existem limites “aquáticos” separando mais facetas da identidade do que apenas a nacionalidade.
Seria injusto tecer comentários extensos sobre Let’s Not Swim Then!, a terceira parte de The Sea Is a Stereo – ainda um work in progress, quando este ensaio está sendo escrito.
Em uma única encarnação, no entanto, a obra mostra segmentos dos homens na praia, como se estivessem sendo observados de forma discreta ou sub-reptícia, intercalados com trechos em que os entrevistados de Solh respondem, por escrito, aos retratos que ela faz deles.
Esses homens se parecem mais com colaboradores do que com informantes. Ainda assim, não há como confirmar se as respostas escritas atribuídas a eles são verdadeiras – se Solh diligentemente mostrou a eles suas transcrições, gravou suas respostas e as divulgou sem alterações –, editadas ou fabricadas.
Não importa. O documentário que The Sea Is a Stereo poderia ter sido foi dissecado como um verme e dividido em três vozes de representação, todas elas pertencentes à artista.
Outros artistas e cineastas do mundo árabe tentaram explorar a fenda da identidade cultural e de gênero. Alguns retratam o suposto exotismo do lugar, enquanto outros buscam um didatismo que aprisiona a estética em meio aos detalhes provincianos da história política e da injustiça atual.
Criado com uma perspicácia desconcertante, o trabalho de Solh é inspirado pelo ato representativo em si, analisado a partir da calma (se não da tranqüilidade) do lugar nenhum.
Jim Quilty é um jornalista canadense que vive em Beirute. Crítico de cinema para o jornal libanês The Daily Star, ele vem escrevendo sobre a política, arte e produção cultural no Oriente Médio há uma década. Suas matérias foram publicadas na Bidoun e na ArtReview, bem como em revistas especializadas como Middle East International, Middle East Report e The Electronic Journal of Middle Eastern Studies, e participou de diversas conferências e simpósios acadêmicos e de mídia. Ele se interessa pela relação entre política e produção cultural – pelo impacto da política [em sua definição mais abrangente] sobre o condicionamento do processo criativo e pela maneira como fatores políticos e econômicos facilitam ou inibem a produção e a recepção da arte.