Entrevista Denise Mota, 10/2008
Você mora em Amsterdã. Por que escolheu a Holanda?
Dois anos depois de terminar o curso na Universidade Libanesa em Beirute, percebi que precisava ir a outra cidade. Por razões que não estão claras para mim, não poderia mais ser uma flâneur em Beirute naquele momento. Acredito que sou uma flâneur desde o dia em que aprendi a andar nas ruas com meu pai ou minha mãe por Beirute, muito antes que eu soubesse ou pudesse ler Baudelaire e Walter Benjamin. Beirute tem uma série de becos entre casas e edifícios, terrenos vazios e desertos que a tornavam uma cidade ideal para um flâneur amador. No entanto, em Beirute, naquele momento, não havia guerra oficial, mas se podia ainda sentir que as pessoas se odiavam e se discriminavam. Turistas e expatriados voltaram ao país; o centro e outras partes da cidade foram se renovando massivamente; havia um notório movimento econômico. Eu ia quase todos os dias ao mesmo bar na rua Hamra, em Beirute, chamado O Barômetro, e bebia até as quatro da manhã. Eu nunca havia saído de Beirute, tinha 24 anos e pensava que o mundo se resumia à rua Hamra e a Corniche, Zarif, Cola e Barbir, diferentes áreas da cidade. Jemayzé e Ashrafieh, para variar. Eu tinha a “síndrome de Hamra” e, como várias outras pessoas, ainda a tenho. Para o flâneur, a cidade é um labirinto. Mas Beirute estava se tornando mais um quarto confortável do que um labirinto para mim.
Naquela época, a razão mais convincente para morar fora era estudar. A Rietveld Academie era um lugar ideal para mim, porque lá eu podia não só me relacionar, mas também me comparar com jovens artistas de todos os lugares do mundo. Em Amsterdã, como estudantes de arte, flutuamos entre culturas “castradas”. Nada é real para nós, e tudo é real, ao mesmo tempo, e isso me ajudou a tentar descobrir quem eu era. Depois de três anos, concluí meus estudos na Rietveld Academie e fui aceita na Rijksakademie. Desde 2006, comecei a morar entre Beirute e Amsterdã. Trabalhar com meu projeto The Sea Is a Stereo, que continua em desenvolvimento, me deu a chance de ser uma flâneur em Beirute de novo. Sou uma flâneur entre aqueles banhistas que viram suas costas diariamente para a cidade onde vivem e nadam em direção ao horizonte como se estivessem prestes a abandoná-la. Em The Sea Is a Stereo, dou uma conferência em que comparo meu status de estudante em Amsterdã ao dos nadadores em Beirute e entendo que decidimos estar no limiar entre emigração e imigração. Eles habitam um espaço feito de água. Em Amsterdã, estou longe dos meus pais, da minha tribo, do meu idioma, do meu entorno familiar. Transformando qualquer outra rua em meu lugar favorito, tornando-me uma imigrante no lugar errado, talvez, na hora errada, talvez, sendo “uma estranha para mim mesma”. Como diz Kristeva: “O estrangeiro transformou seu desconforto em uma base de resistência, uma fortaleza de vida. Além disso, se ele houvesse permanecido em casa, talvez tivesse se tornado um marginal, um inválido, um fora-da-lei... Sem uma casa, ele dissemina ao contrário o paradoxo do ator: ao multiplicar máscaras e falsos eus, nunca é completamente verdadeiro nem completamente falso, já que pode sintonizar para amores e aversões a antena superficial de um coração basáltico”.
Em seus trabalhos, pode-se notar um toque de ironia e humor, e parece central na sua criação a busca por destruir estereótipos vinculados ao que é ser libanês e árabe, como ter suas vidas condicionadas pela fé e pela política.
Não sou tão irônica quanto parece. Se olharmos meu trabalho mais do que uma vez, percebemos talvez que eu sou muito mais a “estranha para si mesma” de Kristeva e uma existencialista. Mas é verdade também que sou irônica. Não vejo isso como um objetivo no meu trabalho; creio que esse humor está mais relacionado ao absurdo da existência. O humor às vezes me ajuda a tornar personagens e histórias mais humanos.
Por exemplo, quando fiz Reclining Men with Sculpture, realmente queria tentar pensar que a arte, bem como os líderes políticos, são uma criação tipicamente humana. Foi depois da invasão israelense de 2006, quando a guerra civil começou com pôsteres e imagens de líderes políticos preenchendo as ruas de Beirute. Era incrível: você não podia sonhar outra coisa. Esses políticos e líderes entravam no seu inconsciente de forma muito profunda. Se você saísse de casa para ir ao armazém, veria Hariri e seu filho dez vezes, Sayyed Hassan Nasrallah, o líder do Hizbollah, mais de vinte vezes, Nabih Berri, Walid Junblat, o general Aoun em pôsteres e banners cobrindo edifícios imensos e pendurados no meio das ruas Não havia nada a fazer; tínhamos que viver assim. Mas eu quis mudar isso e, em vez de tê-los controlando minha imaginação, comecei a criar situações fictícias para eles, para fazer com que se tornassem pessoas com o mesmo gosto cultural e as mesmas necessidades que eu tenho. É por isso que os vemos na Bienal de Veneza ou no museu de arte moderna de Teerã. Cenários engraçados ou talvez bastante absurdos. Quanto à segunda parte da sua pergunta, às vezes eu acho que a guerra é uma espécie de ópio. Em Beirute, por exemplo, a guerra nos mantém ocupados, não temos que enfrentar o tédio, como em Amsterdã. Podemos ter uma razão para tudo: nossos fracassos, nossas depressões, o fato de sermos pobres, ricos, ignorantes, corruptos, bêbados, de não lermos o bastante, de termos uma dor de cabeça, de não pentearmos o cabelo... As pessoas que se suicidaram e que eu conheci se mataram quando não havia guerra. Quando o conflito estava presente, não ousaram se suicidar, talvez, ou estariam muito ocupados com estratégias de sobrevivência. Quando fiz Rawane’s Song, tinha encontrado na Holanda e na Europa uma enorme quantidade de trabalhos de arte e conferências sobre o Oriente Médio. Infelizmente, a maioria não era suficientemente crítica. Não faziam mais do que dizer: “Somos vítimas exóticas, venha e nos veja”. Para mim isso é inaceitável, e fiz Rawane’s Song como uma reação a essa atitude. Por isso ele tem algumas partes politicamente incorretas. Porque quis ser mais honesta, e só poderia fazer isso se aparentemente parecesse ingênua. Mas não diria que minha preocupação artística é destruir estereótipos vinculados com o que é ser libanês e árabe. Talvez esse aspecto esteja tratado claramente em Rawane’s Song como uma camada inicial, mas seria limitante dizer que essa é a principal preocupação de minha prática artística. Devido ao fato de que, como comentei antes, sou antes de tudo uma flâneur. Ou, ao menos agora, é assim como me sinto. De acordo com Tabucchi, Pessoa não precisou de mais do que uma cadeira e uma mesa para conseguir viajar. Sua cadeira e sua mesa foram suas pernas, que o levaram para longe. Eu o invejo, de certa maneira. Nas ruas de Amsterdã, acho que você tem que andar de bicicleta para ser um flâneur. E eu gosto de fazer isso, gosto de pedalar sem ter de ir a lugar nenhum. Em Beirute, é impossível andar de bicicleta, a cidade é muito montanhosa. Caminhar é o ideal e, como disse antes, foi acompanhando os banhistas de Beirute que me tornei uma flâneur novamente.
Como você encontrou os personagens da série The Sea Is a Stereo?
Na verdade, não os descobri. Todos eles são amigos de natação do meu pai. Estão juntos todo o tempo, e eu estou sempre com eles. Então aconteceu naturalmente. Mas devo admitir que pensei em fazer um trabalho com eles já em 2005. Abou Sakhra, como alguns dos outros banhistas, ama ser criativo diante das câmeras, isso lhe dá a oportunidade de sentir-se bonito e eterno, algo de que todos precisamos, de um modo ou de outro, como seres humanos. Enquanto fazia The Sea Is a Stereo, pensei diversas vezes em Jean Rouch e em como ele criou um filme com as pessoas que estava registrando como sociólogo. Para mim é impressionante como se tornaram atores depois de terem trabalhado com ele por anos. Sonho que um dia, eu, meu pai, Abou Sakhra e os outros nos sintamos tão confortáveis juntos que possamos improvisar um filme. De toda forma, a idéia desse trabalho é que ele continua a ser feito. Em Beirute, há muitos grupos diferentes, nadando em diferentes lugares, mas estou interessada principalmente nos homens que estão ao redor de meu pai, e aos poucos esse trabalho vai se tornando cada vez mais amplo. Quando estudava pintura na Universidade Libanesa, em Rawché, passei dois anos com Lina, Mahmoud e Nagi, meus melhores amigos, nadando todos os dias na Dalieh, a mesma praia onde às vezes esses homens vão. Ficava na praia mesmo se estivesse chovendo. Às vezes meu pai ficava com a gente. Ele nada todos os dias há vinte anos. Diariamente, ele dedica uma hora de sua rotina para isso, não importa o que aconteça. Com Lina, Mahmoud e Nagi estive absorta na Dalieh por dois anos. Tínhamos consciência de que isso nos faria ser estranhos para Beirute sem que saíssemos da cidade e que nos ajudaria a ser como um grupo de flâneurs. Estávamos em Beirute, mas não estávamos. O mar de alguma forma engole os sons da cidade, você pode vê-la do alto da montanha, mas não a ouve.
A arte adquire um tom de anedota em muitos de seus trabalhos. Não está no centro dos acontecimentos e é parte de um passado inocente de personagens como a garota que cantava como a avó e que se tornou dona-de-casa. Que tipo de relações você gosta de estabelecer entre vida e arte?
Fazer arte para mim está muito próximo de ser quem você é. O que quero dizer é que não diferencio a arte da vida. Embora meus trabalhos finjam às vezes ser ficcionais, tudo vem de experiências vivas e do presente que está acontecendo agora na frente dos meus olhos ou sob minha pele, dentro de mim, meu “estranho eu”. Você também pode ver isso em As if I Don’t Fit There, onde eu quis mostrar que se você faz arte ou se é um advogado ou uma dona-de-casa, como você menciona, não há uma grande diferença, porque no final você define tudo a partir do modo como vê as coisas, e não o contrário. Então talvez aqui estejamos de volta ao ponto de que o que pareceu anedótico para você é para mim mais existencial.
O projeto da revista NOA também é bastante irônico, uma vez que se trata de uma publicação quase secreta: você pré-selecionou os leitores e os guiou a um lugar específico para ler a revista. Quais foram os propósitos desse projeto?
NOA é mais como uma performance-revista. É uma publicação que nem todos estão autorizados a ler. E, embora seja uma revista, não imprimi mais do que uma ou duas cópias de cada número. As pessoas não podem levá-la para casa para lê-la confortavelmente em seus espaços privados. É um trabalho muito complexo, e no momento estou começando a próxima edição. O primeiro número tem como título Treason Is like a Bible [A traição é como uma Bíblia]. O segundo número ainda não tem título, porque está em andamento. Não posso dizer agora porque NOA tem que ser restrita, e não aberta para um público amplo, mas definitivamente não é porque queira ser irônica. A razão é mais vital e urgente. É uma razão de segurança, porque o conteúdo de NOA não deve ser revelado para todos.
Quais os seus próximos projetos?
Estou preparando aos poucos o próximo número de NOA, e o que gosto disso é que ela se baseia em um trabalho de equipe. Os co-editores são Mona Abu Rayyan, Fadi El Tofeili e Noa Roi, e na produção está Christine Tohme. A direção criativa está a cargo de Lynn Othman, e isso faz da revista NOA um trabalho muito especial para mim. Tenho que agradecê-los por me ajudar a fazer NOA e espero que possamos continuar a fazê-la juntos. Também estou preparando novos trabalhos, alguns deles para The Sea Is a Stereo. Estou fazendo o vídeo Let’s Not Swim Then!, e gostaria de terminá-lo logo. Também estou começando a trabalhar em projetos totalmente novos que estou mostrando no Open Studios na Rijksakademie, além dos vídeos e fotos que criei recentemente para The Sea Is a Stereo.