Ensaio Jim Quilty, 10/2008
O elaborado jogo presente na videoarte de Mounira al-Solh
Há muitos vídeos arte e documentários insípidos e chatos. Como que ciente do segredinho sujo da mídia que escolheu, a artista libanesa Mounira al-Solh se dedicou, nos últimos anos, a criar obras em vídeo cuja inteligência não as impede de ser envolventes.
Rompendo com as premissas comumente atribuídas ao documentário, o trabalho de Solh restabelece discussões sobre pertencimento, representação e coisas do tipo – temas freqüentes numa época em que a identidade está em evidência. Ela indaga sobre as possibilidades artísticas de investigar e retratar a identidade, e o faz de maneira aparentemente leviana, em uma abordagem inversa que contraria suas sérias preocupações conceituais.
Em sua série de composições com câmera fixa As if I Don’t Fit There (2006), a artista é filmada em quatro performances minimalistas. Na primeira, segundo ela própria, a artista tenta recriar a pintura O tocador de pífaro (1866), de Manet. Na segunda, Solh caminha em direção a uma câmera e ao mesmo tempo se distancia do espectador. Em outra, ela posa de forma incongruente de biquíni junto a um lago holandês. Por fim, de pé em uma escada, ela canta uma canção da diva libanesa Fairouz.
Acompanhando o silêncio quase absoluto, um texto situa cada uma das peças na autobiografia fictícia, ou nas autobiografias, de uma artista que fez sucesso no passado e abandonou a arte para se tornar uma advogada especializada em questões de imigração envolvendo artistas, diretora de arte da previsão meteorológica em uma estação de televisão local, “comerciante independente de jóias falsas”, e esposa de um homem com quem se casou após ele ter elogiado seu desempenho em um restaurante.
Essas peças distintas entre si e enganosamente frágeis ressoam em vários níveis. O mais óbvio deles é a ironia em encenar uma peça imóvel (quase silenciosa) diante de uma câmera de vídeo – que aqui se limita em grande parte a gravar movimentos e ruídos de fundo incidentais (ou alterados).
A narrativa (na qual a narradora faz questão de denegrir o vídeo e a arte em novas mídias) discute onde a prática artística “se encaixa” em meio a diversas outras práticas mediadas “não-artísticas” – seja a reprodução da arte de terceiros (Manet ou Fairouz), a fabricação de bijuterias e de imagens de computador para televisão, ou a busca de práticas secundárias centradas na carreira e na família.
Alguns dos mesmos temas são abordados na obra seguinte de Solh. No entanto, como que impaciente com as imagens deliberadas e fixas de As if I Don’t Fit There, Rawane’s Song (2006) não pára de se mover.
A começar pelo título, que tanto lembra as representações cinematográficas sentimentais da feminilidade oriental, Rawane’s Song é ao mesmo tempo uma análise divertida de temas relacionados à identidade – e, conseqüentemente, à proliferação de obras nela centradas – e uma maquete de uma jornada cinematográfica de descoberta.
Essa investigação de sete minutos começa com a alegre cabeça da artista, do tamanho de uma foto de passaporte, emoldurada por um sapato fúcsia, de cujo dedão ela sai. A câmera mostra um sapato parecido, que desta vez contém o pé de Solh, visto como que da altura do peito. A lente permanece focada em seu pé enquanto ela caminha por um cômodo anônimo.
Um texto diz à platéia como a narradora está frustrada ao tentar habitar os diversos arquétipos da identidade libanesa que ela sentia impostos sobre si – seja a postura política pró-Palestina ou a suposta herança fenícia. Tendo confrontado aquilo que ela não é, a artista confessa que fez alguns questionamentos com o intuito de definir e documentar essa identidade fugidia.
Quando ela chega à canção que dá nome ao vídeo, nota-se que ela não é uma peça clássica tocada por ícones da música árabe como Umm Kalthoum ou Fairouz. Em vez disso, é um número pop relativamente recente gravado pela artista pop Nancy Ajram – cantada aqui ao estilo karaokê pela fictícia Rawane, e gravada em fita cassete com a cabeça alegre de foto de passaporte de Solh afixada a ela.
Na etapa final de sua jornada, a câmera de Solh revela seus dois passaportes libaneses – um com capa azul, outro com capa vermelha – lado a lado em uma superfície branca. A câmera faz um giro de 180o sobre os passaportes e depois dá um zoom, enquadrando o tricolor francês.
A canção final de Rawane’s Song é A Marselhesa, cantarolada pela artista para acompanhar este símbolo da identidade colonial do Líbano, um clichê (que ainda assim persiste em determinados círculos), ou, de qualquer forma, do local representado por aquela identidade.
Em seu trabalho mais recente, uma série intitulada The Sea Is a Stereo (2007-2008), Solh aborda mais uma vez a questão da migração como meio de extrair arte de uma representação. A obra, que no momento é um tríptico, é mais elaborada do ponto de vista formal e conceitualmente ousada.
A Buttock Sitting Comfortably on a Watery Threshold, primeira parte do tríptico, é uma palestra na qual Solh introduz o espaço liminar entre emigração e imigração. Uma vez que o período entre a decisão de emigrar e ser aceito como um imigrante pode ser longo, ela diz, os emigrantes entram em um espaço que não é aqui nem ali.
Relembrando sua própria experiência como estudante de arte na Holanda, Solh afirma que esse limiar entre aqui e ali não deixa de ter aspectos confortáveis. Na verdade, em termos metafóricos, um limiar pode tanto ser fluido [“watery” – aquático] quanto sólido.
Em seguida, a artista apresenta seus personagens, um grupo de homens libaneses de diferentes idades, classes sociais e regiões – que têm em comum o “limiar aquático” do litoral Mediterrâneo – que de forma regular dão as costas para Beirute e vão nadar no mar. Quando os homens são apresentados, a palestra termina, sem que eles digam uma palavra.
A Buttock Sitting Comfortably on a Watery Threshold é uma obra que assume riscos. A palestra envolve, com uma estrutura conceitual, uma veia muito explorada da cultura popular de Beirute – a prática, geralmente reservada aos homens, de nadar no Mediterrâneo, partindo dos rochedos que servem de praias no litoral noroeste da cidade.
Como forma de discurso, no entanto, a palestra gravada é desconcertante se comparada à narrativa tagarela e indiscriminada de seus trabalhos de 2006. A ironia incorporada à palestra ajuda. Solh veste uma túnica apropriada para uma professora do século 19. Imagens estáticas dela e de seus personagens se intercalam com fotos desconexas de gado holandês.
Sem nenhum comentário dos homens que supostamente exemplificam o argumento de Solh, a palestra faz pensar nas deficiências das palestras gravadas.
Os homens falam em Paris without a Sea, a segunda parte do tríptico. Nessa obra enérgica e divertida, a artista entrevista seus informantes na praia, sem aparecer, em diferentes estágios do processo de tirar suas roupas, e em locais fechados, onde ela pede que eles se vistam como se estivessem na praia, ou que coloquem uma máscara de mergulho.
A maioria de suas perguntas rápidas já tinha sido antecipada durante a palestra – ‘Qual é o seu nome?’, ‘Por que te chamam assim?’, ‘Quando e onde você aprendeu a nadar?’, ‘Qual é a cor do mar?’, ‘Quem é o melhor nadador de vocês?’, ‘Qual é a sua relação com as pastilhas para tosse Halls?’
Solh permanece invisível durante todo o vídeo, e as vozes de seus personagens, inaudíveis. Em vez delas, ouve-se Solh fazendo perguntas em árabe libanês e algumas em francês, e em seguida os homens respondem, enquanto ela recita as respostas deles em sincronia.
Embora nominalmente o vídeo siga as convenções próprias de documentários, a mediação surreal de Solh (máscaras de mergulho, dublagem, etc.) confere a Paris without a Sea uma textura cômica que lembra Rawane’s Song. As perguntas de Solh são respondidas com histórias breves e idiossincráticas dos homens sobre sua relação com seus corpos e com o mar.
Os espectadores poderão detectar uma fluidez divertida no exercício da masculinidade desses homens – acentuada pela locução “feminilizante” de Solh – sugerindo que existem limites “aquáticos” separando mais facetas da identidade do que apenas a nacionalidade.
Seria injusto tecer comentários extensos sobre Let’s Not Swim Then!, a terceira parte de The Sea Is a Stereo – ainda um work in progress, quando este ensaio está sendo escrito.
Em uma única encarnação, no entanto, a obra mostra segmentos dos homens na praia, como se estivessem sendo observados de forma discreta ou sub-reptícia, intercalados com trechos em que os entrevistados de Solh respondem, por escrito, aos retratos que ela faz deles.
Esses homens se parecem mais com colaboradores do que com informantes. Ainda assim, não há como confirmar se as respostas escritas atribuídas a eles são verdadeiras – se Solh diligentemente mostrou a eles suas transcrições, gravou suas respostas e as divulgou sem alterações –, editadas ou fabricadas.
Não importa. O documentário que The Sea Is a Stereo poderia ter sido foi dissecado como um verme e dividido em três vozes de representação, todas elas pertencentes à artista.
Outros artistas e cineastas do mundo árabe tentaram explorar a fenda da identidade cultural e de gênero. Alguns retratam o suposto exotismo do lugar, enquanto outros buscam um didatismo que aprisiona a estética em meio aos detalhes provincianos da história política e da injustiça atual.
Criado com uma perspicácia desconcertante, o trabalho de Solh é inspirado pelo ato representativo em si, analisado a partir da calma (se não da tranqüilidade) do lugar nenhum.
Jim Quilty é um jornalista canadense que vive em Beirute. Crítico de cinema para o jornal libanês The Daily Star, ele vem escrevendo sobre a política, arte e produção cultural no Oriente Médio há uma década. Suas matérias foram publicadas na Bidoun e na ArtReview, bem como em revistas especializadas como Middle East International, Middle East Report e The Electronic Journal of Middle Eastern Studies, e participou de diversas conferências e simpósios acadêmicos e de mídia. Ele se interessa pela relação entre política e produção cultural – pelo impacto da política [em sua definição mais abrangente] sobre o condicionamento do processo criativo e pela maneira como fatores políticos e econômicos facilitam ou inibem a produção e a recepção da arte.
Entrevista Denise Mota, 10/2008
Você mora em Amsterdã. Por que escolheu a Holanda?
Dois anos depois de terminar o curso na Universidade Libanesa em Beirute, percebi que precisava ir a outra cidade. Por razões que não estão claras para mim, não poderia mais ser uma flâneur em Beirute naquele momento. Acredito que sou uma flâneur desde o dia em que aprendi a andar nas ruas com meu pai ou minha mãe por Beirute, muito antes que eu soubesse ou pudesse ler Baudelaire e Walter Benjamin. Beirute tem uma série de becos entre casas e edifícios, terrenos vazios e desertos que a tornavam uma cidade ideal para um flâneur amador. No entanto, em Beirute, naquele momento, não havia guerra oficial, mas se podia ainda sentir que as pessoas se odiavam e se discriminavam. Turistas e expatriados voltaram ao país; o centro e outras partes da cidade foram se renovando massivamente; havia um notório movimento econômico. Eu ia quase todos os dias ao mesmo bar na rua Hamra, em Beirute, chamado O Barômetro, e bebia até as quatro da manhã. Eu nunca havia saído de Beirute, tinha 24 anos e pensava que o mundo se resumia à rua Hamra e a Corniche, Zarif, Cola e Barbir, diferentes áreas da cidade. Jemayzé e Ashrafieh, para variar. Eu tinha a “síndrome de Hamra” e, como várias outras pessoas, ainda a tenho. Para o flâneur, a cidade é um labirinto. Mas Beirute estava se tornando mais um quarto confortável do que um labirinto para mim.
Naquela época, a razão mais convincente para morar fora era estudar. A Rietveld Academie era um lugar ideal para mim, porque lá eu podia não só me relacionar, mas também me comparar com jovens artistas de todos os lugares do mundo. Em Amsterdã, como estudantes de arte, flutuamos entre culturas “castradas”. Nada é real para nós, e tudo é real, ao mesmo tempo, e isso me ajudou a tentar descobrir quem eu era. Depois de três anos, concluí meus estudos na Rietveld Academie e fui aceita na Rijksakademie. Desde 2006, comecei a morar entre Beirute e Amsterdã. Trabalhar com meu projeto The Sea Is a Stereo, que continua em desenvolvimento, me deu a chance de ser uma flâneur em Beirute de novo. Sou uma flâneur entre aqueles banhistas que viram suas costas diariamente para a cidade onde vivem e nadam em direção ao horizonte como se estivessem prestes a abandoná-la. Em The Sea Is a Stereo, dou uma conferência em que comparo meu status de estudante em Amsterdã ao dos nadadores em Beirute e entendo que decidimos estar no limiar entre emigração e imigração. Eles habitam um espaço feito de água. Em Amsterdã, estou longe dos meus pais, da minha tribo, do meu idioma, do meu entorno familiar. Transformando qualquer outra rua em meu lugar favorito, tornando-me uma imigrante no lugar errado, talvez, na hora errada, talvez, sendo “uma estranha para mim mesma”. Como diz Kristeva: “O estrangeiro transformou seu desconforto em uma base de resistência, uma fortaleza de vida. Além disso, se ele houvesse permanecido em casa, talvez tivesse se tornado um marginal, um inválido, um fora-da-lei... Sem uma casa, ele dissemina ao contrário o paradoxo do ator: ao multiplicar máscaras e falsos eus, nunca é completamente verdadeiro nem completamente falso, já que pode sintonizar para amores e aversões a antena superficial de um coração basáltico”.
Em seus trabalhos, pode-se notar um toque de ironia e humor, e parece central na sua criação a busca por destruir estereótipos vinculados ao que é ser libanês e árabe, como ter suas vidas condicionadas pela fé e pela política.
Não sou tão irônica quanto parece. Se olharmos meu trabalho mais do que uma vez, percebemos talvez que eu sou muito mais a “estranha para si mesma” de Kristeva e uma existencialista. Mas é verdade também que sou irônica. Não vejo isso como um objetivo no meu trabalho; creio que esse humor está mais relacionado ao absurdo da existência. O humor às vezes me ajuda a tornar personagens e histórias mais humanos.
Por exemplo, quando fiz Reclining Men with Sculpture, realmente queria tentar pensar que a arte, bem como os líderes políticos, são uma criação tipicamente humana. Foi depois da invasão israelense de 2006, quando a guerra civil começou com pôsteres e imagens de líderes políticos preenchendo as ruas de Beirute. Era incrível: você não podia sonhar outra coisa. Esses políticos e líderes entravam no seu inconsciente de forma muito profunda. Se você saísse de casa para ir ao armazém, veria Hariri e seu filho dez vezes, Sayyed Hassan Nasrallah, o líder do Hizbollah, mais de vinte vezes, Nabih Berri, Walid Junblat, o general Aoun em pôsteres e banners cobrindo edifícios imensos e pendurados no meio das ruas Não havia nada a fazer; tínhamos que viver assim. Mas eu quis mudar isso e, em vez de tê-los controlando minha imaginação, comecei a criar situações fictícias para eles, para fazer com que se tornassem pessoas com o mesmo gosto cultural e as mesmas necessidades que eu tenho. É por isso que os vemos na Bienal de Veneza ou no museu de arte moderna de Teerã. Cenários engraçados ou talvez bastante absurdos. Quanto à segunda parte da sua pergunta, às vezes eu acho que a guerra é uma espécie de ópio. Em Beirute, por exemplo, a guerra nos mantém ocupados, não temos que enfrentar o tédio, como em Amsterdã. Podemos ter uma razão para tudo: nossos fracassos, nossas depressões, o fato de sermos pobres, ricos, ignorantes, corruptos, bêbados, de não lermos o bastante, de termos uma dor de cabeça, de não pentearmos o cabelo... As pessoas que se suicidaram e que eu conheci se mataram quando não havia guerra. Quando o conflito estava presente, não ousaram se suicidar, talvez, ou estariam muito ocupados com estratégias de sobrevivência. Quando fiz Rawane’s Song, tinha encontrado na Holanda e na Europa uma enorme quantidade de trabalhos de arte e conferências sobre o Oriente Médio. Infelizmente, a maioria não era suficientemente crítica. Não faziam mais do que dizer: “Somos vítimas exóticas, venha e nos veja”. Para mim isso é inaceitável, e fiz Rawane’s Song como uma reação a essa atitude. Por isso ele tem algumas partes politicamente incorretas. Porque quis ser mais honesta, e só poderia fazer isso se aparentemente parecesse ingênua. Mas não diria que minha preocupação artística é destruir estereótipos vinculados com o que é ser libanês e árabe. Talvez esse aspecto esteja tratado claramente em Rawane’s Song como uma camada inicial, mas seria limitante dizer que essa é a principal preocupação de minha prática artística. Devido ao fato de que, como comentei antes, sou antes de tudo uma flâneur. Ou, ao menos agora, é assim como me sinto. De acordo com Tabucchi, Pessoa não precisou de mais do que uma cadeira e uma mesa para conseguir viajar. Sua cadeira e sua mesa foram suas pernas, que o levaram para longe. Eu o invejo, de certa maneira. Nas ruas de Amsterdã, acho que você tem que andar de bicicleta para ser um flâneur. E eu gosto de fazer isso, gosto de pedalar sem ter de ir a lugar nenhum. Em Beirute, é impossível andar de bicicleta, a cidade é muito montanhosa. Caminhar é o ideal e, como disse antes, foi acompanhando os banhistas de Beirute que me tornei uma flâneur novamente.
Como você encontrou os personagens da série The Sea Is a Stereo?
Na verdade, não os descobri. Todos eles são amigos de natação do meu pai. Estão juntos todo o tempo, e eu estou sempre com eles. Então aconteceu naturalmente. Mas devo admitir que pensei em fazer um trabalho com eles já em 2005. Abou Sakhra, como alguns dos outros banhistas, ama ser criativo diante das câmeras, isso lhe dá a oportunidade de sentir-se bonito e eterno, algo de que todos precisamos, de um modo ou de outro, como seres humanos. Enquanto fazia The Sea Is a Stereo, pensei diversas vezes em Jean Rouch e em como ele criou um filme com as pessoas que estava registrando como sociólogo. Para mim é impressionante como se tornaram atores depois de terem trabalhado com ele por anos. Sonho que um dia, eu, meu pai, Abou Sakhra e os outros nos sintamos tão confortáveis juntos que possamos improvisar um filme. De toda forma, a idéia desse trabalho é que ele continua a ser feito. Em Beirute, há muitos grupos diferentes, nadando em diferentes lugares, mas estou interessada principalmente nos homens que estão ao redor de meu pai, e aos poucos esse trabalho vai se tornando cada vez mais amplo. Quando estudava pintura na Universidade Libanesa, em Rawché, passei dois anos com Lina, Mahmoud e Nagi, meus melhores amigos, nadando todos os dias na Dalieh, a mesma praia onde às vezes esses homens vão. Ficava na praia mesmo se estivesse chovendo. Às vezes meu pai ficava com a gente. Ele nada todos os dias há vinte anos. Diariamente, ele dedica uma hora de sua rotina para isso, não importa o que aconteça. Com Lina, Mahmoud e Nagi estive absorta na Dalieh por dois anos. Tínhamos consciência de que isso nos faria ser estranhos para Beirute sem que saíssemos da cidade e que nos ajudaria a ser como um grupo de flâneurs. Estávamos em Beirute, mas não estávamos. O mar de alguma forma engole os sons da cidade, você pode vê-la do alto da montanha, mas não a ouve.
A arte adquire um tom de anedota em muitos de seus trabalhos. Não está no centro dos acontecimentos e é parte de um passado inocente de personagens como a garota que cantava como a avó e que se tornou dona-de-casa. Que tipo de relações você gosta de estabelecer entre vida e arte?
Fazer arte para mim está muito próximo de ser quem você é. O que quero dizer é que não diferencio a arte da vida. Embora meus trabalhos finjam às vezes ser ficcionais, tudo vem de experiências vivas e do presente que está acontecendo agora na frente dos meus olhos ou sob minha pele, dentro de mim, meu “estranho eu”. Você também pode ver isso em As if I Don’t Fit There, onde eu quis mostrar que se você faz arte ou se é um advogado ou uma dona-de-casa, como você menciona, não há uma grande diferença, porque no final você define tudo a partir do modo como vê as coisas, e não o contrário. Então talvez aqui estejamos de volta ao ponto de que o que pareceu anedótico para você é para mim mais existencial.
O projeto da revista NOA também é bastante irônico, uma vez que se trata de uma publicação quase secreta: você pré-selecionou os leitores e os guiou a um lugar específico para ler a revista. Quais foram os propósitos desse projeto?
NOA é mais como uma performance-revista. É uma publicação que nem todos estão autorizados a ler. E, embora seja uma revista, não imprimi mais do que uma ou duas cópias de cada número. As pessoas não podem levá-la para casa para lê-la confortavelmente em seus espaços privados. É um trabalho muito complexo, e no momento estou começando a próxima edição. O primeiro número tem como título Treason Is like a Bible [A traição é como uma Bíblia]. O segundo número ainda não tem título, porque está em andamento. Não posso dizer agora porque NOA tem que ser restrita, e não aberta para um público amplo, mas definitivamente não é porque queira ser irônica. A razão é mais vital e urgente. É uma razão de segurança, porque o conteúdo de NOA não deve ser revelado para todos.
Quais os seus próximos projetos?
Estou preparando aos poucos o próximo número de NOA, e o que gosto disso é que ela se baseia em um trabalho de equipe. Os co-editores são Mona Abu Rayyan, Fadi El Tofeili e Noa Roi, e na produção está Christine Tohme. A direção criativa está a cargo de Lynn Othman, e isso faz da revista NOA um trabalho muito especial para mim. Tenho que agradecê-los por me ajudar a fazer NOA e espero que possamos continuar a fazê-la juntos. Também estou preparando novos trabalhos, alguns deles para The Sea Is a Stereo. Estou fazendo o vídeo Let’s Not Swim Then!, e gostaria de terminá-lo logo. Também estou começando a trabalhar em projetos totalmente novos que estou mostrando no Open Studios na Rijksakademie, além dos vídeos e fotos que criei recentemente para The Sea Is a Stereo.
Biografia comentada Denise Mota, 10/2008
Aos 23 anos, depois de concluir o curso de pintura na Universidade Libanesa, em 2001, Mounira Al Solh decidiu que era hora de abandonar a extrema familiaridade que havia alimentado com Beirute e partiu para a Gerrit Rietveld Academie, em Amsterdã, para estudar belas artes. A escolha da escola holandesa foi baseada mais na simpatia que sentiu pelos alunos da instituição – “Eles eram livres, e tinham um humor que me agradava” – do que por razões de ordem acadêmica ou profissional.
Flâneur por auto-definição, a artista se move assim, orientada por percepções e pulsões que a levam para distintos cenários, sejam as rochas atrás de onde se ocultam de Beirute os banhistas-protagonistas de sua série de vídeos The Sea Is a Stereo, iniciada há dois anos, sejam as ruas da capital do Líbano, palco das investigações realizadas por Al Solh para coletar as vozes que embalam Rawane’s Song (2006).
Concluído no mesmo ano em que a autora terminava sua estadia na academia de artes de Amsterdã, o vídeo foi premiado no 16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil em 2007. O ano também marcou a presença da artista no primeiro pavilhão a representar as artes do Líbano na história da Bienal de Veneza, com a exposição coletiva Forward.
Para o evento italiano, Al Solh levou As If I Don’t Fit There (2006), trabalho que indaga com leveza e humor sobre a inserção de autores fictícios de distintos perfis no mundo da arte, suas tentativas de integrar esse circuito e os caminhos que escolheram quando a ambição de se tornar um artista deixou de ser uma meta para tornar-se parte do passado.
Embora os personagens da autora muitas vezes encerrem uma existência claramente circunscrita à imaginação de sua criadora, as condições e situações de vida apresentadas pela artista, segundo afirma, nascem diretamente do seu entorno, manancial que lhe oferece bases para que construa um universo vinculado ao “absurdo da existência”, como define.
Um exemplo é o projeto Reclining Men with Sculpture (2007), surgido da busca de Al Solh de fugir da avalanche de material ideológico com que se deparava diariamente nas ruas de sua cidade natal, após a invasão de Israel em 2006. Como saída para a dominação do “inconsciente” perpetrada por personalidades das mais diversas orientações políticas, a artista criou histórias em que esses personagens vivenciam experiências artísticas, em uma abordagem que os humaniza ao mesmo tempo em que coloca a arte como disparadora de novas realidades – improváveis, mas possíveis.
Após a Gerrit Rietveld, no ano passado Al Solh foi aceita na Rijksakademie van beeldende kunsten, instituição holandesa que oferece um programa de residência artística a autores de todo o mundo por um tempo máximo de dois anos. Foi então que a artista, premiada em seu novo lar estudantil com o Uriòt Prize, mergulhou em The Sea Is a Stereo, projeto familiar acalentado durante seus momentos de lazer em Beirute.
Na série de vídeos, que também se compõe de outros materiais, como objetos relacionados à rotina dos personagens, Al Solh acompanha o modo de viver e as idiossincrasias de um grupo de homens diferentes em tudo, entre eles, a não ser por uma mesma predileção: o mar. Esses libaneses se afastam temporariamente dos afazeres diários, faça chuva ou faça sol, para nadar, conversar e deleitar-se com os mistérios e caprichos do mar Mediterrâneo.
A artista os conhece de longa data: trata-se do pai da autora e de seus amigos. A odisséia pessoal que empreendem, por independência mental de tudo o que não esteja relacionado a esse momento infalível de contemplação, vai ao encontro de uma das investigações centrais da obra atual de Al Solh: a vida em trânsito, o limiar, o ato de existir sem amarras, de estar confortável entre dois (ou mais) mundos.
Os registros com os banhistas continuam em desenvolvimento, e Al Solh almeja no futuro partir para um projeto mais longo com eles – um filme. Nesse meio tempo, cria novos vídeos ao redor do grupo e edita o segundo número da “performance-revista” NOA (2008). “É uma publicação que nem todos estão autorizados a ler. O conteúdo de NOA não deve ser revelado para todos.”
Referências bibliográficas
O site oficial da artista, no ar em outubro, trará alguns de seus trabalhos, os projetos que está desenvolvendo, ensaios, reportagens e análises sobre suas obras, e informações sobre sua trajetória pessoal e profissional.
Associação Libanesa para as Artes Plásticas
Sediada em Beirute, promove eventos culturais e tem por objetivo fomentar a prática artística no país. Oferece um arquivo de documentos sobre arte contemporânea e publica livros em árabe e em inglês.
Berço libanês
Página da Universidade Libanesa, instituição em que Mounira Al Solh estudou arte entre 1997 e 2001. Gratuita, a entidade conta atualmente com 70 mil estudantes e 4 mil professores-pesquisadores.
Caldeirão holandês
Site da Rijksakademie, instituto em Amsterdã que promove residências artísticas, com cinqüenta alunos que desenvolvem projetos por até dois anos, e organiza o prêmio PRIXDEROME.NL, o mais antigo da Holanda