Ensaio Consuelo Lins, 04/2007

O documentário expandido de Maurício Dias e Walter Riedweg

Encontros, conversas, tensões, conflitos, confrontos, negociações com pessoas reais: é dessa “matéria-prima” que Maurício Dias e Walter Riedweg extraem seus numerosos trabalhos desde o início dos anos 1990, através da construção de “dispositivos relacionais” intimamente ligados ao contexto em que vão atuar. É uma produção artística em que a interação com o outro não acontece apenas no momento da exposição em museus e galerias, em proposições ao espectador nos espaços de arte, mas é o ponto de partida, o princípio “ativo”, o elemento provocador, aquilo sem o qual as obras não teriam simplesmente condições de existir. Não se trata portanto de artistas isolados no ambiente de trabalho, com suas ferramentas, reflexões e inspiração, mas de instalações, intervenções urbanas e projetos de arte pública que surgem, desde o início, compartilhados, co-produzidos, seja com grupos sociais mais definidos – meninos de rua, presos, adolescentes infratores, michês, policiais, imigrantes, refugiados políticos, camelôs, porteiros nordestinos, egípcios, cegos –, seja com indivíduos escolhidos ao acaso, anônimos, passantes.

A própria parceria entre o brasileiro e o suíço surgiu pouco a pouco, na prática de um trabalho, na relação com outras pessoas, na elaboração de uma situação. Dias formou-se em belas artes, Riedweg em música, teatro, performance. Uma subjetividade instável, mas potente, surge dessa associação, que transborda por todos os lados identidades individuais, liberando forças criativas desligadas da noção de “autor” e dos efeitos de controle que essa noção pressupõe. O que não quer dizer que não há autoria, mas que Dias e Riedweg inventam, a cada trabalho, um modo próprio de ser autor, deixando de lado idiossincrasias pessoais – as deles ou as dos personagens – em favor de uma capacidade de criação que se molda e se inventa a cada vez que entra em contato com outros universos.

Os projetos da dupla acontecem em diferentes etapas, envolvem várias pessoas e podem durar muitos meses, ou mesmo anos; utilizam estratégias e materiais diversos e podem ter resultados formais variados. Adquirem muitas vezes desdobramentos estéticos e políticos abrangendo museus, galerias de arte e espaços públicos, assim como organizações não-governamentais e instituições públicas no Brasil, na Europa, na África, no México, na Argentina, nos Estados Unidos. Descrevê-los sem prejudicá-los é tarefa árdua, um desafio aos críticos, uma batalha perdida, o que só confirma a vitalidade dessa trajetória artística. A própria noção de obra parece insuficiente para analisar os procedimentos de criação de Dias e Riedweg. Por isso, o que nos interessa abordar, nos limites deste artigo, são os elementos centrais dos dispositivos que os artistas colocam em cena para estabelecer relações com o outro e produzir suas obras – e que me parecem, por um lado, convergir com linhas centrais de uma certa prática documental e, por outro, expandir as possibilidades do documentário contemporâneo.(*1) 

Tomemos inicialmente Devotionalia como exemplo, projeto mais antigo da dupla, realizado com os meninos de rua do Rio de Janeiro. De que forma Dias e Riedweg estabelecem contato com um grupo tão estigmatizado socialmente? Estigmas que impedem muitas vezes uma aproximação mais efetiva, já que muitos meninos incorporam, nos gestos e nas falas, os clichês sociais que circulam sobre eles, e podem reagir de maneira programada a uma entrevista, por exemplo. A proposta foi organizar ateliês para que as crianças e adolescentes pudessem interagir em torno de uma ação comum: fabricar “ex-votos” de cera branca a partir de moldes dos próprios pés e mãos; cada uma dessas pequenas “esculturas” foi acompanhada do registro em vídeo de um desejo de cada menino. Centenas de cópias de pés e mãos, associadas aos vídeos, integraram uma grande instalação que foi apresentada pela primeira vez em 1996 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, formando “um grande ex-voto coletivo” dirigido, segundo Dias e Riedweg, à sociedade, e não a Deus.

O projeto não se limitou portanto a entrevistar os meninos visando chegar a uma “verdade” daquela situação, mas propôs, antes mesmo das conversas, uma atividade conjunta, articulada ao universo deles, com condições de retirá-los de um lugar pré-definido pela mídia, pelos discursos do poder, pelas relações cotidianas que eles travam nas ruas – a idéia dos ex-votos não surgiu do nada, mas do fato de que muitos meninos de rua usam amuletos para se proteger e lidar com a sorte. Uma experiência que servisse para estabelecer laços de confiança, imprimindo maior densidade à interação de todos os envolvidos; que embaralhasse identidades pré-concebidas sem deixar indiretamente de revelar a tragédia social em que eles vivem. Eis o que se destaca no dispositivo de Devotionalia e de outros trabalhos da dupla: um tipo de “contrato” com os participantes que prevê não a reprodução de algo já dado no real, mas a partilha de uma experiência que surpreende e, por isso mesmo, desloca comportamentos, provocando palavras, expressões, atitudes que não estavam previstas. Algo fora do programa, fora do roteiro, fora do controle social. 

Nos dois projetos realizados em São Paulo, a abordagem documental foi mais direta. Em Os Raimundos, os Severinos e os Franciscos, Dias e Riedweg realizaram um documentário sobre os porteiros nordestinos e em Mera Vista Point, 33 pequenos vídeos, de um minuto cada, sobre 33 dos camelôs que trabalham no Largo da Concórdia, no bairro do Brás. Mas em ambos os casos a participação dos personagens não se limitou a contar suas histórias de vida. Para a instalação apresentada na Bienal de São Paulo (1998), os porteiros montaram uma pequena cena no espaço que reproduzia um quarto “padrão”, talvez na garagem do prédio, pintado com cores escolhidas por eles e mobiliado com seus próprios móveis e objetos. Simulam uma volta à casa depois de um dia de trabalho, entrando um a um, agindo como se não estivessem vendo um ao outro, e quando todos estão instalados, olham diretamente para a câmera, deixando claro a cumplicidade deles com o ato de filmar. É a cena final do vídeo que, na instalação, era projetado sobre uma tela defronte do cenário, que se iluminava ao final do documentário. 

Mera Vista Point foi um projeto de arte pública e videoinstalação realizado no Largo da Concórdia para o Arte/Cidade (2002) cuja idéia surgiu durante o trabalho com os porteiros – é lá que eles fazem compras. Cada camelô faz, em um minuto, um pequeno anúncio dos seus produtos, extremamente revelador do que atravessa e constitui o imaginário popular brasileiro. O trabalho imprimiu, durante o período do Arte/Cidade, mudanças no funcionamento do comércio local e envolveu os vendedores na elaboração e exposição dos trabalhos. Um videobar foi construído em uma torre de seis metros sobre as barracas e de lá se via, sobre as lonas, retratos em grande formato dos integrantes do projeto. Cada camelô ganhou uma televisão e um aparelho de vídeo para passar, durante o evento, a edição final do vídeo, cujas cópias eram dadas de brinde a quem comprasse mais de 30 reais nas barracas do Largo da Concórdia. 

Três vezes documentário

Se Devotionalia, Os Raimundos, os Severinos e os Franciscos e Mera Vista Point abordam temas caros à produção documental contemporânea, nenhum dos dois artistas elabora seus projetos a partir de uma tradição documental, nem reivindica essa filiação. São trabalhos que tampouco participam desse circuito de produção e exibição – pelo menos até aqui. Por que então falar em documentário? Primeiro, porque se trata também de uma forma de arte que não existiria sem o encontro com o outro. Entre a multiplicidade de formas inventadas pelo cinema ao longo de mais de um século de história, o documentário tem a particularidade de ter se constituído a partir da interação de no mínimo duas pessoas, em contextos específicos: o cineasta de um lado da câmera, pessoas reais do outro, indivíduos que aceitam fazer parte de um projeto de filme, tornando-se assim “personagens” do documentário.(*2) 

O segundo motivo para essa associação refere-se às convergências do trabalho da dupla com linhas centrais do que ficou conhecido como “documentário moderno”, e mais especialmente, com os filmes do francês Jean Rouch. Se, por um lado, a dimensão relacional funda essa forma de cinema, por outro ela permanece oculta nos filmes até meados dos anos 1950. Era como se não tivesse havido encontro: o documentário reproduzia na imagem realidades, identidades e visões de mundo preestabelecidas, sem misturas nem contaminações entre cineastas e personagens. Rouch rompe com essa postura e afirma a intervenção do cineasta em um documentário porque sabe que qualquer realidade sofre uma alteração a partir do momento que uma câmera se coloca diante dela e que o esforço de filmá-la tal qual é inútil. Nos filmes realizados na África (Eu, um negro/1958, Jaguar/1954-1967, entre outros) ou em Paris (Crônica de um verão/1961), a interação entre cineasta e personagens é reivindicada, assumida, e é dela que surge o filme. Viagens, caçadas, rituais, almoços, jantares, conversas íntimas ou em grupo, a procura de emprego, são algumas situações criadas por Rouch e seus parceiros para ser filmadas. E o que é registrado pela câmera, nas palavras de Jean Rouch, é uma “singular metamorfose”, um “cine-transe”(*3), quando, “graças a esse pequeno monstro de cristal e aço, ninguém é mais o mesmo”.(*4) 

O terceiro argumento diz respeito ao lugar central que a noção de dispositivo tem nos trabalhos de Dias e Riedweg e em parte da produção documental contemporânea, em especial na obra de Eduardo Coutinho. Dispositivo é, nesses dois contextos, um procedimento produtor, ativo, criador – de situações, imagens, mundos, sensações, percepções que não preexistiam a ele. Não é, em absoluto, algo que se dá em toda obra de forma semelhante, mas criado a cada trabalho, imanente, contingente às circunstâncias do presente e submetido às pressões do real. Em Eduardo Coutinho (Santo Forte, Babilônia 2000, Edifício Master, O fim e o princípio) o dispositivo é, antes de tudo, uma máquina que provoca e permite filmar encontros. Relações que acontecem dentro de linhas espaciais (uma favela, um prédio, um vilarejo), temporais (o tempo de filmagem de cada documentário), tecnológicas (os equipamentos utilizados), acionadas por ele cada vez que se aproxima de um universo social. Como falar de religião no Brasil? Percorrendo o país inteiro? Como falar da favela? Filmando várias? A abordagem de Coutinho é clara: filmar em um espaço delimitado e, dali, extrair uma visão, que evoca um “geral”, mas não o representa nem o exemplifica, mas nos diz imensamente sobre o Brasil. 

Contexto e interterritorialidade

Na maioria dos dispositivos de Dias e Riedweg, o contexto é um elemento essencial. É dele que os artistas extraem estratégias para entrar em relação com os participantes de seus trabalhos, construindo o que também podemos chamar de máquinas relacionais. Ao mesmo tempo, o contexto, para a dupla, vem sempre associado a um elemento interterritorial que impede o fechamento de uma situação sobre ela mesma, favorecendo cruzamentos, passagens, trocas, contaminações entre diferentes territórios. É um elemento que permite “fazer o processo em um lugar e levá-lo para outro”(*5), mas também produzir misturas ao longo do próprio processo. Na instalação com os porteiros, a dupla colocou em interação elementos arquiteturais (os espaços reservados aos porteiros nos prédios), tecnológicos (o vídeo, mas também a parafernália eletrônica de uma portaria), discursivos (as conversas com os porteiros, mas também as “fofocas” de moradores em relação aos porteiros), e ainda elementos históricos, sociais, individuais, articulados à vinda do Nordeste, à construção civil de São Paulo, às conseqüências da imigração na vida deles e na cidade. O elemento “interterritorial” foi levar os porteiros para um espaço institucional de arte não como espectadores, mas como atores, criando condições para que eles tivessem de fato uma experiência estética. 

Que efeitos essa máquina produz? Diversos, mas talvez o mais importante seja o de mostrar que os seres e as coisas só existem através da relação, que ninguém pode viver sem modificações efetuadas pelo outro e que, dependendo das interações a que somos expostos, podemos criar novas identidades, ter reações inusitadas, viver diferentes papéis, e não aqueles a que o mundo social nos obrigou. Da mesma forma, esse dispositivo deixa claro que não existe “o porteiro”, um tipo psicossocial com identidade fixa, igual a todos os outros porteiros nordestinos, mas diferentes formas de ser porteiro, ou, para retomar o belo título da instalação, múltiplas maneiras de ser Raimundo, Severino ou Francisco. Quando entramos em contato com os trabalhos da dupla, nós, espectadores, temos acesso tanto ao estado de coisas dos diferentes grupos sociais com os quais eles trabalham – no caso dos porteiros, a história de humilhações cristalizada nos exíguos espaços que habitam e atualizada na relação com os moradores –, mas também ao que resiste a esse estado de coisas, as pequenas liberdades, os pequenos movimentos de criação, “como outras tantas escapatórias e astúcias, vindas de ‘imemoriais inteligências’”(*6), tão bem exemplificados na bem-humorada cena final do vídeo. 

Contudo, há diferenças importantes entre os dispositivos documentais e as práticas de Dias e Riedweg que podem ser vistas de, pelo menos, duas perspectivas. Por um lado, podemos pensar que os artistas expandem e intensificam procedimentos relacionais dos documentários através de agenciamentos espaço-temporais diferentes do cinema. Por outro, que a dupla traz para um momento anterior à exposição pública da obra, experiências físicas, mentais e expressivas que eram até então restritas ao espectador de muitas instalações, independentemente do campo documental.

De toda maneira, a diferença mais evidente diz respeito às proposições feitas aos indivíduos com os quais os artistas entram em contato, que não se limitam às demandas mais comuns dos documentários: falar de si e deixar-se filmar em situações cotidianas. Seja exercitando seus sentidos em laboratórios sensoriais, seja contribuindo para a construção de certas situações ou atuando propriamente, as pessoas implicadas terminam muitas vezes por entrar em lógicas inéditas, ensaiar outras identidades, testar capacidades expressivas que desconheciam; parecem, em alguns casos, ceder com mais facilidade a solicitações arbitrárias do que a pedidos motivados, como se quisessem justamente ser seduzidas, como diria Baudrillard, “para fora de sua razão de ser” (*7). 

Em Voracidade Máxima (2004), os michês de Barcelona colocam máscaras copiadas dos rostos dos artistas e conversam com eles muitas horas, deitados na cama de um apartamento, todos de roupão, rodeados de espelhos, em uma situação de extrema intimidade. Em Throw (2004), moradores de Helsinque aceitam de bom grado jogar diferentes objetos em uma câmera protegida por placas de vidro que os filma no mesmo momento em que é alvo desses ataques. Livro, celular, tinta, farinha, ovo, despertador, urso de pelúcia, torta de creme são atirados nessa câmera que vigia e provoca, reencarnação de um gesto essencial das manifestações políticas que agitaram as ruas centrais da cidade ao longo do século 20 – só que agora, em vez de atirar na polícia e no exército, atira-se em uma câmera, tecnologia central no sistema de controle nas sociedades contemporâneas. 

Eis alguns exemplos de proposições arbitrárias, mas não gratuitas, criadas em estreita conexão com contextos específicos e com grande potencial de deslocar identidades já dadas e visões estabelecidas. Possuem, como já vimos, complexas reverberações estéticas e políticas; provocam mudanças, mas não na situação real das pessoas envolvidas, como quis, em vão, uma certa arte política, mas na sensibilidade dos participantes no momento em que eles, capturados por diferentes fluxos, conseguem desprender-se de si e das fórmulas e idéias prontas que os constituem, fabricadas no confronto diário com diferentes realidades, assim como da “imagem social de marca” que os submete e aprisiona, intensificando discriminações, segregações, isolamento. É para isso que servem prioritariamente os dispositivos: criar mecanismos para deslocar ou dissolver, mesmo que provisoriamente, formas enrijecidas de perceber a si mesmo, o mundo e o outro, abrindo, assim, possibilidades para novas maneiras de ver e ser.

Os projetos de Dias e Riedweg renovam o diálogo entre documentário e arte contemporânea e as estratégias colocadas em cena para ativar o real podem ser vistas como um horizonte possível para impasses atuais da produção documental. Há uma série de outros aspectos do trabalho da dupla que poderiam ser aprofundados, ainda dentro da perspectiva de conexões com o documentário. Gostaria de apontar pelo menos dois deles. Primeiro, as formas de interação com o público que acontecem nas instituições de arte e nos espaços urbanos, produzidas nessa etapa final dos trabalhos por dispositivos relacionais de exposição e não mais de criação dos processos artísticos propriamente ditos. Em seguida, chamar a atenção para a importância de ter, como pano de fundo dessa análise, uma reflexão sobre as relações entre mídia e arte, pois somos cercados e formados por imagens espetacularizadas da pobreza e dos grupos sociais com os quais Dias e Riedweg trabalham. E é contra essas imagens, ou tentando estilhaçá-las, que os trabalhos dos artistas encontram suas condições de produção. 


Consuelo Lins é documentarista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutorou-se pela Universidade de Paris 3 (Sorbonne Nouvelle) com tese sobre documentário centrada na obra do cineasta americano Robert Kramer. Realizou Chapéu Mangueira e Babilônia: histórias do morro (1999) e Jullius Bar (2001). Atuou como pesquisadora e diretora de equipes de filmagem dos documentários Babilônia 2000 e Edifício Master, de Eduardo Coutinho. Dirigiu Leituras (2005), curta-metragem realizado com câmera de telefone portátil e premiado no Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (2006). Fez pós-doutorado pela Universidade de Paris 3 (2005) em torno da produção documental mais marcadamente subjetiva. Escreve regularmente artigos sobre a criação audiovisual contemporânea e publicou O Documentário de Eduardo Coutinho: Televisão, Cinema e Vídeo (Jorge Zahar Editor, 2004), já na segunda edição. 


*1 Para outros percursos possíveis de análise, ver os excelentes textos de Catherine David, Guy Brett e Suely Rolnik, entre outros, que inscrevem os projetos da dupla na tradição das artes plásticas, identificando nos anos 60, e especialmente no trabalho de Lygia Clark e Hélio Oiticica, inspiração de muitas estratégias artísticas de Dias e Riedweg. 

*2 Há, claro, outras formas de documentário, tais como os filmes de arquivo por exemplo. Mas a esfera relacional é dominante na tradição dessa forma de cinema, desde Nanook, o esquimó (1922), de R. Flaherty, considerado o primeiro documentário da história do cinema.

*3 Jean Rouch, “Le vrai et le faux”. Traverses, n. 47 (Ni vrai ni faux). Paris: Centre Georges Pompidou, 1989, p. 181. 

*4 Rouch, J. e E. Morin. Chronique d´un Été. Paris: Domaine Cinéma, 1962, p. 28.

*5 Maurício Dias e Walter Riedweg in Encontros com o outro, entrevista à Glória Ferreira in: Concinnitas Revista do Instituto de Arte da UERJ, ano IV, n° 4, março 2003, pp. 104-120.

*6 Luce Giard, in Apresentação ao livro de Michel Certeau, A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, p. 19.

*7 J. Baudrillard. A arte da desaparição. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 52.

Entrevista 04/2007

A pesquisadora e documentarista Consuelo Lins, autora de um livro sobre Eduardo Coutinho – e também do ensaio sobre o trabalho de vocês no FF>>Dossier – diz que “cinema, para Coutinho, é interação com o mundo”. Isso parece se ajustar a vocês. Arte para vocês é interação com o mundo?

M: Em 2002, fizemos uma pequena antologia com dez trabalhos e escrevemos um texto, O Outro começa onde nossos sentidos se encontram com o mundo, em que tentamos falar sobre a alteridade que guia o nosso trabalho. A questão é: onde a alteridade começa? Eu diria que ela começa no abandono de si mesmo. Quando você abandona o próprio desejo, o próprio direcionamento, quando faz uma pausa para aspirar a algo que vem de fora. Como Oswald de Andrade, eu me interesso por aquilo que não é meu.

W: É o desejo de se completar. Para fazer sentido, preciso conectar com outros. Acredito que sou um fragmento, não sou uma identidade inteira. Ninguém existe como uma ilha, só existe conectado. Eu me faço nesse exercício permanente de me completar.

Noto que, em grande parte dos trabalhos, o outro é o estrangeiro, o imigrante, o refugiado, o que está deslocado de seu lugar. O outro almejado por vocês é sempre o que está distante?

W: Se busco muito perto, talvez caia em um comportamento estruturado a partir de minhas cegueiras. Mas o que seria próximo? Isso é outra pergunta, porque eu posso me sentir fora de lugar estando no meu lugar. Não é uma questão geográfica. São condições humanas: estar no seu lugar ou buscar um lugar.

M: O desejo é o que aponta para o outro. Ele é subjetivo e pode apontar para algo muito estranho a você. Por exemplo, o trabalho que estamos fazendo para a Documenta é um trabalho sobre esse desejo. É um trabalho sobre a fantasia européia sobre a cultura tropical. Hans Staden, que em 1557 escreveu os primeiros textos etnográficos e literários sobre o Brasil, é do subúrbio de Kassel. Ele escreve sobre os tupinambás e o canibalismo; ele conta a experiência dele e chama o livro de A história verdadeira. Esse pedaço de vida dele, fantasioso ou não, vivido ou não, é narrado dentro de outro contexto, que é a Europa em 1557. Por mais preciso que tenha sido seu relato, foi um relato. E o livro foi ilustrado por alguém que nunca veio ao Brasil e que se baseou nos relatos dele. Essas ilustrações do canibalismo viraram um arquétipo visual, que vai dominar durante trezentos anos o imaginário europeu sobre o trópico, vai impregnar toda leitura etnográfica sobre os trópicos e, naturalmente, determinar a história política tropical dentro do contexto universal.

O viajante sempre foi um narrador que preservou muito mais de si mesmo do que do outro? Através de um relato, vemos mais o narrador do que o fato narrado?

W: É importante hoje perceber que, quando olhamos, vemos não o que existe, mas o que estamos vendo. Quando escuto, ouço o que estou ouvindo e não o que está sendo falado. Essa é uma consciência que é relativamente nova, que vem através da psicanálise e outros métodos de análise. A coisa em si existe fora do instrumento do olhar. Essa fragilidade é bonita, é complexa e me interessa.

M: Começamos a nos dar conta de uma história paralela, que é a história da percepção das coisas. Essa é outra história, que vai ser totalmente impregnada, ou guiada, pelo problema da alteridade. Fazer uma coisa, é uma coisa. Agora, ser visto fazendo uma coisa, é outra coisa. E o outro vai contar uma história paralela à que você está contando. Em Hans Staden, você pode ver que existe toda uma idéia inteligente do que seja o trópico, mas que não é a história do trópico. Começamos a nos dar conta agora desse problema que existe na narrativa, seja ela etnográfica ou jornalística. Não dá para ter a inocência de pensar que um documentário conta uma verdade. O documentário faz uma narrativa. Nós trabalhamos com vídeo. O vídeo não é uma imagem que você cria, não é uma linha desenhada numa folha em branco. Quando ligamos a câmera, estamos trabalhando com uma imagem que existe, em princípio. Isso é fazer documentário? Temos que pensar o que define o documentário, porque, na sua base, a imagem nem é documental, nem é fictícia. Uma imagem é uma imagem. A literatura que você vai relacionar a ela é o que vai construir o sentido dessa imagem. Posso colocar diante da câmera uma realidade encenada ou a própria realidade. De toda forma, quando editar, vou estar representando aquilo que filmei, por mais real que seja. Então, as noções de documentário devem ser revistas, como estão sendo revistas as noções de registro.

O trabalho de vocês é justamente orientado no sentido de explorar esses instrumentos de percepção. Cada trabalho aguça novos sentidos. Mas também é possível entender o documentário não só como representação da realidade, mas como a criação de encontros e acontecimentos fílmicos, em que todos os envolvidos têm consciência de estarem vivendo uma situação inventada. Se o documentário contemporâneo prevê essa consciência do encontro entre realizador e realidade, vocês podem se reconhecer como documentaristas?

W: Eu ainda não. Queria definir uma escala mais larga ainda. Eu espero que o nosso trabalho permita um exercício de sentir que esse encontro com a realidade é um fluxo, em que a realidade está sendo construída permanentemente. Isso é quase um dispositivo performático para viver o momento. Meu desejo é continuar estimulando o encontro e o conflito com o material e não agir como Hans Staden, afirmando conhecer a verdade. Isso é enganoso.

M: Eu diria categoricamente que não me reconheço como documentarista. O que nos interessa na questão do documentário é justamente questionar a existência possível desse material tão limpo que a gente possa chamar de documentário. Você pode fazer arte com material real. A arte é ligada à questão da representação e da interpretação das coisas. Isso é o que diferencia a arte do jornalismo, que não tem essa preocupação. Talvez o documentário clássico também não tenha, mas, da produção de documentários, se desenvolveu uma arte. O apego pela prática estética gerou talvez um outro gênero, mas que é arte, não tem mais nada a ver com informação. Os filmes de Jean Rouch, por exemplo...

Não são documentários?

M: Podem ser, mas acho pouco. Aquilo é uma obra de arte perfeita, como uma obra de Picasso. No corpo da obra de um artista você tem alguns trabalhos que reúnem essas qualidades todas e apontam para o sublime. Você tem isso em pintura e tem no documentário. Você tem obras de Jean Rouch e de Eduardo Coutinho que são sublimes.

Então, há um problema de nomenclatura, e certos trabalhos não deveriam ser tratados como documentários?

M: Há um problema de nomenclatura. No texto O Outro começa onde nossos sentidos se encontram com o mundo, a gente pergunta o que é o outro. E então falamos nessa nossa necessidade de nomear as coisas. A gente tem uma necessidade de classificar e ordenar as coisas para poder funcionar em relação a elas.

A palavra documentário aprisiona?

M: Toda palavra restringe. A criação de uma palavra é uma decodificação de uma coisa, que nunca vai ter a complexidade dessa coisa. Esse é o problema do documentário. Ele tem a pretensão de traduzir uma coisa, mas jamais vai ter a complexidade dessa coisa.

Mas pensar o trabalho de vocês só como arte não é restringi-lo também? Seu trabalho não se abre a outros campos que não o artístico?

M: Como todo trabalho de arte. Acho que todo trabalho de arte abre também o campo da reflexão. Qualquer boa pintura faz isso.

Isso é sem dúvida uma conquista dos últimos trinta anos: falar em arte implica em falar de coisas que estão além da arte. Mas o documentário também não conquistou esse estado “expandido”?

M: Acho que o documentário já conquistou isso na execução e na forma. Há documentários que são maravilhosos. Mas não é a realidade que está te emocionando. É a narrativa. É a maneira como a história é contada que te emociona ou não.

W: Aqui temos um problema de testemunho e verdade. Existem problemas muito grandes sobre como falar das coisas do mundo. Do sofrimento, por exemplo. O documentário assume uma responsabilidade que ele não pode ter. Isso é uma armadilha da câmera, que produz essa ilusão de realidade.

M: Uma armadilha na qual a mídia foi a primeira a cair.

W: Sim, há uma expectativa em relação ao documentário a que ele é incapaz de corresponder.

Eu diria que muitos documentários não têm essa pretensão de dizer verdades sobre o mundo. A trajetória de Eduardo Coutinho – que é um dos nossos mais ativos documentaristas, passou pela televisão, etc. – é uma mostra disso. Veja O fim e o princípio, em que o filme é um percurso atrás de um assunto.

M: Essa para mim é a qualidade do documentário. O documentário jornalístico crê que é mais importante um conteúdo específico do que a maneira como ele vai ser contado. O verdadeiro documentário, enquanto arte, nunca vai cair nessa armadilha, pois sabe muito bem que é a narrativa que vai determinar tudo. Nesse sentido, quando você pergunta se nosso trabalho é documentário, eu continuo dizendo que não, porque existe um interesse grande com a narrativa, com o contar histórias. O artista tem três funções das quais ele nunca vai se livrar: a primeira é contar histórias. Depois, o artista também cumpre a função de entreter. A distância que existe entre as coisas e as idéias é quase insuportável e o artista trabalha nessa lacuna, aliviando, levando as pessoas a se divertir. O terceiro papel é o de fazer refletir, de abrir o corpo de reflexão do trabalho. No documentário puramente jornalístico, se é que isso possa de fato existir, essas três coisas se perdem de vista. Até mesmo o repórter de guerra, com toda sua proximidade ao fato, o que ele faz é um relato da guerra. Como diz Walter Benjamin, a cerâmica vai sempre guardar a mão, a caligrafia do escultor.

Quando entrevistei vocês pela primeira vez, Maurício me falou sobre o narrador benjaminiano. Em Devotionalia, as histórias são contadas durante sessões de modelagem. E a abertura do videodocumentário é um jogo de telefone sem fio, que traduz a forma como o conhecimento oral é transmitido, sempre incorporando as marcas do caminho. Devotionalia é uma homenagem a esse narrador benjaminiano?

M: Não, a gente conheceu Walter Benjamin depois de ter feito Devotionalia, a partir de observações críticas sobre o trabalho. Quase sempre fazemos as coisas de forma bem intuitiva. Foi só quando colocamos dez trabalhos juntos e que escrevemos O Outro começa... que sacamos que todo o trabalho era sobre o outro. E esse outro como complemento de nós mesmos. Uma coisa totalmente ligada ao desejo, porque fizemos trabalhos com grupos específicos – meninos de rua, michês, policiais, porteiros, seres humanos como nós –, que estavam dentro de rótulos de identidades que não são nossos. Mas, talvez pelo fato de não ser como eles, haja uma necessidade de refletir sobre eles.

Como vocês criam os dispositivos desses encontros, que são bastante diferentes em cada caso?

W: Para chegar a um patamar de conversa que interessa, a gente precisa de um dispositivo diferente para se aproximar. Sempre há essa troca entre os mundos interior e exterior. Para a gente é fundamental chegar nesse lugar, falando com o outro. Esses trabalhos com áudio, com toque, com cheiro foram métodos muito produtivos para criar um contexto completamente distinto de conversa, para criar outras palavras. Uma preocupação permanente na conversa com alguém é quebrar a coreografia cotidiana, porque estamos quase sempre nos auto-representando. As pessoas muitas vezes falam tudo o que aprenderam, mas não falam o que pensam. Eu gosto muito dos momentos em que a pessoa procura a palavra, encontra-a e daí fala.

No trabalho com o funk que vocês estão desenvolvendo, que formas encontraram para quebrar esses condicionamentos? Que dispositivos de relação criaram?

M: O trabalho não é sobre funk, mas sobre a percepção do exótico. Na verdade, o que constrói o exotismo pode ser tanto uma empatia quanto um medo ou uma certa antipatia. Tanto num caso como no outro, isso vai resultar numa dificuldade de leitura. A mitificação de alguma coisa dificulta o entendimento sobre essa coisa. A aproximação é o que vai nos trazer a noção de entendimento. Funcionamos dessa forma, precisamos pegar as coisas. Então, o universo visível do trabalho será o universo do funk, mas o roteiro é o capítulo 28 do livro do Hans Staden. Nesse capítulo, ele começa dizendo como as mulheres capturavam, decoravam, transavam e comiam os homens inimigos. De como, no ato de ingerir o inimigo, elas ampliavam o próprio poder. O roteiro é sobre tupinambás, o que, em princípio, não tem nada a ver com o funk. A gente está pegando esse roteiro de 1557, jogando nesse universo visual subversivo e fazendo o que os canibais faziam. Estamos encenando com eles aquelas ilustrações. O baile funk do morro é subversivo ao Estado, à cultura, ao comércio, assim como o canibalismo era considerado subversivo em 1557. Então, a decisão por aproximar essas duas coisas dá a forma e o conteúdo do trabalho. O trabalho não é sobre funk ou Hans Staden, mas sobre essa aproximação. Estamos trabalhando com um instrumento que chama ibirapema, que era usado pelas mulheres para dar o golpe fatal. A gente fez um ibirapema com três câmeras que gravam simultaneamente. Não sabemos que está sendo gravado, porque estamos participando daquela festa antropofágica.

Vocês estão subvertendo o Hans Staden. Ele não comeu a carne, mas vocês, quando se jogam na pista do funk, estão simbolicamente comendo a carne. Ou não?

M: Acho que sim. A idéia não é ser o Hans Staden, mas ele entra como um link de Kassel, porque esse trabalho é para a Documenta. Quando descobrimos que ele era de Kassel, dissemos, é ele. Tudo vai se juntar. O funk, que é uma realidade super local... a gente procura sempre realidades locais que traduzam questões que são universais. Porque nenhum trabalho é sobre o contexto. Voracidade máxima não é sobre prostituição. Ele é feito em colaboração com prostitutos, mas é um trabalho que investiga aproximações entre a subjetividade, entre o sexo e a economia. O único encontro possível, onde essas coisas vão se misturar, vai ser na cama. Não há nada que relaciona o cliente com aquele imigrante ilegal que virou um prostituto gay, mas num dado momento ele vai pagar para dormir com esse cara. Assim como existe esse encontro improvável na cama e na prostituição, existe na arte. Saímos para buscar naquilo que nos é muito estranho o entendimento daquilo que nos é muito próximo e essencial. Isso pode se dar onde você menos espera. Como agora: eu nem gosto muito de comer carne, mas acho superinteressante conhecer o universo de Hans Staden, que está me permitindo entender toda uma história da percepção sobre a vida e a cultura dos trópicos, segundo a mentalidade européia, que ainda norteia a nossa cultura. Tudo o que a gente vende ainda tem o rótulo de exótico.

W: A própria brasilidade é uma construção em cima desses mitos. O imaginário visual do funk, dos corpos, é alucinante. Você pega o jornal mais podre do Rio, O Povo, e pega as fotos que saem lá todos os dias, resultado do encontro do policial com esse mundo dos favelados. O que temos é algo próximo das ilustrações do livro de Hans Staden: braços cortados, corpos mutilados para serem devorados publicamente em cada esquina nas bancas de jornal. O povo compra carne humana e a devora visualmente. E como está sendo contada a história dessa aproximação? O próprio funk fala sobre isso, é uma tradução em forma de música e arte. O texto de Hans Staden é um relato, e às vezes a distância temporal entre as duas coisas é quase implodida.

Ao encenar o canibalismo numa pista de funk, vocês estão usando da dramaturgia para expressar alguma verdade?

M: Temos que substituir rapidamente a palavra verdade por precisão. Existe uma busca pela precisão, pela perfeição quase técnica naquilo que estamos fazendo. Não existe uma preocupação com a verdade, mas uma preocupação com o conceito, em transmitir um conceito com uma linguagem mais precisa possível. A gente começa um trabalho mais com questões do que com idéias. Nosso trabalho tem um caráter muito mais investigativo do que afirmativo. Ele sempre parte de algum interesse, de alguma curiosidade. Temos muito pouca coisa a afirmar. Mas temos realmente uma paixão pela precisão.

Sempre que podem vocês se incluem no trabalho?

M: É impossível não se incluir. Eu liguei o botão da câmera.

W: Sim, porque não fazemos um espetáculo para hipnotizar a audiência, o que o cinema muitas vezes faz: uma virtuosa aplicação de fórmulas pra satisfazer, te tirar do real e te eliminar como pessoa consciente. Nesse sentido, a gente é muito mais brechtiano, tentando manter uma resistência, que te faz sentir no espaço, mas também trabalhar com a sedução e ser entertainer. Brecht sempre foi um entertainer que manteve uma resistência antiilusionista, lembrando o espectador a todo tempo que ele está no teatro.

Vocês enxergam o trabalho de vocês na sala de cinema?

M: Nada do que fizemos até hoje daria para passar numa sala de cinema. Mas a gente trabalha no limite das artes visuais. Pra que alguém vai comprar o nosso trabalho? Ao mesmo tempo, a gente não faz o cinema que daria pra encher uma sala. Então, nosso trabalho tem questões que a gente não sabe responder.

Vocês não falam só com o público da arte, falam com muito mais gente, por isso também pergunto sobre a televisão.

W: Seria bacana. Acho que seria um desafio, mas a televisão também teria que se abrir. Teria que mudar tudo.

Talvez o acesso seja mais por infiltração, pelas brechas...

W: Concordo, vejo muito espaço abrindo na internet e na televisão. Toda essa área da circulação de imagens e de conteúdos vai mudar muito nos próximos cinco, dez anos. O monopólio da estética global, por exemplo, aqui no Rio, é sufocante. Mas estou muito otimista em relação a aberturas de espaços para se produzir.

M: Existe a brecha e existe a fenda. Na brecha você entra porque quer e na fenda você cai. Foi através de uma fenda que caímos nas artes plásticas. Foi como cair num buraco, porque nunca decidimos isso de fato. O Walter nunca teve nada a ver com isso e nós começamos a trabalhar juntos quando eu estava de saco cheio do sistema de artes plásticas. A gente se juntou a partir desse cansaço. E começamos a trabalhar justamente com essas metodologias e ações investigativas.

W: O meio em que nosso trabalho está sendo apresentado é o meio das artes visuais, onde fomos acolhidos, onde havia receptividade. No mundo do teatro isso não aconteceu, no mundo do cinema existe um estranhamento. Mas isso não me incomoda, porque se você fica muito acomodado em um lugar, você fica com segurança demais. Não me incomoda essa nossa dificuldade permanente de nos posicionar.

Vocês brigam para encontrar outros lugares que não a instituição?

M: Juksa é uma dessas tentativas de sair da fenda. Foi feito numa ilha do Pólo Norte, onde fomos encontrar três pessoas. A primeira apresentação do trabalho foi feita só para essas três pessoas, e levamos uma cantora de outro país para cantar uma ária durante a apresentação.

W: Há um elemento que não foi mencionado até agora e que é muito importante para a gente e que vários trabalhos percorrem, que é o uso de material de arquivos. Não no sentido da memória, mas também da produção do sentido contemporâneo. A memória é sempre uma construção, também.

Em Devotionalia, o texto de jornal funciona quase que como contraponto à dimensão pessoal do depoimento de cada um. Qual a função do arquivo nesse trabalho?

M: Nosso interesse em usar material de arquivo é exatamente criar um contraponto, porque o que nos interessa é a história subjetiva daquilo que estamos contando. Ou seja, inserir a subjetividade nos contextos em que ela foi perdida. A última coisa que uma pessoa de classe média pensa, ao se falar de policial, menino de rua, porteiro ou prostituto, é que essas pessoas tenham uma subjetividade. É aquilo a que a Suely Rolnik brilhantemente se refere como “subjetividade lixo”. O que a gente tenta fazer no nosso trabalho é a reinserção da subjetividade nas histórias que a gente conta. No caso de Devotionalia, o texto de jornal é aquilo que lemos todos os dias e que nos anestesia. Tentamos tornar visíveis esses mecanismos através dos quais a subjetividade é extraída dos contextos para facilitar a nossa relação midiática com o mundo. Quando o menino conta que o amigo morreu, e você lê exatamente a mesma história no jornal, você enxerga a distância que há entre as duas coisas, como se se tratassem de dois universos distintos. O que, de fato, são.

Isso produz uma revelação, que talvez seja a precisão a que você se referia.

M: É isso, exatamente. A possível verdade está aí, nesse jogo formal de inclusão de contrapontos.

Biografia comentada Paula Alzugaray, 04/2007

Artistas viajantes

A condição de imigrante permeia não apenas as escolhas de vida de Maurício Dias e Walter Riedweg, mas principalmente suas posições artísticas e políticas. Entre os anos 1980 e 1990, Maurício Dias viveu como imigrante na Europa. Foi o tempo em que, desacreditado do sistema da arte como um lugar possível para a expressão poética, deu um giro na posição que ocupava como artista plástico, trocando uma produção em pintura e desenho por ações então estrangeiras ao campo da arte. Do encontro com Walter Riedweg, atuante nas esferas do teatro, da música e da performance, surge uma prática coletiva e híbrida, apoiada sobre um projeto a uma vez estético, cultural e político. Um trabalho que, como aponta a crítica e curadora francesa Catherine David, no texto Do próximo e do distante: algumas notas sobre o trabalho de Dias & Riedweg, “nos convida a repensar a relação entre estética e política e a questionarmos politicamente as práticas artísticas”. De fato, a cada trabalho realizado, dispositivos são renovados no sentido de buscar uma nova percepção da realidade, algo parecido ao frescor do primeiro olhar sobre o mundo.

Há oito anos, Maurício Dias voltou a viver em sua cidade natal, o Rio de Janeiro, e agora é Walter Riedweg, nascido em Lucerna, na Suíça, quem vive a condição de imigrante no Brasil. Mesmo com essa troca momentânea de papéis, permanece em ambos – através de seus projetos – a mesma verve experimental que leva todo imigrante a movimentar-se por terrenos insólitos. 

Não apenas o primeiro trabalho desenvolvido pela dupla Dias & Riedweg, Serviços internos (1995), mas a maior parte de seus projetos passa pela questão da imigração. “O imigrante é aquele que se desloca não só no espaço geográfico, mas no espaço de tempo. Isso dá a ele um status único de percepção do mundo”, afirma Maurício Dias. Reinstaurar a complexidade da vida e adensar o grau de percepção das pessoas em relação a sua realidade. Por aí passa o ativismo das propostas de Dias & Riedweg, que se realizam por meio de experiências sensoriais interativas – encontros encenados, situações orquestradas, ateliês de sensibilização, exercícios de improvisação e outras estratégias de relação e comunicação com os grupos trabalhados. 

O primeiro trabalho de Dias & Riedweg foi feito para o Shedhalle, em Zurique, na Suíça, uma instituição de arte contemporânea dedicada muito mais a propor questões e reflexões do que a propriamente montar exposições. Serviços internos foi realizado com 280 crianças estrangeiras, integrantes das aulas de integração nas escolas públicas de Zurique, a partir de exercícios de associação entre o olfato e a memória. Multilíngües, vindas de países diversos da África e da Ásia, as crianças ganharam, como idioma comum a todos, um jogo sensorial proposto por Dias & Riedweg. “A comunicação se deu através dos cheiros e eles entenderam que queríamos uma representação do país de onde haviam saído e desse novo lugar onde eles tinham acabado de chegar”, conta Maurício Dias. 

O vídeo documentou os depoimentos dos alunos, que associaram cheiros a acontecimentos passados e às primeiras impressões da nova realidade. Como um sintoma da metodologia que viria a se desenvolver nos próximos doze anos de trabalhos da dupla, os depoimentos eram feitos sempre de olhos fechados, indicando a valorização dos outros órgãos dos sentidos em detrimento da visão. Depois do olfato em Serviços internos, veio o tato em Devotionalia (1994-2003), o trabalho com tato, olfato e corpo em Question Marks (1996); olfato, audição e visão em Inside & Outside the Tube (1998); paladar em Sugar Seekers (2004). Em todos esses trabalhos, os workshops de sensibilização foram utilizados para mobilizar a memória dos percalços e percursos da viagem de cada um. Além do trabalho sensorial, as estratégias da dupla envolvem uma série de outras atividades, como ateliês de desenho, escultura, ou dinâmicas teatrais. A viagem, porém, permanece como fio condutor de todos os projetos. 

A viagem não está apenas e tão somente nos conteúdos das conversas que se estabelecem com o outro. A viagem está na própria dinâmica de vida e trabalho dos artistas, já que a maioria de seus projetos é feita longe de casa. Algumas vezes viajando a convite de Bienais e instituições artísticas, outras, não, o interesse está sempre em desenvolver dinâmicas específicas para mobilizar questões locais. No Rio, em Zurique, Atlanta, São Paulo, Cairo, Alexandria, Veneza, Tijuana, San Diego, Johannesburgo, Munique, Barcelona ou nas ilhas nórdicas, buscam realidades locais que traduzam questões universais. Os encontros encenados com os michês de Barcelona, em Voracidade máxima (2003), por exemplo, representam os vínculos que ligam questões como dominação econômica e imigração. Já em Os Raimundos, os Severinos e os Franciscos (1998), o enfoque no espaço arquitetônico miserável reservado aos porteiros de edifícios nobres paulistanos indica o desprezo das elites brasileiras em relação ao trabalhador. 

A experiência do mundo, em Dias & Riedweg, mesmo que andarilha, não se mede por distâncias geográficas. “O que seria a proximidade?”, pergunta Walter Riedweg em entrevista ao FF>>Dossier. “Posso me sentir fora de lugar estando no meu lugar.” O último projeto, em andamento, Funk Staden (2007), que está sendo realizado para a Documenta 12, de Kassel, na Alemanha, explora duas instâncias da distância, a temporal e a espacial, e estabelece uma ponte entre a cidade de Kassel do século 16 e a cidade do Rio de Janeiro do século 21. Pelo grau de intervenção na realidade, pelo trabalho com questões que são impalpáveis e com coisas que são invisíveis (permanecem escondidas sob rígidas convenções sociais), Dias & Riedweg não podem ser reconhecidos pura e simplesmente como artistas plásticos, ou visuais. Como viajantes, eles se movimentam por terrenos ainda não plenamente absorvidos pelo sistema de arte e isso lhes garante alguma liberdade de expressão e movimentação. Mesmo que passem perto da ação e da assistência social (embora nunca tenham se instrumentalizado nesse sentido), e alguns trabalhos possam ser identificados como uma arte pública, o que permanece no corpo da obra de Dias & Riedweg é o desajuste a modelos e categorias. Dessa forma, habitam o estado incógnito da vida no exílio.

Referências bibliográficas

Galeria Vermelho
O site da galeria tem um arquivo bastante completo sobre os artistas, com imagens, vídeos, textos e bibliografia. Inclui a versão em português do texto Do próximo e do distante: algumas notas sobre o trabalho de Dias & Riedweg, em que a crítica e curadora francesa Catherine David comenta a exposição O Outro começa onde nossos sentidos se encontram com o mundo, realizada no CCBB-RJ em 2002 e no MACBA (Museu d’Art Contemporani de Barcelona) em 2003. 

Arte/Cidade
O site do projeto apresenta vasta documentação – entre mapas, projetos, desenhos, fotos e textos – sobre a realização da videoinstalação pública Mera Vista Point, realizada no Arte/Cidade Zona Leste, em São Paulo, em 2002.

Multitudes
Site da revista francesa trimestral de política, arte e cultura, oferece a versão em francês do texto de Suely Rolnik Lê laboratoire poético-politique de Maurício Dias & Walter Riedweg. O texto também foi publicado em espanhol no catálogo da exposição O Outro começa onde nossos sentidos se encontram com o mundo (2002-2003).

Kiasma 1
Site do Museum of Contemporary Art Kiasma/Finnish National Gallery, importante centro de cultura visual de Helsinque, Finlândia, apresenta sinopses e informações sobre diversas obras da dupla, entre elas Devotionalia, This Is Not Egypt, Mustaffa’s Feast, Tutti Veneziani, My Name in Your Lips e Throw.

Kiasma 2
Matéria publicada na revista Kiasma enfoca as estruturas narrativas e a metodologia dos “encontros encenados”, da dupla Dias & Riedweg.  

MACBA

Site do Museu d’Art Contemporani de Barcelona apresenta extratos de Voracidade máxima e textos e informações sobre a obra, que pertence ao acervo do museu.

Mau Wal: Encontros traduzidos
Imagens, informações e textos relacionados ao documentário da série Videobrasil Coleção de Autores que trata do trabalho da dupla. A obra foi realizada pela Associação Cultural Videobrasil em 2002.