Entrevista Eduardo de Jesus, 12/2004
Como você começou na produção de vídeos?
Tudo começou na Colômbia, em Cali, na Universidad del Valle, enquanto estudava Comunicação Social. Planejava estudar Cinema, mas meu orçamento não me permitiu. Então decidi estudar Comunicação, e inventar para mim mesmo que estudava “Cinema Documental” com a ajuda dos meus professores da área de audiovisual que o curso oferecia. Havia outras pessoas com os mesmo interesses no curso; não queríamos ser jornalistas, e tínhamos professores que nos apoiavam.
Foi a situação ideal, pois tínhamos formação como comunicadores sociais, mas também como cineastas-videastas. Começei com fotografia em preto-e-branco, e não me fazia falta a imagem em movimento. A fotografia me bastava: podia registrar o que sentia que ia embora, o que desaparecia. Captar alguma coisa da minha Nicarágua distante, da minha Nicarágua que se despedaçava. Da minha revolução fracassada.
Como trabalho final do curso de Fotografia tínhamos que fazer um “audiovisual”, que era contar uma história com fotografias fixas e som, tudo seqüenciado com um projetor de slides e um gravador. Fazer esse “audiovisual”, que se chamou Muchachos de la Prensa, foi a experiência mais importante de linguagem visual que tive. O sentido da montagem, a importância do que diz cada imagem. Esse trabalho do meu professor Luiz Hernández revolucionou minha maneira de ver o mundo. Podia dizer coisas com as imagens!!!
Muchachos de la Prensa foi o início do meu compromisso com essa revolução perdida. O roteiro foi um poema homônimo de Ernesto Cardenal, publicado em um livro de fotografias de Richard Cross: fotos da guerra, da destruição. Façanhas heróicas que não via no meu entorno atual.
Depois fiz outros audiovisuais com meu amigo Mauricio Prieto. Todos os trabalhos que eram solicitados no curso eram feitos como audiovisual, e logo mudamos para o PowerPoint no computador. Com a mesma lógica das fotos fixas, fizemos Un foto fashion para todos, que fazia um contraponto com a lógica de mercado da marca de roupas DIESEL com uma nova marca, BAMBA: for loosers living, marca de roupas para os deslocados e os desvalidos da sociedade contemporânea.
Acreditando na nossa vontade de fazer vídeos, fizemos também 39 con Roosevelt, experimentando a adrenalina de usar a câmera na rua durante três meses e aprender a fazer justiça com o material gravado na ilha de edição. Aproveitamos que a Universidade estava em greve e procuramos a editora do canal universitário por intermédio do nosso amigo Guillermo Arias, que estava estagiando como editor.
Logo nos matriculamos nas aulas de “vídeo experimental” com o professor Oscar Campo, importante documentarista colombiano, professor da área de audivisual do nosso curso. O tema do semestre era “a violência”, e quando tivemos de propor um trabalho em torno dele, Mauricio Prieto disse: “Não existe nada mais sangrento que a religião, vamos fazer um videogame da história religiosa, tipo Mortal Kombat”, e assim foi. Trabalhamos com Edward Goyeneche durante um ano, pesquisamos toda a história da arte, clássica e popular, nos divertimos com a nossa ignorância diante de Botticelli e dos outros mestres da pintura, visitamos os lugares onde estavam os videogames, falamos com especialistas no meio, trabalhamos com o animador Felipe Alfaro e o resultado foi “JHS: the salvation”.
Depois segui com o curso, com a disciplina Projeto de Roteiro, na qual fizemos uma ficção muito ruim, e logo Projeto Documental, que fiz com Alex Díaz e Maria Lid García, Color girassol. Este projeto de documentário de curta-metragem foi a entrada na televisão como indústria; o trabalho era um retrato de uma velha pintora, e fazia parte da série En 3 dimensiones, para o canal nacional Señal Colombia.
Para o mesmo canal logo fiz meu primeiro documentário em média-metragem, Fin del bombo, sobre uma experiência de fusão musical de jovens com preocupações parecidas com as minhas. Eu queria ter sido músico, e eles foram meus colegas na época em que abandonei a música e entrei na fotografia. Era uma dívida que tinha com eles e comigo.
Logo veio a oportunidade de fazer María Isabel Urrutia: ciudadana del oro, uma biografia audiovisual sobre essa importante personagem esportiva e política da Colômbia. Serviu muitíssimo como experiência de TV educativa e cultural na indústria midiática e terminou sendo um documentário digno, que me alegra muito cada vez que o vejo.
De volta à Nicarágua me envolvi com os Documentos sobre a Post-Post-Post Revideolución en Nicaragua, trabalhei Documento 1/29 con Mauricio Prieto, e logo Documento 2/29 e Documento 3/29, que fiz sozinho nesse processo de abandonar a Colômbia e buscar o caminho de regresso à Nicarágua. Enfrentar o passado, aceitar o que tenho hoje como país.
Depois veio Auras de guerra. Mas sobre isso falo mais adiante.
Seus trabalhos são bastante políticos. Isso sempre foi uma preocupação sua?
Sim, são políticos; é uma linha temática da qual não tenho podido fugir. Creio que sofri a herança de uma produção artística ligada à política, à estética de propaganda que se desenvolveu durante a Revolução Sandinista, que por sua vez foi influenciada pela de Cuba e a da Ex-União Soviética.
Eu vivi toda a produção cultural dos anos 1980 como espectador de primeira fila. Além disso, a nacionalidade nicaragüense parecia nascer dessa mesma produção cultural, era-se nicaragüense através da música de Mejía Godoy, da poesia de Ernesto Cardenal, das pinturas de Pérez de la Rocha. Hoje meu trabalho é pesquisar os mecanismos dessa arte, desmantelá-la, tratar de entendê-la, e produzir novos discursos e significados, atualizando as mensagens. Retratar a época em que vivo, abrir os olhos diante da realidade herdada dessa utopia que foi a revolução.
Qual são os resultados dessa pesquisa? Não sei, talvez não nos agrade, talvez nos tire a ilusão desse sonho que acreditamos seguir vivendo e que não nos deixa enfrentar com inteligência o presente para pensar novas estratégias de resistência. Se a resistência é ingênua, condenada a reproduzir comportamentos robóticos e autômatos incapazes de imaginar uma nova transformação. Revolução significa movimento.
Como tem sido o trabalho com o coletivo E.V.I.L.?
O Exército Videasta Latino-Americano (E.V.I.L.) é um grupo de amigos do vídeo, cujo objetivo principal é manter uma produção audiovisual que não se intimide com as exigências e linhas editoriais dos meios de comunicação de massa. É uma aposta na liberdade de expressão e na difusão de assuntos e propostas estéticas que são rejeitadas pelo “establishment” dos meios de massa. O E.V.I.L. é energia e vontade de trabalhar; não temos uma lista de membros oficiais, muitos dos seus membros são anônimos, e todo o tempo estamos pensando em estratégias mais diretas para cumprir nossos objetivos.
Recentemente o E.V.I.L. realizou, com o apoio do HIVOS, o Instituto de Historia de Nicaragua y Centroamérica (IHNCA), a empresa audiovisual Erimotion e algumas colaborações individuais, entre os dias 27 de setembro e 1o de outubro de 2004, o primeiro workshop de vídeo experimental na Nicarágua.
Como produto final desse workshop está sendo editado um DVD com mais de 20 vídeos curtos, que serão distribuídos em centros educativos, tantos colegiais e universitários como artísticos. Neste DVD poderão ser vistos todos os trabalhos dos participantes do workshop e algum material extra de surpresa. Neste momento estão sendo finalizados os últimos trabalhos, para logo proceder à reprodução do disco. Esperamos que este DVD esteja pronto em fevereiro de 2005.
Para um futuro próximo temos planejado criar um Cineclube que funcione semanalmente e que apresente todo tipo de filmes, de ficções e documentários a filmes experimentais. Existirá espaço de discussão depois de cada exibição, e será oferecido material didático sobre os assuntos tratados para quem o queira.
Continuamos acreditando que o espaço estudantil é ideal para esse tipo de atividade, e confiamos que o Instituto de História da Universidade Centroamericana manterá seu apoio à nossa organização. Estamos em processo de fazer novos contatos com colégios e outros espaços acadêmicos.
Este Cineclube será inaugurado com a apresentação dos vídeos realizados no marco do workshop, e terá continuidade com materiais audiovisuais de todo tipo, especialmente com as futuras criações dos entusiastas do audiovisual na Nicarágua.
Convencidos da necessidade de formar novos realizadores, estamos coordenando novos workshops com profissionais do audiovisual, tanto nacionais como estrangeiros, e assim criar uma rede de conhecimento entre as gerações de criadores experientes e as de jovens e novas iniciativas, necessitadas de criar uma ponte com outras pessoas com as quais possam compartilhar interesses criativos.
No documentário Auras de guerra você esteve primeiramente fotografando as pessoas na praça e depois voltou para entregar as fotos. Qual foi a motivação inicial para realizar esse trabalho? Qual a idéia central?
Realizar esses retratos era um compromisso comigo mesmo e com as pessoas que ainda acreditam em alguma coisa. Era meu projeto de graduação em Comunicação Social, e durante muito tempo fiquei pensando e pesquisando. Tinha feito muitas fotos na praça, desde 1997, em todos os dias 19 de julho. Mas não me satisfaziam, achava que estavam repetitivas, muito parecidas com as que se publicaram nos meios e que não contavam muitas coisas novas. Então me decidi por cortinas, devido ao meu interesse pelo retrato clássico do povo latinoamericano. Cortinas enrugadas, mal colocadas, em estúdios de fotógrafos populares. Isso me seduzia e era o que mais queria fazer em fotografia.
Então adaptei essa tradição fotográfica com a realidade do ano 2000 que se vivia na ex-praça da revolução. O resto foi improvisação, tanto nas tomadas como no laboratório. Eu gosto muito de jazz, como música e como atitude perante a vida, e me arrisquei na improvisação.
Aos fotografados prometi entregar a foto no dia 31 de julho do mesmo ano, mas muito poucos acreditaram, outros estavam bêbados, e somente cinco pessoas vieram para buscar a sua foto. Então, para o ano 2004, aproveitando o 25º aniversário da pobre revolução, decidi imprimir 5 mil cartazes para distribuir no dia 19 de julho, primeiro na nova Catedral de Manágua, e logo na Praça João Paulo II. Este dia estabelecia publicamente o pacto entre a Igreja Católica e a Frente Sandinista. O cardeal Miguel Obando e Daniel Ortega montaram seu show, e eu distribuí os pôsteres. De um lado do pôster estavam os retratos, do outro, a foto de uma parede ruída onde aparece um grafite de Sandino. O restante está no vídeo: a entrega, as reações das pessoas e a minha aventura enfrentando as pessoas que se incomodaram.
Fale um pouco da Post-Post-Post Revideoluciónque aparece no texto de abertura da série “Documentos”. Do que se trata?
Três vezes “post” significa para mim que a revoução é algo de um passado muito, muito, muito distante, talvez não cronologicamente, e sim psicologicamentre; me interessa trabalhar o conceito de tempo, e nele existem muitas dimensões, por exemplo a dimensão do trauma, do sofrimento das mentes que estiveram em guerra, que se sacrificaram por um ideal e que logo foram traídas. O tempo do trauma. A história como trauma. A cronologia de um trauma revolucionário. Na Nicarágua existem setores da classe dominante que querem apagar a história, tanto da direita como da esquerda. Para a direita a revolução é algo obscuro, do que não se tem nada que falar, do que há de se envergonhar, é o tempo culpado pela nossa situação atual.
Para a esquerda é uma façanha que se recorda ingenuamente, porque se submete a análises e pesquisas exaustivas. Podia haver resultados inconvenientes para eles como responsáveis atuais do fracasso de um movimento social que teve muitas possibilidades de dar uma lição de amor, solidariedade e resistência inteligente ao mundo inteiro.
Então o termo “post-post-post” cumpre a função de dizer: sim, é algo distante, mas aqui está, aceito que querem esquecer, mas ainda não o entendemos. Pesquisemos o fenômeno social e façamos uso das ferramentas tecnológicas e estéticas da cena contemporânea, tanto nas ciências sociais como na arte, para dar um passo ao entendimento do nosso comportamento como seres humanos.
Por outro lado, o termo “revideolución” trata de dar importância à ferramenta do vídeo para pesquisar essa revolução, e em geral para dizer coisas de uma maneira mais fácil e mais barata. O vídeo como substituto da película, como assassino da película, da química, mas ao mesmo tempo como uma ferramenta para democratizar e ampliar a produção de mensagens através da cinematografia, que finalmente é escrever com o registro do movimento. Hoje fazemos películas com orçamentos ridículos, se os comparamos com o dinheiro de que necessitávamos 10 anos atrás, e ainda mais, 30 anos atrás.
Como é a cena de arte eletrônica na Nicarágua? Existem espaços de exibição regulares?
Espaços específicos não existem, estamos tratando de criá-los. A arte na Nicarágua é concebida como óleo sobre tela. A arte tem que ser bonita e caber na parede das casas burguesas e dos bancos. Existe somente um museu de arte em toda a Nicarágua, e o critério da curadoria de sua coleção é o gosto de seu dono, que é banqueiro. As galerias cumprem os gostos do mesmo público e poucas vezes se arriscam a mostrar trabalhos experimentais, muito menos eletrônicos. A formação acadêmica em meios eletrônicos não existe em nenhuma instituição educativa, e a maioria dos nossos artistas trabalha somente guiada por seus instintos. O workshop de vídeo experimental organizado pelo E.V.I.L. trata de dar opções nessa linha, mas não é tão fácil. A revista Estrago está incluindo um CD em cada edição com trabalhos em vídeo, áudios e fotografias, mas não conseguimos organizar espaços sólidos e permanentes. O Cineclube que o E.V.I.L. pretende organizar aponta para esse objetivo. As tentativas de produzir espaços de debate e crítica não têm funcionado, e terminam sendo espaços para dar continuidade a lutas sem sentido entre grupos artísticos.
Na última exposição em homenagem ao 25º aniversário da Polícia Nacional, no Teatro Nacional Rubén Dario, templo da cultura institucionalizada na Nicarágua, rejeitaram meu trabalho em vídeo El diálogo en el vidrio y el cambio de clima, porque seu conteúdo poderia ser mal interpretado devido ao contexto da guerra do Iraque em uma exposição da Polícia. Isso fez com que a exposição não tivesse nada em vídeo, pois somente eu havia enviado um trabalho com essa técnica.
Dessa forma, o espaço para trabalhos eletrônicos se limita a pequenas mostras organizadas pelos mesmos artistas em espaços alternativos, como o Instituto de Historia de Nicaragua y Centroamérica (IHNCA), da Universidad Centroamericana (UCA), e a Sala de Teatro Justo Rufino Garay. Por outro lado, estão sendo feitos experimentos com amigos músicos e se projetam vídeos sincronizados em concertos de rock do “Grupo Armado” e em festas com DJs, como é o caso de Revolta Sonora.
A IV Bienal de Artes Visuais Nicaragüenses de 2003 foi um escândalo, já que vários prêmios foram para trabalhos em vídeo. Peluche, de Wilbert Carmona, ganhou o primeiro prêmio; Oscar Rivas ganhou menção honrosa com uma videoinstalação; e o meu trabalho Documento 2/29 também obteve menção honrosa. Creio que se está trabalhando, mas espaços que fomentem ainda não existem.
Como você vê a relação entre memória, vídeo e política em seus trabalhos?
Tremenda pergunta... O vídeo para mim funciona como um livreto de notas, anotações sobre as coisas que vivo, como indivíduo privado e como indivíduo que também faz parte de um entorno social no qual também está a política.
Nesse sentido é uma ferramenta para refletir, entender meu entorno, como um processo para me entender. Nessas notas videográficas está tudo, minha família, minha intimidade, a política, minha memória e minha história. Talvez por isso decidi usar o título “Documentos” para a série de 29 curtas sobre a Post-Post-Post Revideolución. Documentos para interpretar, para deixar coisas ditas, nas quais a palavra “documento” parece significar “importante”.
A memória contida nos vídeos que tenho recompilado me mostra coisas ocultas, que explicam meu presente. Tenho aprendido a entender meu presente estudando o passado, descubrindo a forma do espiral que se repete, dos padrões de comportamento que seguem se reproduzindo. O vídeo e a fotografia me permitem acessar a memória não institucionalizada, e, o mais importante, me permitem construir minha própria visão sobre a história.
Por isso é que vídeo/memória/política vão juntos, mas nem sempre vou querer trabalhar sobre política; chegará o momento em que vou superar essa etapa, esse assunto, e me dedicar mais a outras coisas, como as que já existem que não tem que ver com política, como por exemplo Un passeo, da série Limite de caducidad, que se centra mais na materialidade do celulóide de 8 mm em relação à minha história familiar.