A história política da Nicarágua, sobretudo os últimos 25 anos pós-Revolução Sandinista, que colocou fim à ditadura de 40 anos de Anastacio Somoza, é um dos temas que Ernesto Salmerón foca em suas obras. Aliando muita experimentação em relação ao uso das imagens, algumas recolhidas em arquivos, a um forte senso político, os vídeos e as fotos de Salmerón abrem múltiplas significações ao sentido das imagens, da memória e da política.
Em vez de se contentar com um passado glorioso, construído oficialmente pela história, Ernesto Salmerón trata de recompor essa imagens fazendo com que a situação da Nicarágua apareça nas memórias reconstruídas. Isso talvez justifique o texto logo no início de Documento 1/29, com direção de Salmerón e Maurício Prieto, que fala de uma “post-post-post revideolución em Nicaragua”. Essa “revideolución” talvez nos mostre como esse artista nicaraguense usa o vídeo e suas possibilidades criativas como modo de recompor, refletir e sobretudo entender e mostrar a história. Apropriações estéticas envolvidas em um profundo sentido político.
Podemos perceber isso na série Documentos. No primeiro, Documentos 1/29, o que vemos é um trabalho de edição quase artesanal que contrapõe imagens de jovens soldados da ditadura de Somoza a imagens do próprio ditador e a incessante frase do locutor que teima em repetir exaustivamente a palavra democracia. No ir-e-vir das imagens e nas sucessivas repetições parece que Salmerón nos mostra novas visões da ditadura e seus desdobramentos na vida nicaraguense. Nesses trabalhos (1/29, 2/29 e 3/29) o que vemos é o vídeo como um exercício da memória para dar novos parâmetros à história recente.
Se em alguns documentários, como Maria Isabel Urrutia (2003), sobre a atleta colombiana levantadora de pesos e medalhas de ouro nas Olimpíadas de Sydney em 2000, Salmerón parece equilibrar seu estilo experimental incluindo uma série de depoimentos em formato bastante tradicional, em outros a verve experimental fala mais alto, como em Auras de guerra.
Esse documentário foi concebido originalmente para registrar a entrega aos sandinistas de fotos realizadas durante as comemorações do aniversário da revolução em 2000, em uma espécie de documentação/ homenagem ao povo sandinista. Fotos de crianças, jovens, casais e famílias me registros que mostram a diversidade do povo nicaraguense. Salmerón reuniu as fotos num cartaz que trazia no seu verso uma imagem de Sandino bastante desgastada, como pela ação do tempo. No entanto, ao chegar com os cartazes nas comemorações de 25 anos da revolução em 19 de julho de 2004, a recepção foi bem direrente.
O que era uma homenagem passou a ser visto como uma afronta e as pessoas abordaram Salmerón, que precisou se justificar. Uma reportagem de uma emissora de TV sensacionalista complicou ainda mais a situação. No vídeo essas imagens são intercaladas com outras do processo de impressão, feito por funcionários de uma gráfica. Os desdobramentos do trabalho do artista acontecem em muitos campos, que vão desde o registro do trabalho de reprodução/impressão, o encontro com as pessoas nas ruas, o embate com a emissora de TV e naturalmente o registro fotográfico das pessoas em 2000, ponto inicial da ação.
Alguns dos vídeos de Salmerón são produzidos junto ao coletivo E.V.I.L. – Ejercito videasta latinoamericano, que promove oficinas e workshops de vídeo experimental e também se reúne para produzir trabalhos como o irônico Nota de imprensa 001 (2004), que mostra a censura na primeira Conferência Centro-Americana Anticorrupção. O vídeo mostra, uma espécie de telejornal cheio de interferências visuais e sonoras, a censura algumas obras de caráter mais político, particularmente que pedia às pessoas que escolhessem, entre três políticos que incluíam o próprio presidente da Nicarágua, qual deles era o mais corrupto.
A importância do trabalho de Salmerón é justamente aliar experimentalismo formal às imagens e à ação política em trabalhos engajados, que nos remetem a alguns dos trabalhos de Paul Garrin, como A man with the camera (fuck you Vertov), de 1989. Foi por intermédio de José-Carlos Mariátegui, diretor da ATA – Alta Tecnología Andina e frequente colaborador da Associação Cultural Videobrasil, que conhecemos o trabalho de Ernesto Salmerón, que agora temos o prazer de mostrar nesta nova edição do Dossier de 2004.