Ensaio Edvaldo Souza Couto, 05/2009
Danillo Barata: as fronteiras tecnológicas do corpo-imagem
Não é exagero dizer que as inovações tecnológicas já não se encontram predominantemente nos laboratórios. Cada vez mais elas fazem parte do cotidiano e estão nos corpos de milhares de pessoas que acompanham as ondas da biotecnologia nestes tempos de cibercultura. Entre os muitos encantamentos e perplexidades da vida atual, inscritos na dissolução progressiva das múltiplas fronteiras tecnológicas que envolvem o corpo e as imagens do corpo, Danillo Barata é um artista das conectividades dos sistemas biológicos e artificiais, da sensorialidade e outros modos de subjetivação diante das estreitas interfaces criativas e técnicas entre o corpo, a mente e o mundo digital.
É um artista promotor de fecundos diálogos em meio às inusitadas e fascinantes encruzilhadas contemporâneas que recriam novos imaginários corporais. A percepção do corpo-imagem pelo artista ocorre de modo paradoxal, pois o corpo é, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto de suas representações. E nada mais além delas; afinal, o corpo não existe fora das representações que dele fazemos. Tal percepção expressa a estética ininterrupta da construção e da desconstrução metamórficas das corporalidades sideralizadas. Esta análise pode ser observada nas videoinstalações e nos vídeos selecionados para este Ensaio.
VIDEOINSTALAÇÕES
Passarela
Para o homem ocidental, o corpo se tornou o lugar de sua identidade e seu modo de ser. Nossa época se rende aos diversos cultos que celebram e festejam a corporalidade. Das práticas esportivas ao uso proliferado do silicone e às cirurgias plásticas, muitas técnicas e terapias servem para hipervalorizar e pavonear o corpo nas ruas, praias, clubes, páginas de revistas, programas televisivos, filmes publicitários, imagens diversas na internet, nas passarelas, nas galerias de arte. A todo instante somos convidados a administrar a própria aparência, a superar e redesenhar formas físicas. Tornou-se imperativo ter um organismo camaleônico, sujeito ininterruptamente às transformações. As imagens promocionais do corpo mutante, em toda parte, evocam os muitos modos pelos quais esse objeto pode ser manipulado e agenciado, em nome de uma perfeição sempre distante e, talvez por isso mesmo, cada vez mais desejada. Esse universo fashion, de aparências sedutoras, exalta uma estética decorpos de passagem, convertidos em modelos a ser perseguidos. Mas nem tudo é fascinantediante da possibilidade real de se construir e modificar a aparência, e ter o corpo quese planeja e programa. A obsessão pelo perfeito também é alimentada por uma contínuainsatisfação com os seus resultados provisoriamente obtidos e desde já superados. Talvez essa insatisfação revele uma outra estética, a da obsolescência, a de corpos que jamais conseguem a atualização suficiente e, por isso, estão sempre à margem das clássicas passarelas. São corpos interditados.
Em Passarela, Danillo Barata denuncia esse vazio. O artista constrói esse trabalho utilizando seis macas, em cima das quais estão diversos televisores, exibindo vídeos com desfiles de moda, onde corpos supostamente perfeitos ocupam as passarelas e se impõem às pessoas. Curiosamente, também nesses vídeos,outras passarelas, longe de qualquer glamour, expõem a evidência de um cotidiao onde tantos corpos desfilam suas interdições, mutilações, imperfeições várias. Essas anatomias depreciadas, esse corpos marginalizados, escamoteados, traduzem outras facetas da corporalidade. Para o artista, as macas representam o lugar de ajuste, onde as pessoas se mutilam e passam por processos de transformação para realizar as exigências dasprimeiras imagens, aquelas das representações corporais dominantes. Um hospital, um centro cirúrgico, uma enfermaria. Esses lugares são emblemas dos desconfortos vividos por aqueles que perseguem um tipo ideal, mas têm que conviver com seus corpos carentes de novas intervenções e atualizações.
Com sua obra, Danillo Barata diz que os modelos corporais convivem com seus contramodelos. As fronteiras entre definições e representações autorizadas do corpo e as definições e representações consideradas escandalosas são tênues. Talvez, todas elas ocupem uma mesma passarela onde desfilamos nossos corpos marcados pelas interdições e incompletudes. O corpo como inscrição de acontecimentos Em toda parte, multiplicam-se os discursos e as técnicas para a liberação do corpo de antigos vínculos religiosos, filosóficos, geográficos, temporais, morais, pedagógicos. Nas últimas décadas, por intermédio do projeto genoma, a tentativa científica é tornar o corpo de cada pessoa livre do patrimônio cultural e genético. Tornou-se urgente eliminar toda e qualquer insatisfação física e mental, acabar com uma real ou suposta imperfeição, corrigir cada detalhe, construir a forma considerada mais adequada, prevenir uma embrionária possibilidade de doença, alterar características que nos desagradam, manter o vigor da juventude, exibir a aparência mais saudável, festejar a beleza conquistada com a ajuda dos avanços tecnológicos e científicos: regimes, terapias,cosméticos, cirurgias, próteses, manipulação genética. Em meio a tantos recursos para a remodelagem só é feio, fora de forma, flácido, enrugado e envelhecido quem quer, quem não se ama, não se cuida, não se pavoneia.
O culto ao corpo se tornou um estilo de vida. A promessa fascinante de um ganho suplementar de saúde, juventude e beleza conquistouum espaço inédito nos meios científicos e artísticos, na mídia, em todas as esferas do nosso cotidiano. Esse corpo inacabado, considerado como um objeto sempre disponível para reformas, deve aumentar os seus níveis performáticos. Para vencer os perigos crescentes de tornar-se obsoleto, o corpo deve ser continuadamente turbinado para acompanhar a sofisticação das máquinas e atender às novas demandas de prazer e liberdade próprias daatualidade. Mas a obsessão pelo corpo considerado perfeito, a forma esguia e lisa, inevitavelmente convive cada vez mais com as sobras tidas como inadequadas e depreciadas. Nossa época valoriza o esbelto, mas a população é cada vez mais obesa. Celebra a juventude, mas nossos corpos são cada vez mais flácidos e enrugados, muitas vezes, precocemente. Festeja a saúde, mas os fantasmas das doenças nos cercam. A vida agitada, o estressecontínuo das grandes cidades parecem estar sempre a esgotar o vigor das pessoas.
A instalação O corpo como inscrição de acontecimentos revela esse paradoxo. Quando muitos desejam eliminar as marcas do tempo e das vivências, o artista nos diz que é no corpo que os acontecimentos são inscritos. A alimentação desregrada está nas gorduras acumuladas, a força dos anos está na moleza da carne, as experiências estão nas insistentes rugas que tanto nos atormentam. O som utilizado é o de coisas sendo arrastadas, de corpos sendo arrumados. As imagens exibem corpos gordos e magros, jovens e não tão jovens, em gestos que traduzem esforços de respiração e manutenção do físico. Mostrados inicialmente de frente, logo os corpos se movimentam, nos viram as costas. Com as cabeças abaixadas, cada modelo está voltado para si mesmo. Para o artista, podemos disfarçar as inscrições dos acontecimentos na superfície da pele. Mas, por trás do aparente, dentro de nós, estão todas as marcas, sofrimentos e alegrias perdidos, imperfeições e incompletudes que traduzem o que somos.
Corpos interditados
Beleza, vigor, juventude. Em torno desses vetores são elaborados os discursos e os modelos do corpo considerado perfeito. Para atingir os padrões de perfeição, cada vez mais o corpo vital se alimenta com técnicas estimulantes capazes de construir e acentuar os traços tidos como graciosos, a resistência e a aparência sempre jovem e saudável. De diversas maneiras, é necessário acelerar o organismo, extrair dele mais movimento e prazer. É preciso testá-lo, perseguir o máximo de rendimento, superar obstáculos, romper limites, bater recordes. A lógica da excitação técnica diz que o organismo equipado, reconfigurado ininterruptamente, tornou-se modelo de corpo válido e eficiente. Em contrapartida, a noção de deficiência mudou. Não só os portadores de anomalias, defeitos físicos aparentes, descarnados, esfolados, esqueléticos, obesos mórbidos etc. passam a ser considerados grosseiramente obscenos. Na escalada da obscenidade estão todos aqueles que não têm o corpo suficientemente equipado, esculpido e preservado pelas próteses e demais tecnologias protetoras e promotoras de novos reflexos e estímulos físicos e mentais. Em outras palavras, qualquer corpo tido como “normal”, apontado como belo, forte e jovem, mas que estiver fora dessa obsessão pela transformação veloz, desvinculado da estimulação perpétua, passa a ser considerado obsoleto, ultrapassado, feio, velho, deficiente e, por consequência, culturalmente depreciado.
Sem modificar cotidianamente a arquitetura do corpo, seja pela adição de próteses superficiais, seja pela intrusão intraorgânica destas no seio de nossos órgãos, já não temos como reajustar a nossa consciência do mundo. Já não temos como glorificar a nós mesmos. Equipar o corpo, construir a eficiência. Esse é o nosso paradoxo. A perfeição parece logo ali, conquistável. Mas que ninguém se engane. Quanto mais o corpo é trabalhado cirurgicamente, quanto mais ele é equipado com próteses e produtos que visam à elaboração sucessiva de novos designs, mais distante permanece do ideal de perfeição. As pessoas ficam mais insatisfeitas, sofrem. A todo instante as formas elaboradas são ultrapassadas, os modelos são envelhecidos e postos fora de circulação. Isto significa que de alguma maneira todos nós, perseguidores obsessivos da máxima eficiência, independentemente do nível de elaboração corporal, nos tornamos inválidos, deficientes, portadores de corpos interditados, carregando o fardo de umaestrutura física progressivamente depreciada.
Os equipamentos de última geração de hoje são as esquisitices técnicas de amanhã logo cedo. Do mesmo modo, as formas físicas conquistadas, com esforço, trabalho e grande investimento financeiro e emocional, são imediatamente vencidas e abandonadas. A todo instante é imperativo partir para novas conquistas. Essa urgência faz crer que, de fato, não há um modelo de perfeição, mas uma ilusão do perfeito. Belo, vigoroso e jovem, eficiente e apreciado não é o corpo que adquiriudeterminadas formas, que se adaptou a certos padrões. Belo, vigoroso e jovem, eficientee apreciado é o corpo que não cessa de ser atualizado, independentemente da forma provisória que ele adquire e da qual já pretende se livrar. Em Corpos interditados,é essa a condição e o destino do corpo em cena. Várias telas exibem imagens de diversoscorpos, masculinos e femininos, jovens e não tão jovens, negros, morenos, brancos. A técnica de exibição dos corpos é a antropometria, “lado, frente, verso”, comumente utilizada pela polícia. Cada sujeito, com sua leveza e graça, movimenta-se, perseguindo essesângulos. Aparentemente as imagens projetadas na tela não têm nada de grotesco, nenhuma forma física é marcada por qualquer anormalidade.
Os corpos mostrados pelo artista podem ser todos considerados “normais”, desses comumente oferecidos em toda parte pelo mercado humano. Mas, na atualidade, é justamente nessa suposta “normalidade” que está a perversão, o esquisito, o feio, o desprezível, o que não deve ser apreciado e cultuado. Esses corpos não representam visivelmente a dinâmica da mutabilidade física e mental proporcionada pelas tecnologias que revolucionam a arquitetura do corpo na cibercultura. Porém, nem tudo está perdido, é sempre possível eliminar parte das deficiências, construir formas mais valorizadas, apreciadas. Nesta obra, não é por acaso que, enquanto os corpos exibem as suas obsolescências anatômicas, podemos ouvir o barulho de carnes e ossossendo cortados, manipulados, enxertados, colados, costurados. É essa a música supostamente capaz de mobilizar e inserir as pessoas no culto ao cibercorpo, a que embala e faz dançar os corpos siliconados, protéticos, lipoaspirados.
VÍDEOS
Soco na imagem
De certo modo, por muito tempo, a idealização da beleza corporal correspondeu à representação do corpo imóvel, na escultura, pintura e mesmo fotografia. A ideia era de que a apreensão estética do corpo em repouso podia ser mais intensa que em movimento. Entretanto, os estudos sobre os movimentos de um corpo que anda ou corre surpreendem ao revelá-lo na sucessão de figuras. Com elas, mais que nunca, é preciso exercitar o olhar para perceber os detalhes dos membros, do tronco, do rosto, no instante mesmo dos deslocamentos. A fragmentação é a cena. É o próprio corpo. A percepção estética do corpo em movimento pressupõe que o olhar seja capaz de se unir ao ritmo da imagem, onde as ambiguidades dos deslocamentos constituem as próprias representações. Em Soco na imagem é o próprio corpo de Danillo Barata que briga, soca e acaricia sua imagem no espelho. Agora, o corpo é a própria imagem refletida na superfície de um espelho ou de uma tela, envolto em imaginários digitais. É o movimento manipulado pela câmera que o deixa lento ou mais acelerado, nítido ou cheio de sombras, visível ou invisível, que se autoafeta e se autorretrata.
A imagem não é mais uma mera cópia do objeto dito real. Ela expressa o rompimento e a apropriação simultânea do corpo que só existe como imagem. Não por acaso a técnica usada é o looping, que permite ao artista sair e retornar para a frente da câmera, num embate que não tem fim. Esse diálogo travado com e contra a câmera é na verdade uma luta consigo mesmo. Muitas vezescontra as tiranias do espelho que soca no sujeito seu corpo incompleto, em descompasso com as formas físicas celebradas nas mídias e atualizadas nas imagens modelos que nos cercam. É como se, ao socar a imagem, ao socar a si próprio, o sujeito pudesse ver e tomar consciência das suas fraquezas e agonias, que entram e saem de cena, se fazem presentes e ausentes nas superfícies refletoras do corpo-imagem. Soco na imagem também pode ser visto como uma alegoria do desconforto promovido pelo imenso fluxo de imagens ao qual somos submetidos diariamente. Por isso o performer mantém a guarda e não cessa de deferir golpes na própria imagem. Mas também pode ser no sujeito fruidor, naquele que o observa. A mesma tensão entre o corpo e a imagem, o repouso e o movimento, o modelo físico valorizado ou depreciado, está presente entre o agente fruidor, o artista e a obra. Capitália Inspirado na Divina comédia, de Dante Alighieri, e nos pecados capitais tematizados pelo escritor italiano, o vídeo olha para a vida noturna do centro de Salvador e de seus múltiplos e assombrados personagens. Pode ser visto como uma representação da cidade abandonada, marcada pela ruína de si e de seus habitantes. Se tudo é tomado pela profunda escuridão da noite, é para ressaltar o estado de pesadelo no qual a vida urbana tensionada e complexa arrebata corpos passantes que vagam por aí. De um lado, os carros avançam pelas avenidas com destinos aparentemente incertos e desaparecem nas curvas distantes, no breu da noite preta.De outro, os personagens, com seus pecados e virtudes noturnos, cambaleiam como sonâmbulos que seguem a esmo pelas calçadas esburacadas de lugares dilacerados, com urbanização caótica e natureza devastada.
É preciso levar em conta esse imponderável: a inscrição de objetos, pessoas e lugares no fluxo da dinâmica do urbano. Pois é aí, na experiênciado abismo, que cada um deve encontrar o seu pertencimento nesses territórios des/configurados por sistemas precários de transportes e comunicação. Para o artista, é no desordenamento da cidade grande, cercado de ameaças e prazeres fugazes, que as fronteiras sãosuspensas ou ultrapassadas. Antigas fronteiras sociais, políticas, econômicas, culturais e educacionais perdem sentido nesses lugares tomados pela desagregação. Velhas pontes, galpões em ruínas, pátios de carros usados, escadarias sujas e fedorentas por onde rolam as pessoas com todas as suas misérias integram a paisagem Capitália. Vícios e virtudes são condenados pela pressa e pelo desmoronamento das sensações. Entre a doçura que fascina e o prazer que atormenta e mata, as promessas de esperança e de liberdade se esvaem e também se renovam.
É nesse giro sem-fim dos lugares e dos corpos abandonados às margens das rodovias, viadutos e calçadas que a Capitália recria as tramas da vida em permanentes deslocamentos e mutações. * * * A produção de Danillo Barata, tanto as instalações quanto os vídeos – que se completam – é tomada pela vertigem dos corpos-imagens desestruturantes da contemporaneidade. São múltiplas, inquietantes e fecundas as suas abordagens. É nessa complexidade que se inscreve a poética do artista, ávido e crítico desse mundo mágico gerado e alimentado pelas ilusões óticas, que questiona e investe nas subjetividades progressivamente assinaladas pela dissolução e renovação das fronteiras entre o orgânico e o inorgânico, entre o corpo e as imagens. No contexto das redes eletrônicas, a base da criação artística é a metamorfose; os apelos sinestésicos do corpo são refeitos pelas múltiplas conexões de sentidos e possibilidades.
Na cibercultura, os nossos processos cognitivos se desenvolvem cada vez mais em parceriacom os sistemas eletrônicos e digitais. O corpo tecnologizado se insere em novas fronteirais digitais, continuamente dissolvidas e renovadas. Nessas interfaces, Danillo Barata encontra as bases poéticas para o seu trabalho. Professor na Universidade Federalda Bahia, Edvaldo Couto é autor de O homem-satélite. Estética e mutações do corpo na sociedade tecnológica (Unijui, 2000) e organizador da coletânea Walter Benjamin: formas de percepção estética na modernidade (Quartet, 2008). Formado em filosofia pela Universidade Estadual de Santa Cruz (BA), é mestre nessa disciplina pela PUC-SP e doutor em educação pela Unicamp. Estética, corpo, comunicação e tecnologias são alguns de seus principais temas de estudo.
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A produção de Danillo Barata, tanto as instalações quanto os vídeos – que se completam – é tomada pela vertigem dos corpos-imagens desestruturantes da contemporaneidade. São múltiplas, inquietantes e fecundas as suas abordagens. É nessa complexidade que se inscreve a poética do artista, ávido e crítico desse mundo mágico gerado e alimentado pelas ilusões óticas, que questiona e investe nas subjetividades progressivamente assinaladas pela dissolução e renovação das fronteiras entre o orgânico e o inorgânico, entre o corpo e as imagens.
No contexto das redes eletrônicas, a base da criação artística é a metamorfose; os apelos sinestésicos do corpo são refeitos pelas múltiplas conexões de sentidos e possibilidades. Na cibercultura, os nossos processos cognitivos se desenvolvem cada vez mais em parceria com os sistemas eletrônicos e digitais. O corpo tecnologizado se insere em novas fronteirais digitais, continuamente dissolvidas e renovadas. Nessas interfaces, Danillo Barata encontra as bases poéticas para o seu trabalho.
Entrevista 05/2009
Como você ingressou no mundo da produção artística e quais foram suas primeiras experiências?
Desde muito jovem fui influenciado por meu pai, José Mário Barata, pintor, autodidata, que desenvolvia uma produção árdua com seu cavalete e suas tintas a óleo. As conversas sobre arte tornavam-me cada vez mais interessado nos processos artísticos. Ingressei em 1997 no curso de licenciatura em desenho e plástica da Universidade Federal da Bahia. A Escola de Belas-Artes tornava-se o ponto de referência para meus estudos como arte-educador, pois lá poderia desenvolver trabalhos que refletissem o papel do artista como um interlocutor na sociedade. A educação tornava-se uma estratégia a ser utilizada por mim nessa empreitada.
Entre 1998 e 2000, trabalhei no núcleo de cenografia do teatro Castro Alves, sempre incorporando minhas práticas profissionais e as pesquisas desenvolvidas na Escola de Belas-Artes ao processo cênico.
A partir do estudo da fotografia, no segundo ano de curso, tive um deslumbramento com aimagem. O professor Ailton Sampaio me sensibilizou no sentido de dar início à passagem da fotografia estática para a fotografia em movimento. Nascia, assim, o meu primeiro curta-metragem, Barbearia ideal, filmado em 16 mm. Em 2000, na Diretoria de Imagem e Som da Fundação Cultural do Estado da Bahia, desenvolvi uma série de trabalhos em vídeo e o projeto Videoclipes de apoio aos novos talentos da música baiana. A articulação entre a imagem e o som, na perspectiva do videoclipe, tornava o trabalho muito interessante do ponto de vista de minha formação profissional. Durante esse processo de investigação audiovisual, criei um grupo de estudos sobrepoéticas visuais com colegas da Escola de Belas-Artes. Para fundamentar nossos encontros, frequentávamos assiduamente as bibliotecas da Escola de Belas-Artes e da Facom (Faculdade de Comunicação); nossas leituras e “ensaios audiovisuais” ajudaram a desenvolver uma abordagem poética no processo audiovisual. No sexto semestre do curso, fui convidado pelo diretor do ICBA (Instituto Cultural Brasil-Alemanha/Instituto Goethe) a participar da coletiva Terrenos, com artistas que tinham em comum uma identidade de linguagem, fortes características criativas e de contemporaneidade, como Zuarte, Marepe, Zau Pimentel, Ayrson Heráclito, bem como outros artistas contemporâneos da novíssima geração. Foi minha primeira mostra.
No vídeo Narciso, você atesta: “Meu nome é Danillo Barata, e o meu trabalho é a minha verdade”. O corpo é parte imprescindível dessa verdade?
Venho perseguindo o que é verdadeiro para mim. Acredito que esse trabalho trata não só da vaidade do autor, mas também do que é ser artista na contemporaneidade. A relaçãonarcísica com a sociedade de consumo e a necessidade de espelhamento foram determinantes para o conceito da obra. O enfrentamento com o corpo e a relação com o espelho determinaram o olhar para o diálogo conceitual do trabalho. Narciso foi a minha primeira experiência formal em vídeo. O interesse por expressar o rompimento e a apropriação de minha própria imagem foi determinante para o início da pesquisa com o corpo. A despeito da fotografia e do filme, existem outras maneiras decapturar a imagem. O espelho é a principal forma de inspecionar o nosso corpo; quando a câmera e o vídeo substituem o espelho, temos a body art, a arte do corpo. A imagem no espelho era eu mesmo e mais alguém. Interessava-me, sobretudo, como experimentar minha vontade de tratar de um mito grego que trazia muito do universo contemporâneo, e que se amarrava a conceitos atuais como espelhamento e reflexão.É importante relatar que eu experimentei uma forte relação com o meu corpo por estar posando e misturei isso a uma tradição do autorretrato.
Ainda em Narciso, em seu ombro esquerdo se vê uma tatuagem que reproduz o código de barras de produtos comerciais. O corpo industrializado, produzido em série, é o corposintonizado com as demandas do mundo contemporâneo?
Os padrões estéticos ditados pelo mundo fashion vão além da prescrição do que vestir, interferindo na construção social do corpo. Tais padrões, tornando-se pontos de referência, lançam o homem numa procura desenfreada de “espelhos externos”, fetiches de uma sociedade de consumo que possibilitam a construção de uma imagem ideal. Assim, o homem ocidental rende-se a estilos muitas vezes impostos, sendo seduzido pela mídiaa “comprar” modelos físicos distantes da sua realidade. Vive-se um tempo de extremo inconformismo com o próprio corpo, a tal ponto que a modificação do físico por meio de interferências cirúrgicas, implantes e mutilações é algo corriqueiro, banal. Numa tentativa de autovalidação, o mundo das aparências criado pelos sistemas da moda eda publicidade se apropria da permanência do objeto artístico, fazendo constante referência e buscando inspiração em obras de arte consagradas. No entanto, tais esforços não conseguem sobreviver ao imediatismo de uma sociedade que se rende aos fenômenos midiáticos. Curiosamente, a necessidade de se expor em conformidade com os padrões corporais do momento busca sua validação em representações de mitos televisivos e imagens que são efêmeras ao extremo, caracterizando assim a obsolescência do corpo, que passa a estar em constante necessidade de atualização. Essa corrida por padrões cada vez mais distantes e inatingíveis gera um imenso vazio que potencializa a eterna insatisfação do homem moderno. O homem em relação aos prazeres do mundo e à luz da compreensão que a religião tem do corpo – seja o catolicismo ou o Candomblé – também tem lugar de destaque em suas poéticas. O corpo é chave para a complementaridade ou para o conflito entre homem e divindade? Acredito que o corpo histórico, o corpo que se inscreve como lugar de acontecimentos, ou seja, o corpo que é fruto das transformações culturais, sociais, econômicas e estéticas, está na base da complementaridade entre o homem e o divino. A minha religião integra a natureza e o corpo para dar passagem ou comunicar-se com o sagrado. Nesse sentido, acredito nas dinâmicas contemporâneas que incluem o sincretismo.
Além do corpo, o Candomblé é uma manifestação que atrai seu interesse. Por quê?
Faço parte do terreiro Gun Cevi da nação jeje mahim e sou filho do Rombono José Carlos. Trata-se de uma nação que quase foi extinta na Bahia. A resistência foi a base de nossa manutenção. Fiquei encantado com a nobreza da Gaiakú Luiza da Rocha (Fomo Oyássi),que esteve à frente da nação jeje mahim no Rumpami Rum Maú em Pedras do Macaco – Cachoeira. Minha produção em muitos aspectos faz menção a um povo que lutou e luta pela manutenção de sua identidade e pelas suas políticas de pertencimento.
Alguns trabalhos seus,como a série Panorama 360º , apresentam imagens de uma iniciação do Candombléque não são fáceis de obter, pelo fato de que raramente se permite a filmagem nesses momentos. Como foram realizados os registros e o que foi preciso para convencer os envolvidos a deixá-lo usar essas imagens?
Em 2008 tive dois trabalhos comissionados pelo Museum der Weltkulturen de Frankfurt:os documentários Leben mit den Goettern: der Afrobrasilianische Candomblé in Salvador da Bahia e Yemanjá, Goettin des Meeres: das Fest. O convite surgiu pelo fato de a produtora conhecer minha inserção na religião e pelo respeito e conhecimento que tenho dela. Ela também é uma pessoa que possui muitos vínculos com a religião. De todo modo, oprocesso de convencimento se dá através de muita conversa e de limites éticos implícitos. Finalmente, tenho um banco de imagens muito generoso de algumas cerimônias.
Em que projeto você está trabalhando agora?
Desenvolvo, neste momento, um projeto para a Werkplaats voor Beeldende Kunsten VrijeAcademie, na Holanda, que conta com a pesquisa dos historiadores João José Reis, Fláviodos Santos Gomes e Marcus J. M. de Carvalho. Trata-se da trajetória de vida de um africano muçulmano chamado Rufino. Ele foi trazido como escravo para a Bahia no século 19 e vendido para o Rio Grande do Sul, onde comprou sua alforria. Em seguida, embarcou no Rio de Janeiro como cozinheiro de um navio negreiro. Em 1841, outro navio em que trabalhava foi apreendido pelos ingleses e levado para Serra Leoa, onde ele ficou e estudou a língua árabe. De volta ao Brasil, esse personagem fixou residência em Recife, onde foi preso em 1853 sob suspeita de conspiração escrava, e contou a história de sua vida sob interrogatório. A proposta de meu trabalho é criar uma narrativa audiovisual que discutaas experiências, os contextos e os sentidos da movimentação desse africano pelo mundo atlântico, usando para isso um formato imersivo multitela. Ganhei em 2007, no 16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil, o prêmio de residência artística Prêmio Videobrasil WBK Vrije Academie. A Vrije Academie oferece estúdios de pós-produção e ensaio para formatos instalativos e performances envolvendo mídia. Lá, iniciei um trabalho no Panorama 360º, que usa dez projetores para criar um ambiente imersivo com 360º de imagem em movimento sincrônico. Trata-se de uma estrutura interessante para pensar o conceito de vídeo expandido. Em maio e junho de 2008, concluí uma primeira etapa doprojeto, que pretendo finalizar em uma próxima viagem. Foi necessário voltar à Bahia e coletar mais imagens. Com o olhar treinado e a experiência adquirida na primeira viagem, terei oportunidade de finalizar o projeto. Retorno em julho de 2009 para finalizar o projeto e espero que possa ser potencializado, através de mostras agendadas pela Word Wide Visual Factory, que tem à frente Tom van Vliet, criador do World Wide Video Festival.
Biografia comentada 05/2009
Professor do quadro permanente no Centro de Artes, Humanidades e Letras da UniversidadeFederal do Recôncavo da Bahia, Danillo Barata é autor de uma obra que tem como centro arelação entre corpo e vaidade, corpo e sistema da arte, corpo e mundo, entendido, sobretudo, em seus estratos sociais. Está interessado na produção contemporânea que articulaperformance, imagem e arte eletrônica.
A motivação para criar precede sua entrada no curso de desenho e plástica da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 1997. Desde muito antes, a casa paterna já lhe oferecia o primeiro e fundamental encontro com o mundo das artes: um dia a dia marcado pelo fazer artístico e pelas obras do pai, José Mário Barata, pintor autodidata. “As conversas sobre arte tornavam-me cada vez mais interessado nos processos artísticos, sobretudo no processo criativo”, conta Danillo.
Durante o período de estudos universitários, o artista desenvolveu trabalhos como assistente de cenografia e integrou por dois anos o núcleo dessa área no Teatro Castro Alves, em Salvador, onde assinou cenografias como a do espetáculo Lábaro estrelado, dirigido por José Possi Neto. As pesquisas que desenvolvia na escola de belas-artes se incorporavam aos processos cênicos.
No segundo ano de faculdade, o contato marcante com a fotografia causou o que o artistadefine como um “deslumbramento com a imagem”. Sob esse impulso, escreveu seu primeiro roteiro e dirigiu seu curta-metragem Barbearia ideal (1998).
Do teatro soteropolitano, o artista passou à Diretoria de Imagem e Som da Fundação Cultural do Estado da Bahia, onde desenvolveu uma série de trabalhos em vídeo e criou o projeto Videoclipes de apoio aos novos talentos da música baiana. Os clipes Cidade de São Camaleão (para O Cumbuca),Garotas boas vão pro céu, garotas más vão pra qualquer lugar (para Rebeca Matta) e Alucinação (para a banda Dois Sapose Meio), que dirigiu, serviram de importante introdução ao casamento de som e imagem.
Em paralelo à intensa produção audiovisual, o criador reflete sobre seu processo de criação em um grupo de estudos que o aproxima de outros estudantes da Escola de Belas-Artes da UFBA interessados em investigar as poéticas visuais.
Em 2000, é convidado a integrar a coletiva Terrenos, ao lado de artistas baianos da novíssima geração: Zuarte, Marepe, Zau Pimentel, Ayrson Heráclito, Marco Aurélio, Gaio, Iêda Oliveira e Eneida Sanches. Expõe a videoinstalação O inferno de Narciso, concebida a partir da “relação narcísica com a sociedade de consumo e a necessidade de espelhamento” e com base no mito grego descrito em Metamorfoses, de Ovídio.
Protagonizado pelo artista, o projeto desencadeou o interesse de Barata em explorar o próprio corpo como fonte de reflexão e matéria-prima de obras posteriores. “Experimenteiuma forte relação com o meu corpo por estar posando e misturei isso a uma tradição do autorretrato”, conta.
Também determinante para essa decisão foi a produção de seu segundo curta-metragem, Capitália (2002). Inspirado em outro clássico, a Divina comédia de Dante Alighieri, o filme sobrevoa a vida noturna no centro de Salvador e flagra seus personagens à luz dos pecados capitais.
No ano seguinte, explora a linguagem da instalação em O corpo como inscrição de acontecimentos, em que relaciona rostos e torsos de palavras/conceitos como “vigor” e “juventude”. Segue-se o vídeo Barrueco, realizado com Ayrson Heráclito em 2004, em que despontam elementos simbólicos da masculinidade e da negritude
Em 2007, volta a utilizar a própria imagem no vídeo Soco na imagem, em que boxeia com a câmera – e, por consequência, com o espectador e a tela – como se com um adversário ou espelho. Exibida em loop no 16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil, a obra chama atenção para a trajetória do autor.
Com ela, conquista uma residência artística que realiza em 2008 na Werkplaats voor Beeldende Kunsten Vrije Academie, em Haia. Nasce aí a série Panorama 360º, que ganharáoutros desdobramentos em 2009, em nova viagem à Holanda.
Nessa primeira leva de vídeos, o autor realiza uma espécie de “decupagem explícita” de registros feitos na Bahia; o que muda a cada episódio são os ângulos, velocidades, edições, personagens e recursos sonoros, em visões distintas dos mesmos fatos.
Na segunda fase da série, Barata trabalha com os historiadores João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus J. M. de Carvalho para retratar a trajetória de um escravo africano que comprou sua alforria no Brasil, estudou árabe em Serra Leoa e foi preso sob suspeita de conspiração.
“Iniciei um trabalho complexo, que usa dez projetores para criar um ambiente imersivo com 360º de imagem em movimento sincrônico. Trata-se de uma estrutura interessante para pensar o conceito de vídeo expandido.”
Primeiro-secretário da nova diretoria da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (gestão 2009/2010), o artista também atua como representante regional da associação na Bahia – e integra ainda, como pesquisador, o Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Arte e Patrimônio.