Ensaio Ralph Borland, 04/2009
Multiplicação
Zimbábue vivo e em cores
Expressões locais, artefatos de viagem vinculados aos flagelos da imigração e mapas da realidade africana – que podem resultar de tramas compostas com clássicos da literatura universal, como A revolução dos bichos, de George Orwell, notas de dinheiro ou listas telefônicas – são alguns dos ingredientes dos quais se serve o artista zimbabuano Dan Halter.
Halter oferece um mergulho sem boia, intermediários ou tradutores no cotidiano multifacetado do continente negro, por meio de releituras de ditos populares como “Ghana must go” [fora, Gana], que borda em uma sacola usada por imigrantes clandestinos na Nigéria na instalação Bags (2008); ou do quadro HIV (Henry the Fourth), em que colabora com mulheres soropositivas da Cidade do Cabo, e que se refere ao apelido utilizado pelos zimbabuanos brancos para aludir ao vírus da Aids.
“Não sei se me definiria como um ativista per se. Eu me vejo como alguém que destaca certos temas e os deixa abertos para que o observador decida como quer agir a respeito, se é que o queira”, diz Halter.
Exibido no 16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil (2007), o vídeo Untitled (Zimbabwean Queen of Rave) lhe garantiu um prêmio no Programa Videobrasil de Residências. Em imagens alternadas, a obra mostra jovens brancos que dançam em uma rave ao ar livre e jovens negros que protestam, todos ao som de Everybody’s Free (to feel good), da zimbabuana Rozalla, hino dance dos anos 1990. A montagem irônica responde a “uma realidade pessoal” e também “à distância radical entre brancos e negros” que o criador testemunhou ao longo de sua vida.
“Assim como para muitos zimbabuanos, os meios para subsistir e seguir uma vocação agoraestão fora do país. Sendo assim, seu material e o foco de sua obra começaram a se expandir de dentro do Zimbábue para as experiências dos zimbabuanos fora dele”, observa, sobre Halter, o artista e pesquisador sul-africano Ralph Borland em seu Ensaio.
Entrevista Ralph Borland, 04/2009
Como a situação política e social do Zimbábue influenciou sua vida e proposta artística?
A situação no Zimbábue é muito interessante e me deu muito material com que trabalhar. Minha família foi atacada no país em 2005 e desde então mora na Europa, em um exílio autoimposto. Gostaria de retornar ao Zimbábue para viver, quando a situação do país melhorar.
Qual é a história de Untitled (Zimbabwean Queen of Rave)?
Em 1991, eu estudava no mesmo colégio de John Miller, o irmão da popstar Rozalla, quando o onipresente single dela, Everybody’s Free (to feel good), foi lançado. Foi surpreendente ver uma canção zimbabuana no topo das paradas internacionais de música. Isso foi no auge da cena rave, e Rozalla se tornou conhecida como “A rainha da rave”. Essa também foi a época em que os protestos na África do Sul estavam fervilhando. Em Untitled (Zimbabwean Queen of Rave) eu combino alguns desses elementos e também acontecimentos posteriores como a minha experiência ao comparecer a grandes raves públicas na Europa e depois no Zimbábue. O vídeo expressa uma realidade pessoal e também a distância radical entre brancos e negros que eu estava vivenciando.
O vídeo fala da distância entre ser negro e branco, rico e pobre na África. Seu objeto The Big Five é uma bolsa em que as palavras “corrupção”, “crime”, “pobreza”, “Aids” e “racismo” aparecem sobre imagens da fauna africana. Como vê o continente hoje e seus maiores problemas?
Muitos dos problemas que a África enfrenta hoje vêm do fato de historicamente os africanos terem sido destituídos de sua cultura e identidade, forçados a viver na pobreza e em rebelião contra seus opressores. No caso do Zimbábue, isso terminou apenas há pouco, e os revolucionários que lutaram contra a velha guarda agora estão no governo. São pessoas que tiveram todos os seus direitos roubados; muitas foram presas injustamente. É compreensível que a corrupção e o crime tenham aparecido, já que estão tomando de volta o que lhes foi negado por um longo tempo. Sair das táticas de guerrilha destinadas a derrubar o governo anterior para a posição de governar o país responsavelmente, e levá-lo adiante, é um passo enorme. Gerações de amplos setores da população têm de ser educadas e então começar a se tornar responsáveis por uma boa governança. The Big Five trata de sintomas de uma história problemática, e muito mais longa. Reúne as ideias negativas associadas à África pelo mundo desenvolvido; os “cinco grandes” são as curiosidades culturais que eles levam para casa.
Como sua experiência em Zurique mudou ou aprofundou sua compreensão dos temas africanos?
Acho que uma grande parcela das pessoas que vivem nos países desenvolvidos tem uma visão muito distorcida da África. Muitas pessoas olham apenas o lado ruim; imagens chocantes de miséria e sofrimento. Também há muita felicidade na África. A experiência de ter vivido na Europa estimulou em mim a fascinação pela África e por meu país de origem. Eu me sentia um outsider na Suíça.
Ativismo e arte se complementam na sua criação?
Até certo ponto. Não sei se me definiria como um ativista per se. Eu me vejo como alguém que destaca certos temas e os deixa abertos para que o observador decida como quer agir a respeito, se é que o queira. Assim, eu me vejo não como um artista político no sentido tradicional, que é o de alguém que usa seu trabalho para forçar mudanças.
Quais projetos você está desenvolvendo agora?
Na 10ª Bienal de Havana, mostro uma instalação composta por sacolas de malha plástica. Essas sacolas se tornaram onipresentes entre os refugiados e imigrantes do mundo todo. Frequentemente são chamadas pelo nome de alguma demografia imigrante particular; na Nigéria, seu apelido é “fora, Gana”; no Caribe, “Samsonite guianense”; no Reino Unido, “sacolas de Bangladesh”; e, há pouco tempo, ficaram conhecidas na África do Sul como “sacolas do Zimbábue”. Venho trocando sacolas novas por sacolas usadas, com comerciantes africanos, em vários mercados. Na instalação, essas sacolas usadas são posicionadas no chão, de modo a formar um elemento do jogo eletrônico Space Invader, um motivo retrô de oito bits, que ficará visível apenas a partir de uma perspectiva aérea. A obra se refere aos aliens ilegais e à xenofobia que resulta da invasão de estrangeiros, especialmente de zimbabuanos na África do Sul.
Biografia comentada Ralph Borland, 04/2009
Aos vinte anos, Dan Halter saiu do Zimbábue natal para estudar na Schule für Gestaltung, em Zurique. A experiência europeia aprofundou ainda mais a fascinação do artista por seu continente de origem. Depois de se sentir como “um outsider” em território suíço, terminou sua formação em arte na África do Sul, país onde decidiu estabelecer vida e carreira.
No exílio “autoimposto” que o zimbabuano e sua família realizam – ele, na África do Sul, os pais do artista, na Europa – a relação que Halter mantém com o país de nascimento é de ininterrupta observação, reflexão e crítica, rotina que alimenta seus projetos.
“Os revolucionários que lutaram contra a velha guarda agora estão no governo. São pessoas que tiveram todos os seus direitos roubados; muitas foram presas injustamente. É compreensível que a corrupção e o crime tenham aparecido, já que estão tomando de volta o que lhes foi negado por um longo tempo”, afirma.
Mas não se entenda o exercício como uma incitação ao posicionamento político: “Não sei se me definiria como um ativista per se”, diz o artista, que não se vê como “alguém que usa seu trabalho para forçar mudanças”.
Em 2006, a Cidade do Cabo serviu de cenário para a primeira individual de Halter. Na exposição, abrigada pela galeria de arte contemporânea João Ferreira, o artista evidenciou a multiplicidade de recursos que caracteriza sua obra: o uso de uma miríade de materiais, como moedas, comprimidos, pedras ou uma mesa de bilhar, e de diversas linguagens e suportes, onde cabem vídeo, instalação, assemblage, performance, criação de objetos.
A mostra incluía Untitled (Zimbabwean Queen of Rave), vídeo selecionado para o 16º Videobrasil (2007) e que deu a Halter o Prêmio Videobrasil de Residência no Capacete. A obra surgiu de reminiscências da adolescência adicionadas a experiências posteriores. “Em 1991, eu estudava no mesmo colégio do irmão de Rozalla, quando o onipresente single dela, Everybody’s Free (to feel good), foi lançado. Foi surpreendente ter uma canção zimbabuana no topo das paradas internacionais de música”, relembra.
Algumas das criações mais recorrentes na obra de Halter – mapas de seu país confeccionados com linhas, tiras de livros ou listas telefônicas, em tramas que envolvem expressões, aforismos e ditados populares – foram iniciadas em 2005, com I don’t know what to believe anymore.
A série cartográfica prossegue no ano seguinte. O mapa do Zimbábue passa a ser acompanhado de listas de nomes de habitantes da ex-colônia britânica e novas frases: na obra More Fire, “Many millet grains do not make porridge” [muitos grãos de milho não fazem mingau]; em My Last Resort, “When days are dark, friends are few” [quando os dias são sombrios, os amigos são poucos]. O dito “Never say never” [nunca diga nunca] está no trabalho homônimo, no qual estão costuradas notas de dinheiro zimbabuano; e “Yes Boss” [sim, chefe], aparece em obra de mesmo nome, composta por cédulas da antiga Rodésia.
Em 2007 e 2008, nomes de milhares de habitantes de Londres e a lista telefônica da capital do Zimbábue, Harare, cidade natal do artista, constituíram matérias-primas de novas cartografias, como Space of Aids.
A doença – que, segundo se estima, afeta 15% da população zimbabuana – se faz presente em outras criações recentes. Em HIV (Henry the Fourth), portadoras do vírus que recebem tratamento em uma clínica da Cidade do Cabo colam contas a um retrato do rei inglês cujo nome serve de apelido local para o vírus. Também de 2007, em safe as fuck, Halter combina fitas vermelhas e agulhas, expostas sobre fundo preto.
Em 2009, Halter representa o Zimbábue na 10ª Bienal de Havana, mostrando instalações que envolvem sacolas plásticas usadas por imigrantes clandestinos ao redor do mundo, numa referência aos “aliens ilegais e à xenofobia que resulta da invasão de estrangeiros”, como define.