Entrevista Eduardo de Jesus, 06/2004
Sua obra está mais voltada para o ambiente das novas mídias. Como você iniciou sua trajetória neste campo? Havia alguma atração pela tecnologia e as possibilidades criativas que poderiam ser abertas?
Em 1989 já era barato fazer vídeo caseiro, mas eu detestava ver o que as pessoas gravavam, e foi na escola americana que tive meu primeiro contato com Hypercard (para fazer bancos de dados pequenos e interligar informações - era fascinante!), programação, edição de imagem e com BBS, mas ao voltar para o Brasil tudo isso foi para o gelo porque eu não tinha computador em casa. Em 1991, na USP, não havia as carreiras de novas mídias, mas já se falava em internet e hypertext, e no mercado algo de computação gráfica, mas não na ECA. De alguma forma isso foi bom porque a gente teve que aprender a pensar e a escrever. Eu nunca fui um freak de tecnologia, mas sempre gostei de usar a “máquina”, então tive que me virar. Na verdade eu gostava de muitas coisas como animação e cinema, mas não gostava de trabalhar em grupo e achei o processo de trabalho no cinema burocrático demais, eu queria fazer e poder mostrar. Em 1995 falava-se em CD-ROM, mas pouca gente sabia fazer, e eu tive sorte de ter amigos que faziam e faziam bem, o pessoal do Tabuleiro. Eles me deram o Director 3 e um livro. Eu sentei na casa de um outro amigo que tinha um PC com 4MB e aprendi a usar o programa. Misturando a tecnologia com a cidade-monstro e a vontade de fazer fanzine, o Guilherme, da Candyland, a Mariana Rillo e eu fizemos o “Biografias”. Depois disso o fascínio pela “máquina” cresceu... Nessa mesma época aprendi a usar a internet para me comunicar com a minha família que estava na Áustria. Eu aprendi HTML em uma semana e trabalhei com uns caras loucos por tecnologia que fizeram os primeiros servidores em São Paulo e me ensinaram um monte de coisas. Era incrível saber que as pessoas podiam ver o que eu fazia em qualquer lugar, a qualquer hora, mas eu não tinha mais tempo de fazer o meu próprio trabalho, e o design para a web passou a ser uma máquina de moer carne. O processo foi rápido, em 1998 a web já era quase tão ou mais insuportável que a televisão, e eu perdi o interesse, era a hora de ir para a Alemanha.
Em um de seus textos você afirma que usa o computador como mídia e por ter uma certa ilusão de poder controlar melhor o tempo no computador do que no vídeo ou no cinema. Em suas obras, como você relaciona tempo e interatividade?
A interatividade como “o apertar do botão” não me interessa. Eu prestei atenção ao tempo quando queria colocar texto escrito nos vídeos e as pessoas falavam que não se fazia isso. Nos meus trabalhos a interatividade é usada para dissolver o tempo da imagem em movimento. Eu falo de uma ilusão de controle, porque o tempo como fenômeno da natureza não é nossa invenção nem pode ser controlado por ninguém, mas o tempo da mídia pode ser controlado, porque é uma invenção humana. Se o cinema inventou a imagem em movimento, a interatividade inventou o controle desse movimento, desse tempo. Mas é óbvio demais que os trabalhos interativos representem sempre somente o espaço, ignorando o tempo “midiático”. Por isso eu quis fazer o “Mpolis”, uma cidade feita de vídeo.
Você esteve trabalhando na KHM, em Colônia, e atualmente é artista residente do IAMAS. Esses deslocamentos por contextos culturais diferentes interferem ou condicionam de alguma forma seus trabalhos?
Não só interferem como são a base deles. Pelo lado prático, eu não poderia trabalhar no Brasil do jeito que trabalho aqui, não existe verba para a produção do tipo de trabalho que faço e o artista ou realizador tem que comer, mandar os filhos para a escola etc. Vendo a complexidade e o tamanho de projetos como Mpolis, A common ancestral stranger ou The one made of light stuff, trabalhando praticamente sozinha, levando de um a três anos para realizar um projeto, eu sei que não teria como produzi-los no Brasil, e isso me deixa triste porque eu só me sinto em casa na cidade-monstro, e eu preciso dela para criar. Porém, é excitante viver no contexto de arte e mídia em países como o Japão e a Alemanha, superprodutores de tecnologia, ver como a arte e a cultura são influenciadas pela indústria, e mesmo assim saber que tem gente nesses lugares que se interessa pelo meu trabalho. Eu não sou um produto de exportação da cultura brasileira, como a música e o cinema, que têm agora programas oficiais de exportação, muito menos os meus temas são temas para europeu consumir. Eu me desloco para poder trabalhar, e as viagens influenciam a minha obra o tempo todo.
Entre suas obras vemos que existem trabalhos impressos, interativos (CD-ROM, DVD e web), assim como as instalações audiovisuais interativas e sonoras. No processo de criação, como você elege os suportes? Existe algum fator determinante que guia essas escolhas?
Sim. A tentativa de casar uma intuição a uma característica original dessas mídias. Por exemplo, eu me sentia oprimida com a idéia de usar imagens para falar sobre a imaginação dos cegos. Outro exemplo é o Unstable CD, que só poderia existir como CD-ROM, ou o MediaScan, que somente poderia existir como uma imagem estática. Se um trabalho pode existir somente como palavras, que seja então um texto, como o Nó na garganta. Pisando em ovos em Buenos Aires foi a tentativa de contradizer isso tudo que eu acabei de falar. Eu não consigo pensar: “quero fazer um vídeo” ou “web art”, mesmo porque eu não vejo valor nesse tipo de classificação. Eu acho que consigo trabalhar assim porque me livrei da paranóia de ter que ter domínio total da técnica usada. Eu amo as imperfeições técnicas dos meus trabalhos.
Algumas de suas obras tratam do tema do corpo. Como você percebe a aproximação entre corpo e tecnologia, em seus trabalhos?
O corpo representa a definição de um ser - eu nunca falo do corpo só como um conjunto de células acumuladas. Ele é o centro da nossa percepção e, de uma forma resumida, a cultura e outras invenções são continuações dele. A “máquina” parece algo fora da compreensão do homem comum, mas não é nada mais que uma cópia malfeita dos modelos que tentam definir um pouquinho do que a gente é. Representar o corpo usando um computador é praticamente um resultado histórico, ou talvez uma redundância irônica. Eu tenho argumentos pessoais e de naturezas diversas porque o corpo (como identificação) e a mídia são importantes para mim. Um deles é a lembrança de que quando eu era criança eu não entendia por que as mulheres na televisão nunca tinham um look asiático.
Qual é o tema central de “The one made of light stuff”, obra que você está trabalhando atualmente?
O tema central é a identificação de um indivíduo com o grupo. Dessa vez eu não trato da identificação cultural como sendo uma questão que pertence somente ao estrangeiro, ao imigrante. Eu falo sobre a consciência de ser um indivíduo, da imitação e de pertencer ao “grupo” (seja ele qual for). Obviamente o corpo e o tempo são temas fortes desse trabalho, assim como a cegueira, a pele e as cicatrizes. Eu fiquei cansada do tema cegueira como sendo algo “exótico” e resolvi falar mais sobre isso no ponto que me interessa de verdade: a identificação, a formação do gosto pessoal, o aprendizado e a imitação - tudo isso através da visão. Era muito importante desenvolver esse trabalho no Japão, não por mostrar diretamente a cultura japonesa na obra, mas por ser um lugar que é parte da minha existência, da minha aparência, que define metade do meu corpo e ao mesmo tempo tão desconhecido como qualquer outro país estrangeiro.