Ensaio André Brasil, 07/2004
Poética do loop
1. Lisas, limpas, concisas. Portadoras de inegável apuro técnico e formal, as imagens criadas por Leandro Lima e Gisela Motta enganam: sua ambigüidade não se deixa apreender de imediato, protegida pela aparente transparência. Mas há algo ali, um incômodo que permanece: rumor de fundo, estremecimento sutil.
2. A menina balança (Sem título #4, 1999). Uma imagem banal, repetitiva em sua ingenuidade. Imagem-clichê: vai-e-vem, tantas vezes vista e revista. Há, contudo, algo de estranho nessa que nos parece uma cena tão familiar. Algo que se produz por deslocamentos mínimos: as cores saturadas, a paisagem artificializada, a menina abstraída. O enquadramento enviesado, o olhar convexo.
E ali, nesse intervalo “entre” o que, minimamente, se deslocou, o mundo se torna intensa e estranhamente outro. O balanço, a paisagem, o movimento, a câmera, o olhar: do clichê à vertigem, tudo parece se soltar dos eixos. 3. Se a cor verde é a mais verde que existe (Leminski), o que dizer desse verde impossível? (Verde.dxf, Lima, 2004) Quando se estampa artificialmente na grama, o paradoxo se instala: a cor é tão verde que esse mundo não pode ser o nosso!
E esse azul, mais azul que o próprio azul? Geometricamente dividido em dois: o mar, o céu, a linha branca. Azul horizontal. Se “Klein blue” - a “marca registrada” de Yves Klein - é o azul matérico da tinta, do corpo e da performance, e se, antes, o azul dos céus de Magritte era propositadamente rarefeito, estilizado, onírico, esse Azul.dxf (Lima, 1998/2002) é pura síntese: parece só existir como combinatória de dígitos. O verde, o azul, o vermelho, o amarelo compõem, nas fotografias, vídeos e instalações de Leandro e Gisela, uma paisagem sintética. Paisagem ambígua: tão semelhante e, ao mesmo tempo, tão distante do mundo natural.
4. A água é uma constante (Analógico #2, 1998; Sem título #5, 2002). Flui e reflui, soa e ressoa. Mas a sua fluidez está aprisionada em um loop ininterrupto. Aqui também o ambiente é sintético, como a água dos laboratórios (que antes faziam parte apenas da ficção e hoje povoam o noticiário cotidiano), onde se sintetiza todo tipo de matéria-prima, onde se cria e se duplica o orgânico.
5. Ou em Analógico #3 (Lima, 1998), a água eletrônica da piscina de pixels. Não é essa a nossa situação entre as imagens? Deriva, imersão, mergulho, Afogamento (Motta, 2003). Experiência sensorial, mais do que meramente visual.
6. Na obra de Leandro e Gisela, o loop se torna estratégia poética: econômico, automático, circular, impede à imagem remeter-se ao passado ou se suceder em uma imagem futura. Em loop, a imagem não pode narrar nem prever. Apenas se mostra, exibe seu automatismo. Como se a máquina do mundo houvesse emperrado, incapaz de processar novas experiências. Mas se o loop é repetição, a diferença se produz no encontro entre o pensamento e a obra. A imagem não pára de se repetir, mas o pensamento de quem olha flui incessantemente. E o círculo se torna elipse, já que, a cada repetição, a imagem já não é a mesma, quando encontra outro e outro pensamento. Como no clássico rio de Heráclito, em que a água na qual entramos, sempre a mesma e sempre outra.
7. A paisagem é natural, a cena simples, transparente: algumas pessoas passeiam entre as árvores de um bosque (Que é de?, 2003). Mas, como em Magritte (Carte blanche, 1965), esse “entre” se torna interstício em que os seres desaparecem. Entre: interface, espaço de passagem. Como se a realidade estivesse repleta de cortes, através do quais os seres pudessem atravessar para outros domínios, invisíveis, desconhecidos, fantásticos.
Mas se, em Magritte, a paisagem é intensa e intencionalmente onírica, surreal, o bosque de Leandro e Gisela mantém-se em uma zona limítrofe, na fronteira entre banalidade e fabulação, entre realidade ordinária e imaginário. O dispositivo criado para a instalação torna a obra ainda mais ambígua: a imagem só aparece projetada sobre a sombra dos visitantes. Um jogo complexo de aparição e desaparição, de trânsito e passagem entre mundos, entre universos visíveis e invisíveis.
8. Retira-se o bosque e as pessoas continuam passando. Em outra obra (Marrom, 2002), tão simples quanto desconcertante, os visitantes são filmados enquanto percorrem a exposição (“agora os objetos me percebem”, diria Paul Klee). Na projeção, eles passam de um lado para o outro, mas não há cenário. Aquele pode ser qualquer lugar: uma exposição? Um shopping center? O estúdio onde se grava um anúncio para a TV? A sobreposição das pessoas em chroma key torna a cena ainda mais “fake”.
Já não é preciso fazer cortes na paisagem, pois ela foi abstraída: da imagem como lugar de passagem à imagem como não-lugar. Ou lugar nenhum.
9. O que se espera de um corpo? Que ele viva. O que se espera de uma performance? Que ela aconteça. Nas (quase ou anti) performances de Leandro e Gisela (Sem título #1, #2, #3), o corpo simplesmente não responde. Ou, quando o faz, é tomado por um incômodo automatismo (ou seria autismo?). Corpo autômato, corpo estranho. Corpo em loop.
10. Ou corpo de pernas pro ar (Interlúdio, 2003), deitado sobre a própria carapaça, impossibilitado de se virar (como não pensar em Gregor Samsa?).
11. Estranho esse mundo criado por Gisela e Leandro: desconcertante, fantástico, paradoxal. Ecos de um surrealismo revisitado? Pouco provável. Afinal, há muito o que poderia ser surreal foi superado pelo próprio real. O que essas obras sugerem vai além disso: esse estranho é o nosso mundo. Tornado artifício, síntese, simulação, ele parece, definitivamente, ter entrado em loop. Ao artista (e não só ao artista) cabe rasgar, cortar, abrir passagens: fazer do natural e do artificial, do orgânico e do sintético, do vivo e do não-vivo universos híbridos, permeáveis.
12. Como uma flor de lótus (e dígitos) nascendo e renascendo da pele (Lótus, Lima, 2003).