Ensaio Manoel Ricardo de Lima
uma e-poesia-plug-expandida
No início do século 20, entre os anos de 1910 e 1920, numa Rússia que se preparava para a revolução de 1917, a grande questão que girava em torno das novas ideias sobre poesia passava por Vielimir Khlébnikov, Vladimir Maiakóvski e Boris Pasternak. Esses trêseram uma espécie de conjunção de vanguarda, pode-se dizer, numa busca por uma linguagemtocada entre som e sentido, que eles chamavam de o fenônemo da zaúm: “a famosa linguagem transmental dos futuristas russos”, lembra Boris Schnaiderman. A zaúm é uma linguagemsonora que dá a entender o quanto cada signo lingüístico é também um signo ideológico, político, transformador.
As perspectivas daquele cubo-futurismo eram acompanhar as transformações do homem russo que invadia a rua; da fábrica para dentro da cidade moderna. O poema segue os passos da oralidade e, depois, tomado de visualidade, invade também, por exemplo, a arte do cartaz: uma poesia de comunicação direta, imediata. Não à toa essa poesia vai interessar aos poetas concretos brasileiros nas décadas de 1950 e 1960: Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Esses poetas trabalharam com as expectativas voltadas ao que chamaram de verbivocovisual, expressão que tenta dar conta daquilo que podemos chamar de poesia expandida, que seria quando a poesia expande o sentido da palavra entre o escrito, a oralidade e a visualidade. Assim, a poesia concreta procurava enfrentar, naquele momento, com um largo escopo teórico, a industrialização tecnológica do pós-guerra, o primeiro e verdadeiro inchaço das grandes cidades, a publicidade emergente, o consumo, as novas formas de vida e, principalmente, o diálogo da literatura com a música, a pintura, as novas tecnologias e com uma espécie de consciência maquínica.
Um desdobramento dessa linguagem transmental do cubo-futurismo russo e da verbivocovisualidade da poesia concreta brasileira leva a um sem-número de pesquisas em torno da ideia de poéticas da hipermídia [do videotexto até a videografia], de interpoesia, de poesia digital etc., apontando para várias outras questões relevantes com uma diversidade de nomeações e procedimentos. E quando se fala desse desdobramento, dois artistas têmcontribuições muito importantes com seus trabalhos e textos críticos para a arte e a poesia brasileiras: Philadelpho Menezes [1960 - 2000] e Wilton Azevedo [1958 - ]. Juntos,em 1998, lançaram um CD-ROM interativo intitulado Interpoesia: poesia hipermídia interativa [Fapesp/Mackenzie]. Naquele momento, esse CD-ROM aparece como uma nova interface entre o poema e o espaço reconfigurado da virtualidade através da internet e das mídias eletrônicas e tecnológicas, um primeiro movimento em direção a outra expansão da poesia, a poesia dos novos tempos midiáticos e tecnológicos do século 21. Wilton Azevedo é o designer e o editor desse CD-ROM; seu trabalho como poeta, sempre interessado na elaboração dessas interfaces, e como professor-pesquisador do programa de pós-graduação na Universidade Presbiteriana Mackenzie, diz diretamente de seus interesses em abrir o uso ea operação do poema para um enlace com o tempo real, com as tecnologias do virtual, comas estruturas do design, com o espaço dilatado e com as possibilidades geradas para a linguagem, estas conhecidas agora como poéticas tecnológicas entre outras tantas variantes.
O que interessa a Wilton Azevedo em seu trabalho é ampliar ou rearmar o conceito de poesia, aquilo que se verifica como texto, como contexto, como crise da noção de texto e de verso, para estabelecer uma troca comunicativa, um evento comunicativo, uma interação do poema com o receptor; e para refazer e reler os dilemas entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação. O poema vem, dessa maneira, por dentro de um processo de impacto sobre o homem, através do computador e dinamitado por ele e seus recursos variados, da tecnologia informatizada, para romper com a ideia de um sistema fechado de signose lançar-se como ação e performance em constante devir.
Wilton Azevedo trabalha com uma relação imprevista entre som, sentidos, imagem, palavra e plugs, muitos plugs, procurando inverter a lógica arbitrária da linguagem e justapondo as experiências poéticas das vanguardas do século 20 (como no caso do cubo-futurismo russo e da poesia concreta brasileira) para gerar uma espécie de “infografia interativa”, ou uma saída que vai da “pedra ao pixel”, na expressão de Julio Plaza. O ponto central do trabalho de Wilton Azevedo é a invenção de um antidispositivo que provoque ruídos na linguagem. Note-se que a dissertação de mestrado de Wilton Azevedo, defendida em 1984 e orientada pelo poeta concretíssimo Décio Pignatari, na PUC/São Paulo, em Comunicação e Semiótica, se intitula “O Ruído como Linguagem”. Anos depois, já em 1995, Wilton defende a sua tese de doutorado, orientada por Arlindo Machado, também na PUC/São Paulo, intitulada “Criografia: a pintura tradicional e seu potencial programático”. Mais tarde ainda, depois do pós-doutorado na França, na Paris VIII, Laboratoire de Paragraphe, ele desenvolve pesquisa em duas linhas que dizem diretamente de seu trabalho como artista-designer: Hiperdesign: uma cultura do acesso Interprosa e Interpoesia: o início da Escritura Expandida.
O que se pode verificar é um interesse aberto, que vai do ruído que corta e monta a síntese de um lugar a ser explorado pela linguagem, a do poeta da hipermídia, até o gesto mais simples de um pintor debruçado sobre pigmentos e resinas naturais e papel artesanal. Trabalho de pintor que recebe um tratamento diverso quando, em 1987, Wilton Azevedo expõe a sua pintura feita com o computador no Clube de Criação, em São Paulo, e depois no Museu da Imagem e do Som, MIS, em 1988. Arlindo Machado, por conta de uma exposição individual de Wilton Azevedo na Kramer Galeria de Arte, em São Paulo, em 1992, escreve na apresentação do catálogo: “De outro lado, no que diz respeito aos motivos visualizados, a pintura de Azevedo é absolutamente contemporânea. Ela se inspira na eletrificação da iconografia atual, nas formas estilizadas e elípticas da cultura pop, nas figuras prototípicas e diáfanas da televisão e no rebuscamento neobarroco do design pós-moderno. Não por acaso, essa exposição, que começa com uma pesquisa de pigmentos naturais, termina com uma animação por computador, numa tela eletrônica, de modo a materializar a ideia da invenção artística como percurso não linear, em todas as direções.”
Pode-se dizer que o trabalho de Wilton Azevedo tem a ver com uma poética que inventae cria imagens de síntese inseridas no contexto do poema para produzir um outro fenômeno de linguagem, o da hipermídia. A hipermídia é uma não-linearidade e deve ser pensada sempre a partir de uma ideia de expansão do hipertexto, uma extensão, ou seja, uma linguagem com características próprias, assim como os poetas russos estabeleceram a linguagem transmental da zaúm e os poetas concretos brasileiros, por sua vez, elaboraram um ideário poético-crítico girando em torno da verbivocovisualidade.
Wilton é também autor de livros como O Que é Design, editado pela Brasiliense em 1994, e Os Signos do Design, pela Global Editora, em 1988, seis anos antes, além de criador da seção FILE-Poetry dentro do Festival Internacional de Linguagens Eletrônicas. Dessa maneira, por fim, é possível pensar que Wilton Azevedo -antes de se colocar como um desenhista ou como um ilustrador, um designer- é muito mais um artista que repensa e retrabalha os processos de codificação dos signos formais da história da arte, como nas relações da imagem com a palavra, da palavra com a imagem, para depois se conectar como um artista performer, um poeta performer, numa trajetória escavada em torno de imagens sem referencial no mundo aparente; ele é um poeta de invenções sintáticas e sintéticas, invenções poéticas que se movem através de simulações da natureza. Julio Plaza chama isso de poética sintética, ou seja, aquilo a que podemos chamar de uma poética de novas relações com o imaginário e, principalmente, de novas relações com aquilo a que chamamosde real. Com o trabalho de Wilton Azevedo ficamos diante de uma espécie de poesia para um futuro-agora, uma e-poesia-plug-expandida.
Entrevista Marcelo Rezende
De que forma se deram suas primeiras experiências envolvendo produção poética e tecnologia?
Foi em 1985, com um computador. Eles não eram ainda mecanismos tão complexos e precisavam de processadores independentes. Era uma atmosfera muito diferente em relação a hoje. Para a ilustração, você fazia um risco, sem cor, sem nada, e depois de certos processos poderia ter o produto, e era um trabalho muito duro. Na verdade, não me interesseipelo aspecto 3D da coisa; poder trabalhar em três dimensões, não foi o que me atraiu. Minha origem está nas artes plásticas e no design gráfico. Quando comecei a trabalhar, me comportava um pouco como um tipo de “pintor na computação”, por assim dizer. Eu tinhatambém uma origem na poesia mais experimental e performática, pois trabalhava com Xerox, que não deixa de ser um scanner, um monitor. Na época, percebi também que poderia trabalhar diretamente na máquina de escrever e, depois, amassando os papéis... Eu estava interessado era no resultado de uma imagem que não estava ligada diretamente ao dispositivo papel.
Mas na computação comecei a perceber que na relação entre o que eu estava executando, fosse palavra ou risco, nada acontecia de maneira direta. Você olhar para o monitor e desenhar com o mouse era alguma coisa culturalmente inusitada. Era muito complicado não ter essa relação direta que é dada pelo lápis ou pincel. No computador, percebi que podia desenhar uma letra, poderia criar um alfabeto, palavras, porque a computação permitiaisso, e o resultado não deixava de ser poesia. Chamei de poesia alegórica. O computadorpassou a existir para mim como uma maneira de produzir uma linguagem, de ver essa linguagem saindo do outro lado, a máquina completando a operação. Para o computador, o algoritmo, teoricamente, não faz distinção entre o que é imagem ou escrita, imagem ou letra.
Então seu trabalho está na própria natureza do computador e sua linguagem.
Claro. Enquanto os outros estão vendo ali palavras ou imagens, eu não estou vendo isso. Algo que mesmo para mim foi necessário um tempo para compreender. Comecei a pesquisar isso. Decidi que queria trabalhar com aquela tecnologia, ver o que podia fazer com aquilo. Mas foi apenas em 1997-1998 que comecei a produzir o que se chamava de poesia digital. Queria uma estrutura de poesia no uso da tecnologia, e também me aproveitar do fato de a programação de uma mídia não estar mais restrita aos conglomerados de broadcasting; o próprio indivíduo poderia criar seu programa.
Isso significa que todos podem reivindicar estar produzindo arte, ao fazer aprópria programação?
Hoje estamos vivendo um momento muito importante em relação a uma questão: se a atividade artística é profissional. Você pode ser um médico e um grande poeta, não é mesmo?No momento em que você tem um sistema “www”, um sistema em rede, estamos a um passo da desinstitucionalização. Acredito que no futuro não haverá mais mostras daquilo ou festivais disto, porque nesses eventos existe uma curadoria ou conselho determinando o que éou não é importante. A arte não é darwinista. Não há uma evolução, mas um aperfeiçoamento. E há uma produção artística que não necessita de galeria ou museu e não pede a presença física. Hoje vejo muitas pessoas reivindicando serem artistas, poetas ou músicos “da era digital”. Mas o maior ganho do momento é exatamente o fato de que não é preciso mais reivindicar ser um artista. Venho de uma geração em que publicar era tão difícil, ter uma exposição era impossível, se expor era muito difícil.
Mas não existe o perigo da celebração da tecnologia, como um fetiche?
Minha relação com a tecnologia passa por minha história, se você me permite. Eu tenho uma deficiência física, eu não ando, nunca andei. Na minha infância era extremamente desagradável ter que pedir aos meus irmãos que trocassem de canal para mim. Você não pode imaginar minha emoção quando começaram a ser comercializados os primeiros controles remotos. Você não sabe o que foi isso na minha vida: poder mudar o canal, ou aumentar ovolume, sem necessidade de me locomover. Isso mudou tudo. Eu devia ter uns 13 anos. Erauma caixa com seis botões, enorme, mas eu não estava mais dependente. Essa é minha relação com a tecnologia. Naquele dia, descobri ser possível estar em outro tempo e em outro espaço, sem sair do lugar! Uma incrível sensação de liberdade. Se há essa liberdade hoje (e por isso os regimes totalitários precisam controlar a internet), e você passar areivindicar ser um artista digital, isso não faz sentido. Eu realizo meu trabalho, mas não vejo necessidade de reivindicar minha posição de artista. Seu endereço no Facebook pode exibir o que você faz, o seu trabalho, e as pessoas passam a entrar em contato comisso. Vejo a arte como algo que faço todo final de tarde, quando tomo um café antes de retornar para casa. Está em tudo o que eu penso, eu tenho que entender o que eu faço. Não estou interessado nesse discurso do pessoal da “arte e tecnologia”, não estou interessado em pirotecnias.
Você continua procurando o controle remoto?
É isso mesmo! Sempre.
Biografia comentada Wilton Azevedo
Eu me encontrava em uma aula de pós-graduação na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em novembro de 1997, comentando a importância do escritor Valêncio Xavier e de sua obra literária maravilhosa: O Mez da Grippe.
Em um determinado momento da aula, uma aluna me informou a respeito da abertura, naquela noite, de um evento de Arte e Tecnologia e perguntou se eu não estava interessado em ir. Não respondi de imediato, mas, ao final da aula, me vi convencido a ir até lá.
Quando cheguei ao local, estavam lá artistas, poetas, professores e um público bastante numeroso em prol das performances que iriam acontecer.
Naquela noite, no Instituto Cultural Itaú, eu reencontrei, depois de mais de dois anos, Philadelpho Menezes. Ele estava em uma sala cheia de fones de ouvido, na qual o público podia acessar as poesias sonoras produzidas no mundo inteiro, as quais ele havia reunido com o rigor de sua curadoria, que era sua marca.
Nessa ocasião falei sobre as experiências que estava realizando em meu estúdio com softwares de autoria, e sobre o potencial visível que havia nesses experimentos para realizar um novo formato do fazer poético.
Na semana seguinte, Philadelpho veio ao meu estúdio e mostrei-lhe então o que eu estava fazendo com imagens, sons e textos em um software de autoria. Todo aquele movimentodisponível em apenas uma mídia o encantou, e o entusiasmou para fazer um trabalho em parceria.
Naquele momento, nascia o Interpoesia. No pequeno estúdio em Pinheiros (SP – Brasil), começamos a trabalhar incessantemente em uma ideia que ainda não tinha nome. Philadelpho resolveu passar para mim poemas visuais que ele já havia realizado e publicado no meio impresso; eu então comecei a pensar em uma forma de traduzir esses poemas para o meio digital.
Vários encontros ocorreram na intenção de obtermos daquele exercício de linguagem um produto de hipermídia.
Depois de dois meses de trabalho, já estávamos presenciando o surgimento de um produto que seria um marco na produção poética hipermidiática no Brasil – quando lembrei queprecisávamos de um nome para aquela produção.
Uma semana antes, eu havia entregado a ele o texto Hiperdesign: Uma Cultura do Acesso, e, diante desse texto, chegamos a pensar no nome Hiperpoesia. Foi quando Philadelphome perguntou o que eu achava de Interpoesia, e então eu respondi: perfeito.
Philadelpho tinha a intenção de colocar na produção hipermidiática seu conceito, quechamou de intersigno, e eu tinha o interesse em desenvolver ambientes virtuais que apontassem para um novo fluxo de acesso, o hiperdesign.
A criatura agora tinha nome, faltava o sobrenome. E, então, nós a chamamos de PoesiaHipermídia Interativa.
Apesar da relevância histórica do Interpoesia, meu trabalho com a poesia digital nãocomeçou com esse CD-ROM; eu já havia feito uma exposição em 1987, no Clube de Criação de São Paulo, onde apresentei pela primeira vez a Poesia Alegórica. Mais tarde, em fevereiro de 1988, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, apresentei o trabalho Signação,em que apontava o software como uma escritura da imagem fixa. É importante ressaltar que esses dois trabalhos fizeram parte da Mostra Internacional da Poesia Visual, em 1988,e que tive a oportunidade de apresentá-los publicamente a Eugen Gomringer.
Assim, a continuidade dessa pesquisa e sua práxis na produção hipermidiática se fixam como ponto importante no cenário da produção poética brasileira que utiliza suporte digital.
Nada no ambiente digital se manifesta de forma separada, não há reintrodução de elementos caógenos ou redundantes, tudo é fruto de uma escritura programada, uma escritura expandida.
A poesia digital, por incrível que possa parecer, retoma a ritualização da linguagem, isso porque é um fazer pré-programado previsto por sua escritura e é esse crédito quea emancipa como novidade, não havendo nem ruído nem estranhamento, pois tudo o que estácontido em uma programação é pré-concebido, é processo.
Sendo assim, o poema pode ser desprovido de palavras, a enunciação não está no discurso, a narrativa não conta histórias, o que é poético é a expansão dos signos, fazer poesia digital é construir ambientes – ambiência – em mutação constante. É uma experiência que não se preocupa em criar fórmulas. Nunca tive a preocupação de meus trabalhos terem um final ou uma finalidade formal no mundo das letras, no sentido do desafio conclusivo, e sim uma linha que se expande em busca do experimento.
A poesia digital deixa, a cada etapa, mais evidente que a redundância de suas articulações sígnicas se faz presente como poética; mas não é a redundância promovida pela cultura pop, e sim a exaustão, o excesso, como processo de estranhamento que cria extensões de seus signos, sem a necessidade de conter palavras.
Referências bibliográficas Marcelo Rezende
Wiltonazevedo.tumblr
O espaço funciona como local no qual o artista Wilton Azevedo apresenta seu trabalho ainda em construção, além de suas reflexões quase diárias sobre o estado do mundo.
Momentos Polaroid
Aqui o artista aparece recitando um de seus poemas, Momentos Polaroid (2009).
Cinco Poemas Concretos
Este vídeo criado por Christian Caselli apresenta cinco célebres poemas do movimento concreto. Cinco (de José Lino Grunewald, 1964), Velocidade (de Ronald Azeredo, 1957), Cidade (de Augusto de Campos, 1963), Pêndulo (de E.M. de Melo e Castro, 1961/62) e O Organismo (de Décio Pignatari, 1960).
Neles é possível perceber de que maneira os procedimentos poéticos concretos tocaram a formação de Wilton Azevedo.