Entrevista Denise Mota, 07/2007
O melodrama tragicômico parece ser a base sobre a qual repousam e da qual nascem todas as suas criações. É isso mesmo?
Totalmente. Essa visão distorcida da realidade e dos sentimentos dá uma força incrível às coisas, permite ver os detalhes em grande escala, fora de órbita. É a máxima descontextualização na vida cotidiana, uma visão inspirada e plástica, que todo mundo pode ter. Ao mesmo tempo em que é artística, a ressignificação constante de tudo é também cotidiana. O humor para mim é essencial. Fazer de uma bobagem algo extremo tem um encanto que me alucina. Gosto dos produtos melodramáticos, sejam eles criados consciente ou inconscientemente. Gosto dos lugares-comuns que geram, das emoções intensas que despertam, dos mecanismos que utilizam. Diálogos de telenovela, cartas e canções de amor, Xuxa cantando uma música contra as drogas para uma garota em uma cadeira de rodas. Como algo tão simples pode dar lugar a uma experiência do “sublime”? Por que emociona tanto? As dores de amor são um motor poderosíssimo.
A partir de uma obra, Dani Umpi Records, você mudou não só o rumo de sua carreira, mas sua própria personalidade artística, abandonando o nome Daniel Umpiérrez para renascer como o personagem Dani Umpi. Esse também foi o ponto de inflexão para sua guinada em direção a áreas como música e literatura?
Minha experiência dentro da arte institucional em meu país foi decisiva. Sem querer fazer uma crítica danosa, poderia dizer que houve coisas lindas e coisas patéticas. O mais patético é que a prática artística, minha atividade como artista contemporâneo, criou em mim muito preconceito. Isso de tudo ter de ter um statement, uma justificativa, um porquê, me limitou muitíssimo. Sempre fui uma pessoa dispersa, com uma sensibilidade de zapping. Ter uma produção simbólica que abarque tantas linguagens (música, literatura, arte) gera desconfiança. O meio premia a continuidade e a insistência. A maioria das carreiras dos artistas é construída a partir da perspectiva da redundância discursiva. Sentia que devia me definir apenas por uma linguagem. Até que vi que não tinha por que fazê-lo. O que há de estranho em escrever, cantar, criar obras? Para mim era a coisa mais natural do mundo. Era o que fazia. Os artistas que me interessavam eram assim: Yoko Ono, David Byrne, Boom Boom Kid. O fundamental foi encontrar um lugar a partir de onde produzir. Não um lugar físico, mas um espaço mental e social. Quando fazia exposições, sentia que mostrava coisas a pessoas que não estavam interessadas naquilo. Sentia que ninguém estava interessado em arte. Comecei a operar dentro dessa lógica maligna. Eu mesmo ia às mostras e tudo me parecia uma bobagem, uma divagação. Felizmente, saí desse estado. Ao começar a cantar, vi que havia, sim, gente interessada em minhas coisas, tanto do mundo da arte quanto gente que nunca pisou em um museu ou galeria. Senti muita liberdade porque criei um espaço próprio, e sem tirá-lo de ninguém. Sinto que sou algo à parte. Isso me permite estar dentro e fora. O que é paradoxal é que, em vez de ter uma obra dispersiva, fui adquirindo cada vez mais coerência. Agora me dou conta de que sempre falo das mesmas coisas.
Sob o alter ego de Adriana Broadway, você faz uma análise um tanto cruel de sua obra, afirmando que Dani Umpi trata de teatralizar diferentes visões de sua intimidade. A realidade ficcionalizada se torna mais fácil de digerir e atrair interesse?
Meu personagem Adriana Broadway é muito cruel comigo porque tem uma formação acadêmica. Como sou muito preconceituoso com essas pessoas, então dei a ela esse tique. A realidade é muito pior do que isso de “teatralizar visões de minha intimidade”, porque muitas vezes não há intimidade, não há experiência sobre esses assuntos, os inventei totalmente. Como posso falar de problemas amorosos se há séculos não tenho namorado, nem me apaixono? Não é minha intimidade recriada, mas ficcionalizada, fantasiada. É uma visão idealizada do estar apaixonado. Por alguma razão, isso me atrai. Vocês têm um gênero musical encantador, que é a música sertaneja. Esses homens duros, do campo, sofrendo por amor e cantando quase em falsete, fazendo metáforas tão delicadas, contando histórias tão dramáticas. Muito melhor do que o tango. Isso me interessa muito. Não sei se é mais fácil de digerir, porque essas coisas às vezes doem, mas é fato que existe algo que nos obriga a escutar essas músicas. O emocional sempre interessa e é saboreado. Estou convencido de que as pessoas querem histórias. Por isso os livros de auto-ajuda trazem tantos exemplos, casos ilustrativos, e funcionam tanto. Sem falar das religiões e de seus derivados.
O caráter de chacota de parte de seus trabalhos não deixa de apontar e acentuar a crítica a ícones e preconceitos culturais contemporâneos. Levar Xuxa ao Museu Blanes, misturar um cantor essencialmente uruguaio como Fernando Cabrera com Voyage Voyage, assumir-se como artista desafinado, tudo parece embutir um ataque a conceitos como alta e baixa cultura, arte e cultura de massas, bom e mau gosto. No Brasil, um importante comunicador, Chacrinha, popularizou o dito: “Eu vim para confundir, e não para explicar”. Esse também é o seu caso?
Sim, sim, sim! Adoro a comparação com Chacrinha. A confusão é sumamente necessária porque permite reapresentar as coisas. Acredito na mistura dos extremos, na convivência de tudo com tudo (na verdade, a coisa mais natural do mundo). Sou meio antigo, anos 1990, Benetton; acho a mistura poderosa e saudável. As coisas estão muito divididas. Não critico os ícones; o que faço é parodiar a mim mesmo. Por isso encaro minhas imperfeições como se fossem virtudes. Quando canto, uso roupa de homem e de mulher indistintamente ou, por exemplo, um vestido de farrapos e sapatos caríííííííssimos, que não poderia comprar nem com o trabalho de três meses. Na verdade, entre a alta e a baixa cultura, sempre fiquei na baixa. Mas é fato que as misturo.
Seu universo e a persona artística que você construiu oferecem coerência dentro das regras do paradoxo. Você é um “moderno” que conta com a simpatia das senhoras, alguém que assume a homossexualidade, mas é criticado por parte da comunidade gay, um iconoclasta que reverencia as imagens. Qual é o centro e a ambição por trás de suas investigações e propostas artísticas?
Veja, tudo são etiquetas, lugares em que as pessoas te colocam. Algumas pessoas dizem que sou “moderno” ou “glamouroso”. Sei que não sou, mas por que se diz isso? Não tem a ver comigo exatamente, mas com outros mecanismos. A ambigüidade é mobilizadora, provoca. Também dá liberdade. Por que um homossexual tem de agir de um modo determinado por um estereótipo? O que é ser “moderno”? Por que se valorizam os iconoclastas? Por que não se podem reverenciar as imagens? Que imagens devem ser reverenciadas? São conceitos muito relativos, e me surpreende que as pessoas não se dêem conta disso. Acho que é necessário relaxar mais. Esforçar-se para se encaixar em algum lugar é desgastante e não dá certo. O melhor é o movimento. Por que as senhoras não podem ir aos meus shows? Em alguns ambientes do rock, me sinto incômodo, não entendo os códigos. Com as senhoras, me entendo perfeitamente, adoro tomar chá, falar de plantas. Apesar disso, canto, e muitas vezes, em festivais de rock. Tento ver os diferentes cenários como lugares válidos para a produção simbólica. Não que seja a mesma coisa fazer uma performance na TV e em uma galeria. Mas tudo convive. A televisão, por exemplo, está constantemente gerando produção simbólica de alto impacto. A baixa cultura existe. Xuxa não vem da arte e só entra na arte se um artista a ressignifica. No entanto, o “planeta Xuxa”, com sua simbologia, existe e incide fortemente na sociedade em nível artístico, estético, ideológico. Nenhum livro de arte registra isso, porque a história da arte corre paralela à história do mundo. Dou para minha mãe um catálogo de alguma bienal e é como se lhe desse um livro de mecânica quântica. Não digo que teria de ser diferente. Quero dizer que há outros espaços para produzir e mostrar. A “polpa” do meu caroço está em vários lugares. Não só no “campo da arte”.
Você se surpreendeu ou achou divertido ser tema de um ciclo de debates no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires? Dani Umpi virou tema de estudo?
Fiquei surpreso e envergonhado. Uma parte de mim queria ir para escutar o que se dizia, mas meu ego não é tão grande. Para mim era muita responsabilidade ser citado no título de um ciclo sobre o pop em um lugar tão importante no meio em que transito. Sempre que me colocam como artista representativo de minha geração, me constranjo. Não quero representar nada. Nunca pensei que pudesse chegar ao momento de ser analisado. No entanto, supõe-se que o artista busque isso.
Em toda a sua obra, a aura de ficcionalização é evidente. O simulacro é a chave para entrar nesse mundo?
Totalmente. Minha formação acadêmica foi em ciência da comunicação, no final dos anos 1990. Baudrillard era uma espécie de Paulo Coelho, um pensamento best seller para minha geração. É impossível para mim ver as coisas a partir de outra ótica.
North, o CD-piada que se transformou em um sucesso e abriu um novo caminho em sua carreira, foi curiosamente gravado em 11 de setembro de 2001. Você saiu do estúdio e se inteirou de que o mundo havia entrado em colapso? Foi esse um momento de “ficcionalização” involuntária na sua vida, quando se ausentou da talvez maior “ficcionalização real” deste século?
Ui, nunca havia pensado nessa tarde nesses termos! Que interessante o que você diz e que estranho que eu nunca tenha pensado nisso. Em primeiro lugar, o CD North não foi uma piada com Jaime Roos, como muito se disse. Basta escutá-lo para começar a rir, não de Jaime Roos, mas de mim. Nessa época eu fazia parte do coletivo Movimiento Sexy (do qual fizeram parte Martín Sastre e Paula Delgado, entre outros jovens artistas uruguaios), e nessa tarde nos reunimos para fazer uma obra. Entre uma gravação e outra, assistíamos à TV e não entendíamos o que estava acontecendo. Acho que continuamos a não entender essa cena realmente.
“Gosto de ficar bem com todo mundo. Nisso sou honestamente falso”, você disse uma vez. Viver, dentro e fora do contexto artístico, é um “fazer-de-conta”?
Não. Já não vivo mais nesse esquema de que “tudo pode ser uma obra”, já não “faço de conta”. Não porque isso esteja errado, mas porque não me interessa. O que me interessa é fazer. Mas nem tudo o que faço é uma obra. Aprendi muito sobre isso quando tive de enfrentar uma situação com um fator ético importante. Decidi fazer uma série de “cadernos de viagem” com alguns fãs. Eu lhes escrevia e eles me respondiam, e assim sucessivamente, até completar os cadernos. Tencionava mostrar esse material, utilizá-lo como obra. Mas muitos fãs usavam os cadernos como diário, me contavam coisas pessoais. Eu também guardava tudo o que me davam nos shows, bonecos, cartinhas, porque tomava isso como “uma obra”, algo que teria como destino uma galeria. Mas nas cartas as pessoas contavam coisas de suas vidas. Eu não poderia mostrar isso, seria falta de respeito. Então decidi viver essas “ações” como o que são, sem releituras. Não “fazer-de-conta” que era um cantor e que experimentava artisticamente a partir desse lugar.
Em 2004, a mostra Tics, sob sua curadoria, recebeu o qualificativo de “um dos acontecimentos inovadores do ano” por parte do jornal uruguaio La República. O que você busca como curador?
Sou muito curioso. Gosto de me fascinar, de satisfazer minha capacidade de assombro. Talvez por isso seja muito pouco retrô, revisionista, nostálgico. Gosto do novo, da produção emergente. Tics formou parte do projeto Adriana Broadway; foi uma mostra com curadoria dela. O roteiro curatorial se baseava em obras realizadas de uma maneira compulsiva ou neurótica. Incluía obras de artistas bastante reconhecidos em meu país, trabalhos de artistas que nunca haviam exposto, de gente que não se considerava artista e de crianças.
Muita gente que te vê cantar não conhece seu trabalho como artista plástico, e alguns setores da arte convencional não consideram sua obra musical arte. Como você se posiciona em meio a essa situação “anfíbia”, entre dois mundos?
Gosto muito dessa noção do “anfíbio”. Vejo essa situação como algo muito interessante. Não gera desconforto, ainda que às vezes me canse um pouco ter que ficar justificando e explicando o que faço. As pessoas não têm por que saber que eu escrevo, nem ver minha música como algo “artístico”. Tampouco peço esse tipo de valorização “integral”. O que acontece é algo geral, que não tem muito a ver comigo. Nem todas as pessoas interessadas na arte atual também têm interesse em música, nem as pessoas interessadas em narrativa acompanham também a arte atual. E nem falar dos produtores, dos curadores. Quanto mais específicos forem os interesses, mais fechados estão para outras linguagens.
Você definiu Dani Umpi como o garoto que tenta mostrar suas habilidades na festa de fim de ano da escola para ser aplaudido. Pode ser que este seja o conceito inicial do personagem, mas o êxito de Dani Umpi deriva de outros elementos, não?
A mise-en-scène que faço quando canto ao vivo ou nos clipes é festiva. Gosto da festa, me interessa. Quase todas as canções são “dançantes”. Por outro lado, me preocupo que tecnicamente seja um bom produto, bem feito, competente. A imagem é original em meu meio, e acho que isso funciona. Talvez o relativo êxito derive do “espírito” de tragicomédia. As canções têm letras desesperadoras, mas são alto-astral. Mostro-me como um “divo antidivo”, uma estrela imperfeita, humana. Mas não é que isso agrade a todo mundo. Muita gente não me suporta.
Uma das razões para a popularização de seu trabalho é que você o prepara na medida para, senão cativar, ao menos chamar atenção. Ressignificar a cultura estabelecida operando com os códigos do mercado é outra brincadeira séria de Dani Umpi?
O mercado é a única instância que me recebe como “artista multifacetado”, que não estranha que eu escreva, cante e faça obras de arte, porque vê tudo como virtudes que contribuem para a soma. O mercado vê números. Para mim, é mais um cenário, que me permitiu coisas incríveis: quando uma música minha entrou no Top Ten da MTV Latina, competi com Madonna e Shakira. Isso é uma obra? Não sei, mas que um artista como eu esteja nessa situação me parece significativo.
Quais seus próximos projetos ou desejos ou obsessões?
Estou muito entusiasmado com o convite do Videobrasil, Encontros, Dossier, e com o Brasil. Em outubro vou expor no Rio de Janeiro, em Niterói. Já que estarei nessas terras, quero conhecer Elke Maravilha. Sua manager se colocou em contato com o meu, porque parece que escutaram uma música que eu dedico a ela, Vira Elke Maravilha, e ela gostou. Fiquei nas nuvens. Na verdade, o que planejo é fazer no Rio um lugar para conhecê-la, um céu azul cheio de papéis picados.