Depoimento Carlos Nader, 07/2003
À Imagem do Poeta: ensaio em homenagem à Waly Salomão
“O poeta trabalha com imagens”, disse a professora primária a uma classe distraída, e também a mim, aluno silente em cujo espírito a frase caiu como um raio. Um raio real, de trovão e voltagem metafóricos, ou seja, também reais.
Fiquei tonto. Ainda hoje, lembrando aqui, sinto um pouco mais dessa tontura benigna que a frase gerou. “Como assim, imagens?”, pensei absorto num ambiente de vida cujo lado interior era o gás ainda liquefeito da minha alma nova e o lado exterior era a sala de aula, logo a sala de aula, um dos cenários fundamentais da etapa inicial do processo civilizatório, aquela em que sondas tão inteligentes quanto as bombas americanas são lançadas dentro desse gás da gente para uma missão de guerra cirúrgica: apartar a palavra da paisagem, extrair o nome da imagem, dissociar definitivamente a realidade da imaginação.
“O poeta trabalha com imagens.” Nem sei se o paradoxo da frase e da situação chamou a atenção dos meus colegas. Mas eu fiquei mesmo muito confuso. Na boca da professora, o poeta já parecia querer contradizer tudo aquilo que a própria professora estava lá para ensinar. O que talvez eu ainda não tivesse entendido a respeito dessa introdução da poesia no currículo, é que ela é antes de tudo uma chance oficial dada à criança de reaprender tudo aquilo que ela já nasceu sabendo. Imaginação é paisagem. Chão é Sonho. Palavra é Imagem. Não é?
Dos desregramentos que a poesia aplicou aos meus sentidos, a frase do primário deve ter sido o primeiro. Mas o maior, sem dúvida, foi ter conhecido Waly Salomão. Não um poema de Waly, mas a sua própria pessoa primária. Por uma simples razão. Como quase todos os poetas, Waly projetou imagens no papel. Como quase nenhum deles, Waly projetou a poesia imediata na tela da vida. Na cena da realidade. Alterando-a, ou, pelo menos, alterando-me, para sempre.
Lembro do nosso primeiro encontro. Fui levado pelo Duncan, um amigo comum. Lembro bem. Em HDTV, com som digital e edição emocional, afinal, como dizia o próprio Waly, “a memória é uma ilha de edição”. Faz uns 15 anos. Waly estava hospedado no mais banal dos apart-hotéis de São Paulo. Toquei a campainha. E ele abriu a porta de uma daquelas amizades instantâneas. De humor à primeira vista. Conversamos, numa troca justa, ele entrando com o verbo e eu com a gargalhada. Uma hora, o telefone tocou. Ele atendeu à janela, olhando para fora, para a cidade. Atrás dele, procurei discretamente o relógio, de soslaio. Pra quê. “Tá atrasada, querida?”, ele perguntou, virando direto na minha direção. Enrubesci, claro. A professora primária não tinha me avisado que poeta tem um olho nas costas.
“Não é nas costas não, é no cu mesmo.” Ele não disse isso. Mas foi por acaso. Quem conviveu com o Waly sabe que ele certamente me diria uma coisa dessas, mesmo tendo sido apresentado a mim poucos minutos antes. Sempre em sintonia radical com os versos de Oswald de Andrade que ele adorava citar: “poesia é tudo: jogo, raiva, geometria/ assombro, maldição e pesadelo/ mas nunca/ cartola, diploma e beca”. A poesia 24 horas de Waly vinha às vezes travestida em blagues ácidas e pedestres, ou em agressividades quase sempre macias, congregadoras, golpes certeiros no apartheid existencial em que pode se transformar a boa educação. E onde quer que se localizasse de fato o tal do olho, a impressão era de que ele fosse mesmo onisciente. Na vida e no papel. A poesia de Waly captava/lançava cut-ups raciocinados de/para tudo quanto é lado do tempo/espaço. Como se pretendesse ser algum radar total, alguma câmera irrestrita, algum browser absolutamente esfomeado, conectado à vida em banda larga.
Não sei se a presença de Waly tornava as coisas mais reais ou irreais. Mas sei que ela certamente tornava as coisas mais. Essa experiência de mundo, tão ampla, teve um impacto enorme na minha maneira de pensar. Na vida e no vídeo. Um dia, andando pelas calçadas do Leblon, indo para nenhum lugar, conversávamos mais uma vez sobre imagens. Eu disse que queria ver o vídeo bem diferente do cinema, não como um projeto de realização, não como uma meta. Se o filme, o filmão, é sempre o resultado de um árduo e longo caminho para realizá-lo, eu queria que o vídeo fosse apenas o documento de um caminho de vida, de uma experiência. E Waly traduziu toda essa pretensão num poeminha simples, dedicado a mim, mas cujo título poderia muito bem ser dedicado à sua própria obra, como um todo:
Pan Cinema Permanente
Não suba o sapateiro além da sandália
– legisla a máxima latina
Então que o sapateiro desça até a sola
Quando a sola se torna uma tela
Onde se exibe e se cola
A vida do asfalto embaixo
e em volta.
A partir daí, não paramos de colaborar um com o outro. Ele fez performances em quase todos os meus vídeos ou instalações, em diferentes cantos do planeta, sempre apoiados, de uma maneira ou de outra, pelo Videobrasil. Mas numa hora dessas, ainda a poucos dias de sua morte, tenho que ser muito sincero e confessar que costumava sentir uma ponta de decepção ao final de cada trabalho que realizamos juntos. Não que não tivéssemos dado a alma. Não que não tivéssemos feito sucesso. Pelo contrário. Demos. Fizemos. É que, na comparação inevitável, a performance de vida de Waly era uma obra-prima insuperável.
São Paulo, Julho de 2003
ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Deslocamentos - 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 221 a 223 , São Paulo, SP, 2003.