VIDEOBRASIL 40 | 9º Videobrasil
Na Fábrica da Pompeia, festival amplia estrutura e diálogo com o mundo
O 9º Festival Internacional Videobrasil*, ocorrido entre 21 e 27 de setembro de 1992, marca uma série de mudanças e ampliações no evento paulistano, tornando-se um divisor de águas em seus 40 anos de trajetória. Realizado pela primeira vez com uma pausa preparatória de dois anos, o festival passa a ser organizado em parceria com o Sesc São Paulo – o que se mantém até hoje – e ganha como nova casa o Sesc Pompeia, após anos no Museu da Imagem e do Som. O evento é também o primeiro realizado após a criação da Associação Cultural Videobrasil, em 1991, instituição que surge com o intuito de fomentar a produção artística do Sul Global e, principalmente, salvaguardar e ativar o acervo criado ao longo dos anos.
Já firmado como mostra internacional desde a oitava edição, o nono festival amplia agora sua estrutura, escopo curatorial e espaço expositivo. Nas palavras da diretora Solange Oliveira Farkas, em texto do catálogo: “É um privilégio poder contar com o maravilhoso espaço recriado pela arquiteta Lina Bo Bardi ao aproveitar uma antiga fábrica e que parece ter sido pensado para um festival de vídeo: o SESC Fábrica Pompeia”.
Ao explicar a nova periodicidade do evento, Solange afirmava que havia uma necessidade de maior tempo para pesquisa, aprofundamento de redes internacionais e organização de um festival de grande porte. “O Videobrasil deixa de ser apenas uma competição de videomakers e assume o caráter de bienal.” Deste modo, são dados também passos nítidos do evento em sua aproximação com as artes visuais (eletrônicas, performáticas ou plásticas), algo que se concretiza mais fortemente na edição seguinte, em 1994.
A parceria com o Sesc-SP viabiliza a vinda de diversos convidados nacionais e estrangeiros. A maior repercussão foi em torno do nova-iorquino Bill Viola , artista que misturava vídeo, instalação e performance e criava ambientes imersivos na busca por “reunir os sentidos humanos”, e não separá-los como havia feito a ciência ocidental. Viola veio ao Brasil pela primeira vez, para lançar no festival o inédito The Passing, e ganhou uma mostra retrospectiva com trabalhos monocanal criados de 1979 a 1991, entre eles o clássico I Do Not Know What It Is I Am Like. Em entrevista à Folha de S.Paulo, o artista afirmava: “Não creio que minhas imagens sejam muito diferentes daquelas que se encontravam nas cavernas pré-históricas ou nos quadros de Cézanne. (...) Se uso vídeo é porque vivo na segunda metade do século 20 e esse meio é a forma mais relevante de arte visual da vida contemporânea”.
Outro convidado de peso foi Gianni Toti (1924-2007), o “erudito libertário” considerado pai da “videopoesia”. Nome de destaque na poesia, dramaturgia, filosofia, cinema e jornalismo, Toti apresentou no Videobrasil três trabalhos audiovisuais chamados por ele de poematronics, parte de sua constante pesquisa por abrir “fronteiras psicoperceptivas” a novas “velocidades sensoriais”. No festival, ele afirma: “A poesia do futuro é a fusão de todas as artes”.
Mostra competitiva do Hemisfério Sul
Dedicada pela segunda vez à obras de artistas do Sul, a mostra principal apresentou uma seleção de 45 obras do Brasil, Argentina, Austrália, Chile, Uruguai e Moçambique. De um modo geral, ganharam mais espaço na edição trabalhos de caráter artístico e experimental, mesmo que seguissem presentes alguns vídeos documentais (como Índio, de Roberto Berliner), humorísticos (O Jumento nosso irmão, da TV Viva, e ÉCU 92, da 3 Antena) e videoclipes de música (como Trac-trac, de Berliner e Gringo Cardia para música dos Paralamas do Sucesso).
Após oito edições premiando 10 obras por evento, o nono festival adotou um recorte mais reduzido, com quatro trabalhos escolhidos. Em primeiro lugar esteve Techno/Dumb/Show , do australiano John Gillies, uma montagem de performances protagonizadas pelos integrantes do grupo de teatro vanguardista The Sydney Front. Na segunda colocação, o vídeo Parabolic people era o desenvolvimento da pesquisa da carioca Sandra Kogut com as videocabines, espaços fechados em que o público gravava anonimamente depoimentos e outras ações. Desta vez, cabines foram colocados não só em espaços públicos do Rio, mas de várias capitais pelo mundo. O terceiro lugar foi para O espírito da TV, de Vincent Carelli, trabalho que mostra a reação de índios Waiãpi (AP) ao ver suas próprias imagens na televisão. O vídeo é precursor do premiado projeto Vídeo nas Aldeias, que se estabeleceu ao ensinar as populações indígenas a produzir seus próprios filmes.
O quarto prêmio, intitulado FUTURIS, foi para Motocontínuo, de João Quintino, e concedeu ao artista um período de residência na Ex Machina, uma das maiores produtoras francesas de animação e efeitos digitais da época. Tratava-se da continuidade do projeto do Videobrasil de criar redes internacionais e conceder bolsas e residências para artistas. O vídeo de animação de Quintino é uma homenagem ao fotógrafo inglês e precursor do cinema Eadweard Muybridge, conhecido pelo uso de múltiplas câmeras para captar movimentos.
O júri internacional que escolheu os premiados também teve, desta vez, outro papel de destaque, fazendo a curadoria de mostras paralelas intituladas Proposta do Júri. O cineasta inglês Julien Temple, por exemplo, apresentou vinte videoclipes que dirigiu para músicos como David Bowie, Rolling Stones e Janet Jackson. “O pop video, em seus quinze anos de existência, revolucionou todos os aspectos da imagem em movimento na cultura popular. Toda uma geração cresceu vendo o mundo através de music videos”, escreveu Temple no catálogo. O australiano Peter Callas, por sua vez, reuniu alguns de seus trabalhos com animação e computação gráfica que tratavam de temas ligados à identidade cultural de diferentes povos, à história colonial e à memória coletiva.
O espanhol José Ramón Peres Ornia, estudioso da relação entre televisão e poder e diretor de programação do canal Televisión Española, apresentou uma seleção de 14 vídeos de diferentes autores, numa espécie de revisão histórica das primeiras décadas da videoarte. A série reuniu trabalhos de nomes como Jean-Luc Godard, Nan June Paik, Marina Abramović, Antoni Muntadas, Robert Cahen e Jean Paul Fargier – este último também teve no festival uma mostra-tributo dedicada à sua obra. Outra Proposta do Júri foi a do artista e compositor francês Jérôme Lefdup, que apresentou 11 de seus trabalhos onde pesquisa imagética e performance sonora se fundiam na criação de uma linguagem autoral própria.
O brasileiro Marcello Dantas, por fim, selecionou vídeos de Robert Altman, Laurie Anderson, Eder Santos e Marcelo Tas, entre outros, incluindo o célebre Programa Legal, de Belisário França e Guel Arraes, atração que se tornou um clássico da Rede Globo. Ainda entre as mostras paralelas, Imagens do futuro reuniu cerca de 70 vídeos sob curadoria do francês Jean-Marie Duhard, com destaque para trabalhos ligados ao rápido desenvolvimento tecnológico no início dos anos 1990.
A ocupação do espaço
Mas não foram apenas as mostras, os debates e a presença de artistas e público circulando pelo Sesc que deram a cara do nono Videobrasil. Na verdade, o que favoreceu a criação de um espaço expositivo original e inovador foi principalmente a presença da série de instalações espalhadas pelo ambiente. “Durante esta semana, o Sesc Fábrica Pompeia se transforma numa usina geradora de imagens destinadas a preparar o olho do espectador do futuro. Não mais um mundo de luz e sombra, como no cinema, mas um mundo de cores e realidade virtual”, constatou o jornalista Antonio Gonçalves Filho.
Um dos grandes destaques foi The desert in my mind, de Eder Santos, uma instalação de 90m2 comissionada especialmente para o festival. Nela, o artista mineiro projetava imagens do Vale da Morte (EUA) em um espaço que evocava a paisagem do deserto, com 15 toneladas de areia espalhadas pelo chão e temperaturas artificiais que iam de 4 a 48 graus dependendo da hora do dia. Também chamou atenção do público Watch yourself, do artista e matemático norte-americano Timothy Binkley, trabalho interativo que inseria imagens dos passantes em recriações de pinturas clássicas de Van Gogh e Velázquez, entre outros. A inglesa Tina Keane, por sua vez, montou 11 pares de monitores em forma de escada, com imagens que contrapunham executivos ricos e mendigos na cidade de Londres.
Havia ainda uma instalação sobre “fuga e salvação”, da alemã Barbara Hammann, obra concebida originalmente para uma exposição em Dachau, cidade que abrigou um campo de concentração no período nazista; uma obra do espanhol Luís Nicolau, inspirada nos altares renascentistas, que recriava paisagens bíblicas em vídeo; e o trabalho do brasileiro Ulysses Nadruz, um videowall com 36 monitores que exibiam três “cartões postais” do Brasil – no caso, um vídeo de ficção e dois documentários sobre o país.
Por fim, algumas exposições marcaram o Videobrasil: do artista e cineasta Moysés Baumstein (1931-1991), uma mostra exibiu várias holografias; sob curadoria da brasileira Rosely Nakagawa, a exposição Impulsos Eletrônicos reuniu imagens manipuladas em computador por nomes como Arnaldo Antunes, Carlos Matuck, Laerte, Luiz Zerbini e Marcelo Cipis; já Totens Domésticos, de Marcelo Masagão, apresentou 12 esculturas feitas de ferros de passar, aspiradores de pó, enceradeiras, televisores e outros objetos.
Além disso, duas performances movimentaram a semana do evento: Santa Clara Poltergeist, de Fausto Fawcett, um show de sons e imagens que contava a história de uma garota de programa em Copacabana – “santa que cura com sangue, loira que cura com sexo”; e as Videomáscaras, de Otávio Donasci, que retomavam a pesquisa de um dos artistas mais atuantes nas primeiras edições do festival, nos anos 1980.
O Brasil e o mundo
Pelo quarto ano seguido, o Videojornal (grafado agora como Videojornow) fez a cobertura diária do festival, desta vez sob direção de Marcello Dantas. Os vídeos, editados em um estúdio no próprio Sesc, mostravam bastidores do evento e entrevistas nacionais e internacionais – várias delas gravadas através da recém-criada tecnologia do videofone. Além de serem apresentados ao início da programação de cada dia, eles tiveram exibição na TV Cultura, aumentando de forma significativa o alcance de público do festival.
Com o salto de dois anos na realização do festival, não apenas transformações tecnológicas e novas linguagens artísticas se faziam mais notáveis, mas também o contexto político no Brasil e no mundo já era bastante distinto. Se em 1990 Fernando Collor acabara de assumir a presidência da República, em 1992 estava prestes a sofrer impeachment – o festival transcorreu em um mês repleto de manifestações pelo Brasil. No plano internacional, a União Soviética havia sido dissolvida de vez em dezembro de 1991 e, com o fim da Guerra Fria, anunciava-se o que seria chamado de Nova Ordem Mundial. O tema surgia, no festival, no videoclipe Fora da ordem, dirigido por Andrucha Waddington e José Henrique Fonseca para música de Caetano Veloso. Na letra, a constatação de um mundo menos ordeiro e harmonioso do que o vitorioso capitalismo queria fazer crer: “Alguma coisa está fora da ordem/ Fora da nova ordem mundial”.
Em um contexto repleto de conflitos políticos e crises sociais, mas, também, de noves ares e possibilidades, o festival se mostrou mais uma vez conectado a um mundo em transformação. Estabelecido agora como instituição cultural e dando o pontapé a uma promissora parceria com o Sesc-SP, o Videobrasil parecia captar o contexto histórico, como explicita o texto de Solange. “Por todo lado se veem sinais de um tempo fértil. Organizar um evento como o Videobrasil me coloca num centro para onde converge boa parte da energia criativa dispersa por aí, tanto no Brasil como em todo o mundo. (...) Espero que minhas intuições estejam certas, que os sinais de novos tempos se confirmem e que o Festival Internacional Videobrasil possa acompanhar o caminho rumo ao século 21.”
Por Marcos Grinspum Ferraz
*a nomenclatura utilizada para intitular a principal mostra organizada pelo Videobrasil, hoje chamada Bienal Sesc_Videobrasil, passou por adequações ao longo dos anos. As mudanças se deram a partir da percepção dos organizadores sobre as características de cada edição, especialmente no que se refere ao seu formato; duração; periodicidade; parcerias com outras empresas e instituições; e à expansão das linguagens artísticas apresentadas. Os principais reajustes no título das mostras foram: inserção do nome da empresa parceira Fotoptica entre a 2ª (1984) e a 8ª (1990) edições; a inclusão da palavra “internacional” entre a 8ª e a 17ª (2011) edições, a partir do momento em que o evento passa a receber de modo intensivo artistas e obras estrangeiros; o uso do termo “arte eletrônica” entre a 10ª (1994) e a 16ª (2007) edições, quando se percebe que a referência apenas ao vídeo não dava conta dos trabalhos apresentados; a inclusão do nome do Sesc, principal parceiro da mostra nas últimas três décadas, a partir da 16ª edição; e a substituição de “arte eletrônica” por “arte contemporânea” entre a 17ª edição e a 21ª (2019) edições, a partir do momento em que o foco se expande para as mais variadas linguagens artísticas. A mais recente mudança significativa se deu em 2019, na 21ª edição, quando o nome festival é substituído por bienal, termo mais adequado a um evento que já vinha sendo realizado bianualmente e com uma duração expositiva de meses, não mais semanas.
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Imagens: Acervo Histórico Videobrasil
1. Cartaz do nono Videobrasil, por Kiko Farkas.
Galeria 1
1. "O espírito da TV", de Vincent Carelli.
2. Solange Oliveira Farkas, Bill Viola e Sandra Lisch.
3. Gianni Toti (1924-2007).
4. "Techno/Dumb/Show", de John Gillies.
5. Sandra Kogut e Jean Paul Fargier.
6. José Ramón Peres Ornia.
7. "O Jumento nosso irmão", da TV Viva.
8. John Gillies na premiação.
9. Jérôme Lefdup.
10. Julien Temple.
Galeria 2
1. "Parabolic people", de Sandra Kogut.
2. "Escalator", de Tina Keane.
3. "Fora da ordem", de Andrucha Waddington e José Henrique Fonseca.
4. "Motocontínuo", de João Quintino.
5. O australiano Peter Callas.
6. "Postais do Brasil", de Ulysses Nadruz.
7. "Santa Clara Poltergeist", de Fawsto Fawcett.
8. "Trac-trac", de Roberto Berliner e Gringo Cardia.
9. "Watch yourself", de Timothy Binkley.
10. "Nest für Dachau", de Barbara Hammann.
11. A inglesa Tina Keane.