Sob o signo do movimento
por Sabrina Moura

sobre o Foco 5 dos Programas Públicos do 18º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil


Um projeto híbrido -- entre o livro de artista e a coletânea de ensaios -- realizado sob o signo do movimento sentido e vivido. Assim foi apresentado pela artista-pesquisadora Marie Ange Bordas Geografias em Movimento, o nono Caderno SESC_Videobrasil. Parte do quinto foco dos Programas Públicos do 18° festival, o encontro acerca da publicação, realizado em dezembro de 2013, discutiu temas caros ao Videobrasil, em um debate marcado pela profunda implicação prática de cada um dos convidados em suas temáticas de pesquisa.

Ao discutir a arte como um exercício político e aberto a um processo de construção coletiva, os diálogos que ocorreram durante o encontro ecoaram a própria maneira de elaboração dos textos para o caderno. Em uma trama de conversas contínuas, Achille M’bembe, Magdalena Campos-Pons, Simon Njami, William Kentridge, Rogério Haesenbert e Ana Paula do Val trouxeram à publicação contribuições expandidas em relação às suas práticas. Geografias em Movimento apresenta-se, assim, em múltiplos exercícios de intercâmbio, mesclados às experiências de Marie Ange Bordas como artista, educadora e pesquisadora, iniciadas há mais de doze anos.

Foi com o projeto Deslocamentos (2001-2006) -- realizado com grupos de refugiados na Inglaterra, França, Sri Lanka, Quênia e Africa do Sul -- que Marie Ange fez suas primeiras incursões em direção à reflexão sobre o pertencimento “em meio a um  incessante movimento de cruzar fronteiras visíveis e invisíveis”. Nesse processo, Marie Ange relembrou sua estadia em Joanesburgo -- cidade para onde voltou durante a sua pesquisa como editora -- como uma experiência especialmente formativa. Para a artista, Joanesburgo representa a Africa urbana, uma metrópole contemporânea fundada em suas diferenças, que permite diversos cruzamentos com as questões enfrentadas pela sociedade brasileira.

Às experiências de Marie Ange, somaram-se as visões sobre cartografia e território trazidas pela urbanista e pesquisadora Ana Paula do Val e pelo geógrafo Rogério Haesbaert, convidados ao encontro público. Ao apontar práticas e conceitos para se pensar um mundo em movimento, Ana Paula e Rogério discutiram novas visões para considerar as subjetividades, afetos e presenças individuais na construção e entendimento do espaço.

Definindo seu percurso como um exercício que vem do “estar em campo”, Ana Paula do Val ressaltou o olhar sobre “as narrativas de mundo estabelecidas a partir do olhar do outro” como um importante ponto de contato com o trabalho de Marie Ange Bordas. A pesquisadora ressaltou a imagem do corpo-território da artista-cartógrafa como um campo político que inscreve em si a multiplicidade de uma identidade nômade.

O que um território pode ativar ou recusar? Como representar a ocupação de um espaço e suas práticas culturais? Em que medida podemos dar forma a uma paisagem física e psicossocial em consonância com as experiências vividas? Em seus diversos projetos coletivos, Ana Paula busca responder a essas questões propondo o questionamento da cartografia oficial e discutindo a cidade a partir de parâmetros que não são predefinidos pelo plano diretor. Sua práxis gira em torno de uma outra epistemologia, uma forma de produzir conhecimento que valida o corpo como fonte e leva em conta experiências diversas aos dados sociais.

Ao entender o mapa como uma narrativa política forte, Rogério Haesenbert reafirma a visão de Ana Paula para pensar e recriar as experiências de trânsito, com as que são apresentadas no caderno. Autor do texto de referência Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade (2004), Rogério problematiza a noção de território com uma acepção de carga politica e simbólica. Em sua produção, o geógrafo traz a noção de  território enquanto “espaço-tempo vivido”, sempre múltiplo, diverso e complexo, e afirma: “É justamente por fazer uma separação demasiado rígida entre território como dominação (material) e território como apropriação (simbólica) que muitos ignoram e a complexidade e a riqueza da ‘multiterritorialidade’ em que estamos mergulhados.”

Em sua fala, Rogério trouxe aspectos da sua produção teórica pontuados por experiências pessoais que surgiram no diálogo com Marie Ange na preparação de seu texto para o livro. Ao intercalar imagens de suas viagens e pesquisas de campo, o geógrafo buscou reafirmar o entendimento do território como processo e não como um dado.

“Será que a arte pode nos ajudar a pensarmos essas Geografia(s)?”, perguntou Rogério, ressaltando o caráter interdisciplinar do projeto. Essa questão é crucial e ecoa, de certa forma, todo o projeto pensado para os programas públicos dessa edição do festival. Se, por um lado, corre-se o risco de um choque de hermetismos ou de uma certa “superficialidade” na abordagem de seus eixos teóricos, em grande parte em resposta à necessidade adaptação da linguagem; por outro lado, permite-se friccionar os campos de especialidade, criando tensões que contribuem para se questionar a circunscrição dos temas nesses mesmos campos.

Entre os principais aportes de Geografias em Movimento está, portanto, sua composição diversa. Convidados de percursos distintos reunidos em torno de  trabalhos que fazem do conceito uma arma para criar e atuar nos permitem pensar o comprometimento da arte com seus efeitos políticos, em um exercício estético e afetivo. Se tomarmos como horizonte as premissas metodológicas de uma possível epistemologia do Sul, uma importante consideração talvez diga respeito à diluição da compartimentação de saberes, no sentido de um pensar complexo, como afirmava Edgar Morin. Como bem coloca Marie Ange Bordas, o mais importante não é afirmar-se representante de uma prática. “Ser artista é o menos importante”, afirma Marie, “Para mim, o que conta mesmo é ser ponte”.