Contra-TV: Práticas Experimentais do Vídeo nos Anos 1980
por Ruy Luduvice
sobre o Foco 1 dos Programas Públicos do 18º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil
O primeiro foco dos programas públicos teve como participantes em sua primeira mesa Tadeu Jungle, Walter Silveira, e Pedro Vieira, ex-membros da TVDO, além do diretor de teatro, ator e dramaturgo José Celso Martinez Correa. No segundo encontro, participaram Fernando Meirelles, Marcelo Tas, Marcelo Machado, ex-membros do Olhar Eletrônico, além do jornalista Gourlart de Andrade. Ambos os encontros contaram com mediação do jornalista Gabriel Priolli.
O mediador se encarregou de refazer para o público o contexto onde surgiram esses dois grupos: Na primeira metade dos anos oitenta a censura prévia à imprensa havia acabado, dando brechas para uma maior liberdade de expressão. Junta-se a isso a chegada do aparato técnico portátil (ainda que pesado o suficiente para gerar problemas na coluna, como contou Zé Celso), no final dos anos setenta. Com redução de custos à produção, surgem o U-Matic e, em 1982, o videocassete doméstico. É a partir daí que emerge a primeira geração de audiovisual eletrônico do Brasil. Até então, para se produzir imagem eletrônica era necessário estar dentro de uma emissora de televisão. Seria também importante acrescentar que se trata de um contexto ainda distante do mundo das artes visuais e mesmo das experiências em Super-8 realizadas na década anterior por artistas como José Roberto Aguilar, Letícia Parente ou Anna Bella Geiger. De toda a forma, essa realidade - tão distante do tempo presente e de sua profusão de imagens, redes sociais e aparatos de todo o tipo – era paulatinamente modificada por jovens universitários se lançando na empreitada do vídeo independente. O sonho de todos era dominar a televisão, tomá-la de assalto. Essa tarefa, no entanto, mostrou-se ingrata no decorrer da década. Goulart de Andrade foi um dos poucos realizadores de emissoras que logo percebeu essa movimentação, convidando o grupo da Olhar Eletrônico para seu programa 23ª Hora, na TV Gazeta. Posteriormente, Nelson Motta também convida o grupo da TVDO para fazer o programa Mocidade Independente, na TV Bandeirantes, de duração curta, sendo considerado demasiado fora dos padrões pelo dono da emissora.
À escassez de espaços de difusão de imagens eletrônicas, somava-se o controle e a manipulação política dos meios televisivos que eram, segundo Priolli, muito maiores do que nos dias de hoje. De fato, os debates sobre legislação democratização dos meios de informação se sucederam nas primeiras edições do Festival Videobrasil, por exemplo. Assim, as jovens produtoras não eram contra “A Televisão”, mas contra “Aquela televisão” que se colocava ali. Televisão esta que, segundo Priolli, permanece até os nosso dias presa a uma linguagem engessada e pouco aberta a renovações. Mas essa ânsia por modificar esse meio de comunicação, aproveitar todo o seu potencial era encarada a partir de diferentes perspectivas pelos dois grupos.
A relação com a poesia, o teatro, e as artes visuais era a marca do grupo TVDO, que cultivava o desejo de inserir esse repertório poético e artístico dentro da programação das emissoras abertas. Jungle ressalta a importância de Antônio Abujamra na formação dos membros e no suporte às primeiras produções do grupo, incentivando o ímpeto dos jovens criadores em subverter uma programação considerada reacionária e conservadora. Tratava-se então de fazer o avesso do que era feito até então, na continuidade de experiências como as do apresentador Chacrinha e do cineasta Glauber Rocha no programa Abertura, no começo dos anos setenta. Outra grande fonte de inspiração era o diretor José Celso Martinez Corrêa.
Zé Celso trabalhava com o vídeo no seu teatro Oficina, inclusive com ambiciosos projetos de uma telenovela gravada em toda a América Latina. Antes do videoteipe, o diretor já realizava experiências com o Super-8. Esse aparato técnico, superado pela chegada de bitolas como o VHS e U-Matic, sugira então como alternativa no registro e divulgação das produções teatrais do grupo, como forma de contornar a censura que se acirrou depois do ato institucional nº 5 em 1968. Desse período datam as filmagens de peças Graça Senhor, por Jorge Bodanzky. Assim, a imagem eletrônica era importante como registro de manifestações políticas, bem como forma de proteção, como lembrou Tadeu Jungle. Há uma relação entre a visibilidade proporcionada por essa linguagem e a sobrevivência de projetos localizados à margem das realizações mais ligados ao mainstream cultural. Isso é claro em Caderneta de Campo, que mostra a luta do grupo Teatro Oficina Uzyna Uzona para sobreviver tanto física quanto espiritualmente às pressões do mercado imobiliário – que pretendia ocupar o terreno ao redor de sua sede – e da indústria cultural; as duas pressões, aliás, consubstanciadas nos embates com a Secretaria do Estado de Cultura, com a Associação de Empresário de Teatro, além dos representantes da categoria teatral. Posteriormente, a militância cultural do grupo continuaria nas conhecidas tentativas do dono do Sistema Brasileira de Televisão, Sílvio Santos, em ocupar o terreno da sede. Na mesma obra, esse conjunto de adversidades é tema dos depoimentos de membros do grupo, tomados como verdadeiros relatos da trincheiras e barricadas, que encerram o vídeo nas cenas de confronto e violência policial em meios urbanos. Assim, essas obras eram tratadas e vistas tanto por Zé Celso quanto pelos integrantes da TVDO como estratégias de combate. Em Frau, de autoria da TVDO, Zé Celso declara: “Estamos numa situação de guerra cultural!”. Assim, há uma relação umbilical entre vídeo e política explicitada pelos participantes dessa mesa. Nesse sentido há uma semelhança entre as situações enfrentada pelo criador do Teatro Oficina e a relatada por Jungle, na convergência entre conquista de espaço e possibilidades ampliadas de expressão. O Festival Videobrasil teria sido, nesse sentido, um meio para essas conquistas, junto com o grafite, praticado no mesmo período por Jungle e Walter Silveira, quando escreviam poemas pelos muros de São Paulo.
Uma ideia cara à TVDO era a de câmera “na olho” (conforme expressão dos próprios membros), que se relaciona ao desejo de um registro mais próximo da esfera da vida real. Trata-se, então, de uma “câmera olho”, que não precisa da condução de um diretor de TV, como explicou Walter Silveira. Em Frau, Zé Celso fala do púlpito, a partir do qual deveria agradecer pelo recebimento do prêmio do Festival de Gramado por seu filme O Rei da Vela, mas o espectador é colocado lado do diretor, e não no lugar teoricamente reservado à plateia. A imagem se incendeia na medida em que as próprias palavras do diretor atacam a colonização da linguagem cinematográfica pela televisiva. O confronto com uma televisão autoritária se dava, portanto, no próprio material, no aparato técnico, numa quebra de hierarquia na qualificação das imagens como adequadas ou inadequadas, como próprias ou impróprias à difusão em rede nacional. Tanto Jungle como Fernando Meirelles dão como exemplo do conservadorismo então presente as matérias jornalísticas, que escondiam a edição, valendo-se de artifícios que escondiam do público o processo de produção, oferecendo a imagem como uma verdade absoluta. Era preciso, portanto, mostrar essa edição, o que era feito pela TVDO através de cortes abruptos. Tal posição arbitrária e autoritária também é objeto de sátira em Heróis da Decadensia, quando Jungle, muito bem alinhado em terno e gravata, intercepta passantes nas ruas de São Paulo como fazem os repórteres de televisão. Porém, ao invés de colher algum depoimento, ele apenas posa ao lado do “popular” para as câmeras, explicitando a ação de constrangimento e assédio a que são submetidos os personagens das matérias telejornalísticas, que recebem docilmente o repórter que busca, na maioria das vezes, apenas relatos que deem maior veracidade a sua própria interpretação do fatos
O oposto dessa relação entre imagem eletrônica e espectador foi buscado pelo grupo em no programa de auditório Fábrica do Som, dirigido por Viera e apresentado por Jungle, com gravações do SESC Pompeia. O programa almejava o rompimento do que era considerado uma transposição do palco italiano para a televisão. O abandono da hierarquia entre apresentador e público expectador proporcionava que todos passassem a ser considerados como atuantes e autores do programa. Essas convicções davam muitas vezes um aspecto caótico às produções da TVDO, como lembrou Pedro Viera, mas, segundo ele, é preciso lembrar que a experiência de eventos de multidões ou massas, tão comuns a um brasileiro do século XXI, eram novidade, e explodiam e gravações de shows de rock, pois, à época, aglomerações não eram mais reprimidas e proibidas pelo regime militar. Esse fenômeno foi explorado em sua ambivalência no documentário Duelo dos Deuses, de Pedro Vieira, que grava o gigantesco evento da Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, realizado no estádio do Pacaembu, em 1988. Ao lado dos indícios de emancipação que as aglomerações e multidões traziam, abria-se espaço para a sombria experiência da massificação e da manipulação ideológica pela espiritualidade neopentecostal, embarcada pela onda da abertura ao consumo da democratização liberal. Mobilizando corações e mentes, essa nova ética protestante substituía a austeridade calvinista pelo frenesi consumista e pela auto complacência hedonista e imediatista, onde o mistério da santíssima trindade revela-se num automóvel e a aposta da fé é atestada por um tubo de ketchup. Tudo isso, é claro, proporcionado e intermediado pela difusão da imagem eletrônica e endossado pela política de concessão de canais.
Tanto Walter Silveira quanto Marcelo Machado mencionam a luta contra a chamada Vênus Platinada – como era apelidada a Rede Globo por conta da faixada prateada de sua sede no bairro carioca do Jardim Botânico. Machado lembra que os anos oitenta foram a época de maior hegemonia do canal de Roberto Marinho, que contava com uma poderosa pós-produção que limpava tudo o que era considerado “resto” ou “sujeira” antes de colocar qualquer produto no ar.
Mais próximos da linguagem do telejornalismo, ainda que buscassem subverte-la, a produtora Olhar Eletrônico conseguiu maior êxito em suas inserção nos canais de televisão a partir das portas abertas por Goulart de Andrade. Recém saído da rede Globo após tentativas da emissora de trazer seu programa, produzido de forma independente, para dentro dos quadros do núcleo de jornalismo da emissora, Goulart frequentava o festival Videobrasil, onde tomou conhecimento do jovem grupo, fazendo então o convite. Como lembrou Marcelo Tas, essa entrada se deu após algumas tentativas malogradas em canais abertos. Em uma delas, Fernando Meirelles, de Blazer, tenta convencer profissionais da TV Globo de que Garotos do Subúrbio – produção do grupo - seria viável como série televisiva. A desconstrução da linguagem consolidada das televisões era encarada de outra forma. Não se tratava tanto de uma operação no nível formal, como feita pela TVDO (embora ela também existisse), mas mais de mostrar os bastidores da TV, revelar como eram feitos os programa. Por outro lado, ideia de encenação e de paródia dos gêneros tradicionais da grade televisiva - sobretudo os telejornais - eram essenciais para o grupo. Marly Normal, de 1983, pode ser visto como representação da vida de um telespectador médio, com toda uma jornada resumida em ágeis e comprimidos 7 minutos.
Como lembra Fernando Meirelles, essa estratégia tornou-se larga medida padrão em grandes emissoras, como a própria Globo, que exibe a redação de seus telejornais como cenário do apresentador. Mas se é possível ver traços de Ernesto Varela em programas humorísticos contemporâneos, a preocupação com o desvelamento da confecção da imagem e, portanto, à busca por ativar uma relação crítica da audiência com o produto televisivo dificilmente pode ser encontrada hoje na grade das emissoras. Varela na Copa, por exemplo, denuncia através do humor, o ocultamento de importantes eventos políticos no país através da massiva atenção dada pela mídia à Copa do Mundo no México, culminando na notória entrevista com o deputado do partido de sustentação do Regime Militar e presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Nabi Abi Chedid, veiculada no Fantástico a partir da gravação feita por Lucas Mendes. O personagem surge do espaço que Goulart passou gradativamente a deixar para o grupo preencher em seus programas. De entrevistados anônimos, o grupo passou a entrevistar personalidades e políticos. Do Outro Lado da sua Casa, de Marcelo Machado, concede ao personagem da reportagem não só o protagonismo da história, como a condução das entrevistas. O arguto morador de rua explicita a existência física do repórter, do olho que o vê, ao aludir ao corpo do entrevistador: “Quantos quilos o senhor pesa˜? - pergunta -“Eu peso 72” – responde – “Então você tem que carregar 72 quilos de você 24 horas por dia”. Portanto, dificilmente um telejornal adotaria integralmente as práticas da Olhar Eletrônico, e a assimilação constada por Meirelles se deu ao custo do abandono, ou pelo menos da mitigação, da radicalidade desses vídeos. Aliás, é compreensível que a linguagem do telejornalismo tenha sido alvo constante de paródia e crítica nas obras dos dois grupos, considerada o formato acabado da imagem autoritária brasileira, apresentada como verdade absoluta sobre a realidade nacional. Esse é um aspecto ainda extremamente contemporâneo das produções tanto da TVDO quanto da Olhar Eletrônico.
Finalmente, os participantes do encontro consideram incerto o futuro da televisão diante das novas tecnologias. Seu “espaço eletromagnético” como disse Priolli, é precioso, e talvez o estabilishment político-econômico decida usá-lo para outras atividades mais rentáveis e estratégicas. Ou talvez ela sobreviva enquanto ritual coletivo, sobretudo em eventos nacionais como os jogos de futebol, segundo hipótese levantada por Marcelo Tas. Já José Celso Martinez Correa, em uma de suas últimas intervenções na mesa, disse que nem a assiste mais, preferindo as outras telas cada vez mais disponíveis.