Ensaio Ángel Kalenberg, 10/2007
Juan-Pedro Fabra Guemberena: vestígios da outra cena
Dados para uma biografia mínima: Juan-Pedro Fabra Guemberena nasceu em Montevidéu, Uruguai, em tempos violentos (1971). Quando tinha dois anos, por razões políticas, sua mãe foi presa por seis meses, “e isso me afetou profundamente”, declarou o artista em uma entrevista. De 1979 a 1984, esteve com sua família exilado na Suécia, pelas mesmas razões políticas. De 1984 a 1989, radicou-se no Uruguai, período que coincidiu com o retorno à democracia no país, onde começou seus estudos de pintura. Em 1989, voltou à Suécia, e desde então vive lá. De 1997 a 2002, estudou na Academia de Arte Real em Estocolmo, da qual saiu como pintor. Depois se dedicaria à fotografia e, mais tarde, ao vídeo.
De sua variada obra selecionaremos, para considerar aqui, dois trabalhos recentes: um vídeo, cujo título é Untitled 2004, e uma série de fotografias, Gilberto’s Place, de 2007. Untitled 2004 se desenrola em um bosque indefinido (mesmo quando o artista revela que se trata da zona leste de uma ilha da Suécia), lugar arraigado no romantismo das paisagens nórdicas (e também nos contos de fadas). O sol está se pondo, até (quase) desaparecer: é a hora do crepúsculo, carregado de sua simbologia mortuária. Por momentos, a imagem se congela. Cai a noite, ou assim parece. Aí Fabra propõe uma narrativa tão mínima que induz a pensar que o artista luta contra a narratividade: seis soldados camuflados e um sétimo morto (morto?), todos suecos, manifestou o autor. O soldado morto se funde com o solo. Está, integralmente, à vista. O resto é matéria de interpretação. Nesse cenário, os personagens (quase) não se movem. O soldado morto emergirá mais para a frente, e seus camaradas finalmente o levam. Ao final, as árvores se fundem.
O artista opera no limite do visível, e a cena está iluminada com luz artificial, teatral, mas mínima. Como Boltanski, Fabra nos dirige a um lugar invisível e mais silencioso. Esse vídeo, como o resto de sua obra, oferece mais perguntas do que respostas. O clima é gerado pelo suspense dos tempos mortos: algo, talvez ominoso, está a ponto de acontecer. E o espectador se sente desafiado a aguardar o acontecimento. Diferentemente, frente a uma pintura – em que é possível abarcar tudo com um só golpe de vista –, não é preciso esperar. No entanto, Fabra quer fazer pintura sempre; suas fotografias e seus vídeos terão sentido se capturarem um olhar como o que reclama a pintura. Sua linguagem não é cinematográfica. Tampouco a do vídeo convencional. Está em uma fronteira frágil entre a pintura e o vídeo.
Bill Viola usualmente faz referências à pintura, mas é mais cinematográfico do que Fabra. Nos vídeos de Viola, unem-se cinema, pintura e som. Esse vídeo de Fabra deliberadamente prescinde (quase) do áudio. A luz pareceria vir dos carros que passam pela estrada contígua ao bosque e lançam sombras. Um recurso da mesma índole é empregado por Viola em The Passing, que mostra em imagens – também noturnas e cenas submarinas – os limites da vida, e o faz optando pela luz que chega de cima. Fabra diz que a iluminação das paisagens noturnas de Untitled 2004 provém de um tipo de bengala utilizada pelo exército sueco para batalhas noturnas: “Composta de magnésio, desce em um pequeno pára-quedas e possibilita tirar fotos em uma paisagem muito ampla, que fica exatamente como uma cenografia”. Mas as bengalas também remetem aos fogos de artifício, à fugacidade das coisas, ao mundo mágico da infância (perdida).
Fabra filma com câmara fixa e costuma recorrer ao primeiro plano. “Assim como a ampliação não tem por única finalidade tornar mais claro o que ‘sem ela’ seria confuso (graças a ela, pelo contrário, vemos aparecerem novas estruturas da matéria)” – diria Walter Benjamin, em seu mítico ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” –, “tampouco a câmera lenta coloca simplesmente em relevo formas de movimento que já conhecíamos, mas descobre outras formas, perfeitamente desconhecidas.”1 Com esse vídeo, Fabra queria poder determinar o tempo das coisas. E gerar um mundo visual que fosse contra tudo o que se estava vendo nos meios de comunicação, para subverter os orçamentos e os produtos da televisão, em um tempo que se inundou de imagens de material censurado. McLuhan via isso claramente quando advertiu que toda vez que aparece um novo meio todos os já existentes são afetados, porque devem se adaptar às novas circunstâncias.
As cenas que Fabra filma são retratos de figuras (quase) imóveis, como se fossem imagens de pinturas emolduradas e penduradas nas paredes, próprias de um olhar pictórico. As figuras de Viola, ao contrário, se movem, como em The Passions, por exemplo, em que o autor parece um especialista em pintura em um museu. Mas a sucessão de cenas de Fabra converte seu vídeo em uma espécie de pintura em movimento, de pintura-vídeo. Como os pintores, Fabra trabalha na tradição da imagem ótica e até poderia dizer: “Pinto sem pintar”. A cena está emoldurada por um entardecer romântico (Robert Rosenblum indicou a influência pictórica da tradição do norte da Europa, em especial a do paisagismo do primeiro romantismo, sobre a abstração moderna européia).
Interessa a Fabra – segundo já disse – o desenvolvimento do uniforme em particular, o da indumentária militar, a que cria identidades ao mesmo tempo em que as questiona. Ao neoclássico Jacques Louis David, também: quando começou a era napoleônica e houve a necessidade de organizar o Estado, ele contribuiu realizando desenhos e pinturas de uniformes militares.
“A fotografia não substituiu a pintura, nem o vídeo, a fotografia. Foi sendo gerada uma gramática cada vez mais complexa, um idioma mais rico”, afirma Fabra. Assim, quando dissolve as imagens dos soldados, instalando-as em um escuro crepúsculo, pode induzir a pensar na inadequação da fotografia para documentar um fato. Mas, acentuando essa mesma direção, Fabra monta as cenas que vai fotografar em um estúdio (inscrevendo-se em uma tradição inaugurada por Poussin, que montava previamente os cenários que ia pintar). Suas composições lembram mise-en-scènes teatrais, próprias de uma visão frontal no interior de um cubo.
Tampouco em seus vídeos posteriores incluirá dados da realidade. Desse modo, a reprodução deixa de ser somente documental, testemunhal. Muito pelo contrário, suas fotografias e vídeos têm, sob uma aparência fria, mecânica, neutra, uma contida mas forte carga expressiva. Sua fotografia traduz uma zona de sua memória. De fato, “o eclipse parcial que prevalece […] é o resultado direto da anulação do lugar-comum, da especificidade histórica, por mais ligadas a uma história específica que estejam as imagens. (Essa ligação se faz crescentemente elusiva até que […] se converte em uma alusão geral à infância perdida, à perda em geral)”. É que, se a fotografia costuma ser considerada um meio para a memória, e o vídeo, um meio para o presente, é certo que também se pode introduzir a memória em imagens em movimento.
Além disso, interessa a Fabra o tema da camuflagem militar, ou seja, a mimetização de soldados e armamentos com o seu entorno, de forma a resultarem invisíveis para a vigilância aérea do inimigo. Uma temática com história na história da arte. Dalí assegurava que a camuflagem da Primeira Guerra foi fundamentalmente cubista e picassiana, enquanto a da Segunda seria surrealista e daliniana. É camuflagem, mas, ao mesmo tempo, símbolo do homem primitivo.
As fotografias da série Gilberto’s Place fariam pensar em auto-retratos, mas, ao não sê-lo, permitem ao artista tomar distância da cena. São, digamos já, inquietantes, trágicas cenas de violência e de morte. Gilberto’s Place 1 foi feita, com certeza, dentro de uma garagem. E isso não é mera coincidência. Esse é o lugar onde nascem e morrem os objetos e as armas em poder de particulares. E, de acordo com a hipótese compartilhada por Arthur C. Danto, do arsenal da garagem saiu toda a iconografia da pop art norte-americana. Essa garagem convida o espectador a extrapolar sua imagem das guerras do Vietnã, do Afeganistão, do Iraque. O personagem fotografado apresenta como camuflagem um amontoado vegetal sobre o corpo. No entanto, essa garagem nórdica está perfeitamente arrumada, e os rolos de arame são rolos de arame industrial, e não de arame farpado. Dessa maneira, Fabra acentua a tensão. Gilberto’s Place 2 é uma cenografia que faz alusão a enterros clandestinos em tempos de ditadura, a escavações em busca de desaparecidos, com ciprestes em um dos lados da fotografia – feita, provavelmente nos canteiros do Parque Rodó, no centro de Montevidéu. Isso me traz à memória uma montanha com forma de águia, uma pintura de Magritte, O domínio de Arnheim, baseada em um conto de Edgar Allan Poe.
Em Gilberto’s Place 3, Fabra assimila relatos de tortura na fotografia de um corpo esfolado, que evoca o teatro anatômico de Vesálio (século 16), em que um grupo de alunos estuda a anatomia do cadáver de um homem destripado. A arte de Juan-Pedro Fabra Guemberena é a de um latino implantado em um país nórdico, o país de Ingmar Bergman, convivendo com os demônios, com os fantasmas nórdicos, com o antimediterrâneo.
As imagens que cria expressam os mesmos terrores que se anunciam nas esculturas das catedrais góticas alemãs. Talvez sejam a projeção do mundo infantil angustiado que lhe coube viver (exílio, desterro, separação da mãe). Todos os seus projetos, confessa o artista, “giram em torno de algo muito pessoal”: de uma infância marcada e povoada por contos de terror, por uma espécie de teatro da crueldade, e não precisamente por contos de fadas.
Ángel Kalenberg (Montevidéu, 1936) é pesquisador, curador e crítico de arte. Dirigiu o Museo Nacional de Artes Visuales por 37 anos. Curador de seleções de artistas uruguaios enviadas para as bienais de São Paulo, Veneza e Paris, foi responsável pela seleção latino-americana da 10ª Bienal de Paris e integrou o Comitê Internacional da 17ª Bienal de São Paulo. Foi vice-presidente do Conselho Internacional de Museus de Arte Moderna e integrou a Aica - Associação Internacional de Críticos de Arte. Entre outros livros, em 1991 lançou Arte uruguayo y otros, reunião de ensaios publicados ao longo de vinte anos de trabalho como crítico de arte, e foi colaborador de The Dictionary of Art, publicado em Londres em 1996. Em 2000, foi nomeado sócio-correspondente da Associação Brasileira de Críticos de Arte.
(1) BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. In: LIMA, Luís Costa. Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.