Ensaio Jorge La Ferla, 10/2004
Sobre a obra de Gustavo Galuppo: História(s) do vídeo (em) digital
Gustavo Galuppo é um dos realizadores de vídeo mais originais de uma geração intermediária do audiovisual na Argentina. G.G. mantém uma obra versátil em busca de um estilo próprio, a partir de um processo de pensamento que se situa ente o cinema, o vídeo e o digital, em obras que questionam as medidas expressivas do curta-metragem e do trabalho de longa duração. Este realizador rosarino, estudioso do cinema e do vídeo, além disso tem adentrado também o campo das instalações e das performances, com seu grupo Vera Baxter.
Quero também me referir a esta série “Dossier”, uma saudável raridade e uma referência no panorama do audiovisual internacional, que acompanha a memorável história do Videobrasil. Essas crônicas mantêm, em todos os sentidos, o patrimônio videográfico brasileiro, internacional. A energia e a continuidade do festival, esse material e o ambicioso projeto de construir uma base de dados on-line seguem colocando o Videobrasil em um lugar de referência fundamental do vídeo mundial. Essa vitalidade exemplar nesses tempos de crise tem seu correlato na obra e na atitude de Gustavo Galuppo, que vem produzindo, sem interrupções, uma obra audiovisual sólida e comprometida.
Consideremos alguns aspectos dos últimos trabalhos de Galuppo que podem servir como pistas para a análise de sua obra. Encontramos vídeos de curta e de longa duração, que estabelecem um diálogo entre si, com diversas estéticas contemporâneas. Essas duas vertentes se conformam entre os vídeos que estão com menos de dez minutos e os que se aproximam dos 60 minutos, os quais marcam um espaço diferente na produção recente de sua obra experimental.
É bem curiosa a idéia de aplicar no vídeo a idéia e o conceito de curta-metragem cinematográfico. Isto não é somente uma questão de duração, mas também uma contaminação semiótica em diversas marcas com as tecnologias eletrônicas e digitais, que reafirmam certas relações híbridas entre o cinema, o vídeo e a multimídia. A manipulação criativa dessas transferências, entre suportes e linguagens, tem produzido um giro notável na obra de Gustavo Galuppo e nas suas últimas obras: El ticket que explotó, 5´, 2002; La disección de una mujer ahogada, 60´, 2002; Días enteros bajo las piedras, 65´, 2004; La progresión de las catástrofes, 8´50, 2004, que já formam um corpus muito interessante de trabalho.
Em ambos os trabalhos “longos” funcionam disparadores narrativos que tentam montar um relato experimental complexo, que talvez poderíamos associar à elegíaca e antológica tentativa cinematográfica de Enredando as pessoas (1995), primeiro longa-metragem de Eder Santos. No primeiro longa, Disección de una mujer ahogada, é Timoka a localização indeterminada que funciona como um panóptico audiovisual, com um regime severo de controle e isolamento, que se converte em um espaço de crônicas de isolamento e desamor. As anotações da protagonista são parte de um enunciado maior, no qual a memória visual não linear vai construindo uma história de perdas e lembranças. Em Días enteros bajo las piedras se constrói um espaço eletrônico com texturas cromáticas e misturas de espaços híbridos, nos quais Clara Vogler e Nataniel vagam como prisioneiros à espera de uma morte inevitável. Esses espaços eletrônicos digitais são espaços fictícios, nos quais os personagens têm um presença tátil que funciona como fragmentos de um relato complexo armado com manipulações e interferências de referências intertextuais, manipulando imagens de películas e arquivos de registros pessoais.
Disección de una mujer ahogada é um trabalho que delineia a trama mais complexa, pois propõe, e ao mesmo tempo rompe, com toda a lógica da ficção clássica, reciclando certas temáticas míticas que são as que arrasam com a personagem feminina, em sua relação de amor, morte e incomunicação. Essa busca amorosa e narrativa expõe um discurso romântico aparentemente esperançoso, mas que resulta definitivamente em uma utopia, inclusive mesmo para o realizador. Os materiais usados vêm de registros familiares, fragmentos de filmes mudos reciclados; todas imagens de origens variadas, que são combinadas em relação a uma apresentação em cena, que encontra no processo de pós-produção o lugar fundamental em que se monta a estrutura profunda que dá forma a um relato variável e circular, que nunca se finaliza. A protagonista relê, a partir do digital, as citações com as expressões de Renée Falconetti em Joana d'Arc, como parte da simulação das trajetórias de dois protagonistas condenados que perderam tudo, exceto a expressão de seus rostos. Disección de una mujer ahogada e La progresión de las catástrofes se apresentam como inspirações livres de textos de Jean-Luc Godard e Marguerite Duras, propondo intertextos complexos entre o cinema e o vídeo, nos quais, através da manipulação digital, a mitologia cinematográfica é fagocitada e reciclada pela virtuosidade de uma pós-produção artesanal, com o digital em algo que poderia ser intitulado História(s) do cinema em vídeo digital.
O complexo e interessante tópico da digitalziação do vídeo, nos usos feitos por Galuppo, marcam uma obra estruturada por essa hibridez de suportes tecnológicos e o cruzamento de linguagens em um manuseio original que lê códigos semióticos do cinema e do vídeo, colocando em relevo construções expressivas que remetem à história desses aparatos audiovisuais e a suas mitologias revisitadas em manipulações digitais.
É assim que Gustavo Galuppo, um dos realizadores argentinos mais comprometidos com uma busca incessante, manipula nesses seus trabalhos recentes dos últimos dois anos notáveis linhas expressivas que dialogam entre si,desde um parâmetro, como é a duração linear de suas obras.
De um lado estão “as poéticas breves, de traço conceitual e com um ar auto-reflexivo”, diz Galuppo, “por outro lado estão as obras longas, nas quais a narração se esforça para abrir caminho em estruturas que ainda tentam fazê-la desaparecer. Não sei de onde vêm ambas (e não quero saber, será melhor explorar e encontrar no caminho), mas neste momento penso em desenvolver paralelamente ambas as direções. Talvez seja assim, duas formas independentes. Ou talvez em algum ponto se encontrem (e se encontram já, seguramente, em algum ponto) e gerem outra forma. Veremos” (G.G.).
“Se se trata disso, de aprofundar uma ou ambas as linhas, você as define muito bem. De todas as maneiras você entra em algo longo, doloroso e difícil. É a partir dessa constância, e busca permanente, que você se converte em autor. O que está fazendo vai bem, a questão é aprofundar ainda mais. Creio que o narrativo em seus trabalhos longos está tomando uma importância inédita para o gênero, e que este trabalho de releitura conceitual do cinema, da memória e das lembranças estão bem encaminhados. Ainda falta a você derramar mais sangue. Algo que na Argentina é difícil pela falta de apoio e pelo entorno difícil. Da utilidade não tenha dúvida, você já se deu.
Um abraço.
JLF”
Entrevista Eduardo de Jesus, 10/2004
Como começou seu interesse pelas imagens em movimento? Quando você começou a trabalhar e a pensar com as imagens?
Minhas primeiras impressões ligadas às imagens em movimento surgiram, seguramente, do cinema. Mais especificamente do cinema exibido pela TV, e principalmente do cinema de terror. A produtora inglesa Hammer e os filmes de R. Corman freqüentavam, no fim dos anos 1970, as sessões das sextas à noite, chamadas Viaje a lo inesperado (Viagem ao inesperado). Figuras como Vincent Price, Christopher Lee e Peter Cushing, movendo-se com total elegância nos sugestivos ambientes em que ficava aparente o artifício, me fizeram imergir irremediavelmente neste estranho prazer de apreciar o feio. Os filmes de terror, principalmente os de Hollywood nos anos 1930, e também as produções dos anos 1960, são um verdadeiro germe de fontes criativas: o amor pelo monstruoso, pelo diferente, pelo destrutivo, pelo que chega para abalar as bases de um estrutura deteriorada. Depois veio o período da cinefilia, arranjar e ver (tudo), estudar o que estava ao alcance (em vídeo), desde o cinema primitivo até a atualidade. Durante esse período descobri A bout de souffle (Acossado) de Godard, e, mesmo sem compreender tudo, assumi a idéia da possibilidade da destruição (não podia ainda assimilar o conceito de “desconstrução”), e talvez tenha ressurgido em mim aquele gosto infantil pelo monstruoso, pelo repulsivo, pelo que se opunha à institucionalização das imagens. Esse foi o ponto de partida para uma fuga desesperada, uma busca difícil e às vezes infrutífera de tudo que se produzia nas margens: vanguardas, underground, experimental, videoarte. Aquela “viaje a lo inesperado” da minha infância se convertia em um sinal de uma busca pessoal. Comecei a trabalhar especificamente sobre as imagens talvez um pouco tarde, mas já com uma pesada carga de material assistido e de estudos teóricos por trás. Poderia dizer hoje que, desde aquelas primeiras impressões, meu pensamento foi se configurando em estruturas audiovisuais difíceis de evitar. Uma espécie de “ocasionalismo romântico”, em que todo acontecimento exterior era transformado em projeção de uma expressão interna. Os avatares da minha vida me levaram a realizar meus primeiros exercícios em minha breve passagem pela escola de cinema de Rosario, mas minha verdadeira primeira produção começou depois: ao abandoná-la, ao comprovar a possibilidade do trabalho do criador solitário, do homem com sua câmera (dispensável também) e seu equipamento de edição.
As relações entre cinema e vídeo aparecem em muitos de seus trabalhos. Em vários deles existem também referências diretas a Jean-Luc Godard, realizador central no campo do audiovisual que transita e explora em suas obras as tensas relações entre cinema e vídeo. Como você vê essa relação em seus trabalhos?
Cinema e vídeo são para mim parte de uma mesma linhagem, uma mesma estirpe audiovisual. Ambos se expressam (citando Gene Youngblood) através de “cadeias de imagens e sons no tempo”, para além do suporte. O que o vídeo me permite, com seus particulares modos de criação, é essa liberdade de criador solitário, as possibilidades de apropriação, da transfiguração, da manipulação. A possibilidade de reconfigurar as imagens estereotipadas para tirar delas todas as potências afetivas e a beleza da qual o desgaste as tem irrevogavelmente privado. Colocar tudo na trama das opiniões, abandonar as imagens institucionalizadas e vampirizá-las, levando-as ao terreno de uma expressão pessoal para, talvez, enchê-las com algo da vitalidade perdida.
Em seus trabalhos existe um uso intenso de textos sobrepostos às imagens. Algumas vezes em relação direta com a literatura, como no caso do vídeo El ticket que explotó (2002), vídeo baseado no livro de William Burroughs. Algumas vezes o texto quase interrompe a imagem, ou apenas sugere, como no vídeo La progresión de las catástrofes (2004), em que a palavra “corte” surge sobre as imagens do casal. Como você estabelece a relação entre texto e imagem em seus trabalhos? Existe uma hierarquia, um ponto de onde tudo começa? Como se dá o processo de criação?
Tudo começa com uma imagem. Talvez uma única imagem inevitável que engloba as potências afetivas do que quero expressar. Depois essa imagem insuficiente encontra relação com textos literários que lhe dão uma organicidade imprescindível (em geral Marguerite Duras, mas também têm passado pelos meus vídeos Franz Kafka, Robert Walser, William Burroughs e Clarice Lispector). E aí então a estrutura vai tomando forma. Interessa-me a função poética das palavras (impessoais, em anúncios, privadas de uma voz que as anime), e também a poética das imagens desnaturalizadas e da relação som-imagem. E finalmente a mágica conjunção de todas. Uma poética feita de fragmentos, de apropriações às vezes perigosas, que chegam a traduzir as sensações de uma dor indeterminada, transferida segundo as visões pessoais de cada espectador. Também me interessam o ruído, a interferência, o choque e a dificuldade que se produz na colisão desses elementos heterogêneos.
O trio Vera Baxter, do qual você faz parte, realiza as trilhas sonoras de seus vídeos. O grupo também realiza performances ao vivo com som e projeções de imagens. Como tem sido a relação entre seus trabalhos e os de Vera Baxter? Existe uma troca de referências entre vocês?
Vera Baxter é um grupo independente, tem uma filiação lógica com meus trabalhos. Sua música é a expressão sonora dos meus vídeos, algumas vezes como sustentação, uma espécie de esqueleto. Igualmente, minha concepção das imagens alimenta o conceito cênico das apresentações audiovisuais do grupo. É um intercâmbio permanente, ou, mais que isso, são como partes independentes de uma mesma proposta global. Além disso, Vera Baxter tem tomado agora um caminho independente na criação de vídeos. Estamos produzindo uma série de vídeos curtos, do tipo “diários pessoais” ou “cenas curtas”, concebidos e realizados pelo grupo. Isso se distancia muito da minha obra.
O Vera Baxter lançou seu primeiro CD em 2003. Como tem sido a trajetória do CD?
O CD La disección de una mujer ahogada foi editado por um selo independente de Rosario. Nesta cidade teve uma repercussão que podemos considerar aceitável. De qualquer modo, já que na Argentina toda produção artística se legitima na capital, em Buenos Aires, onde deve ser aprovada pelos “donos do conhecimento e da razão”, poderíamos dizer também que em certo sentido tem ficado relegado a um modesto anonimato, um pequeno fracasso que tem impedido a divulgação mais acertada de nossa música.
Além de realizador de vídeo, você também atua como crítico e curador no projeto Syndrome para a difusão do vídeo experimental. Como você vê a cena da arte eletrônica hoje na Argentina, particularmente em Rosario?
Em relação à produção audiovisual, Rosario pode ser considerada uma cidade conservadora. As ficções tradicionais e os documentários de reportagem típicos da televisão guardam quase a totalidade da produção local. Não existe tradição nem espaços de reflexão e de difusão para esse tipo de manifestações artísticas. A situação é difícil, para além do suporte utilizado; o risco criativo e a reflexão não afloram em toda a obra produzida na cidade. O risco e a reflexão necessários, indispensáveis para não continuar alimentando uma produção de imagens esmagadas pela trivialidade, a repetição e a falta de pensamento crítico.
Biografia comentada Eduardo de Jesus, 10/2004
A produção de vídeos de Gustavo Galuppo (1971, Rosario, Argentina) começou em 1998, com a produção de El diablo vino a Tucson, que participou do 12º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, também em 1998. Neste seu primeiro trabalho já se desenhava em linhas tênues o estilo de vídeo que marcaria a produção de Galuppo. Imagens em preto-e-branco, recortadas, insistentemente editadas e desfiguradas pelas manipulações de toda ordem são usadas pelo artista na pós-produção. O vídeo foi premiado como melhor vídeo experimental no Festival de Vídeo Alternativo La Tribu, em Buenos Aires.
No ano seguinte Galuppo investiu na produção de documentários como Los perros de la lluvia e Juan, que foram premiados como melhor vídeo documentário em Córdoba, pelo Córdoba Audiovisual, e melhor vídeo local pelo Festival Latinoamericano de Vídeo de Rosario, na Argentina, respectivamente. Apesar de a obra de Galuppo guardar, em certa medida, traços documentais, esses são os dois únicos trabalhos do artista voltados especificamente para esse gênero.
Ainda no mesmo ano o artista realizou Mala noche e Teoría de los líquidos. O segundo trabalho abre espaço para esse tipo de vídeo que se estrutura em torno de uma teoria ou de um certo campo do conhecimento. Na verdade, uma interessante estratégia do realizador para produzir trabalhos voltados para uma abordagem mais reflexiva da imagem em movimento, quase uma espécie de ensaio, que de forma bastante aberta e polissêmica mostra os aspectos dessas teorias. Com Teoría de los líquidos Galuppo recebe menção especial no Festival Latinoamericano de Vídeo de Rosario, e de melhor vídeo experimental no Certamen de Cine y Vídeo de Santa Fé, ambos na Argentina.
Em 2000, mais uma vez usando essa metáfora das teorias, produziu Teoría de la deriva, um emblemático trabalho construído com belíssimas imagens fluidas e quase disformes que vão nos mostrando qual a idéia de deriva o autor busca explicar. Longe de definir de forma fechada os conceitos que formam essa teoria, o que vemos no vídeo é uma profusão de sentidos marcados pela narrativa fragmentada e fluida. Este vídeo foi premiado com o Silver Award no JVC-Tokyo Video Festival, no Japão, e como melhor vídeo experimental no IX Certamen de Cine y Vídeo de Santa Fé, na Argentina. O vídeo também foi exibido na cerimônia de abertura do Museu Tsushimamaru (Tóquio, Japão), em lembrança à tragédia ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial.
No ano seguinte, ao realizar a primeira parte do vídeo La disección de una mujer ahogada, Galuppo conheceu Carolina Piva e Fernando Romero, com os quais formou o grupo Vera Baxter. Desde então desenvolve as trilhas sonoras dos vídeos e posteriormente realizou apresentações que, além da música, contam com projeções de vídeos. Este vídeo marca também o começo das produções de longa duração. Neste mesmo ano Galuppo realiza La persistencia de la oscuridad (teoría de los elementos ígneos), mais um trabalho com caráter ensaístico, premiado como melhor vídeo experimental no Certamen de Cine y Vídeo de Santa Fé. Este trabalho foi amplamente exibido em festivais e mostras internacionais.
Baseado em textos de William Burroughs, Galuppo realizou em 2002 El ticket que explotó, uma espécie de ficção científica que dialoga com alguns dos acontecimentos políticos da Argentina daquele momento e que abre para uma reflexão mais profunda sobre o totalitarismo. O vídeo foi exibido em mostras e festivais como o Videospace, mostra de vídeo sobre a guerra econômica, em Los Angeles, e o 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica, em São Paulo, e foi premiado com o Video Communication Award no JVC-Tokyo Video Festival (Japão), melhor vídeo experimental no Festival Latinoamericano de Vídeo de Rosario (Argentina), e melhor vídeo experimental no Certamen de Cine y Vídeo de Santa Fé (Argentina).
Em 2003 foi lançado pelo selo independente Astas Romas (http://www.astasromas.com/astasromas.com/discos/verabaxter.htm incluir esse link em astas romas) o primeiro CD da banda Vera Baxter, com a trilha sonora do vídeo La disección de una mujer ahogada.
Em 2004 Gustavo realizou seu segundo trabalho de longa duração, Días enteros bajo las piedras, e também La progresión de las catástrofes, uma meticulosa colagem de fragmentos de filmes e de registros familiares domésticos que tratam da impossibilidade de representar o amor.