Entrevista Eduardo de Jesus, 10/2004
Como começou seu interesse pelas imagens em movimento? Quando você começou a trabalhar e a pensar com as imagens?
Minhas primeiras impressões ligadas às imagens em movimento surgiram, seguramente, do cinema. Mais especificamente do cinema exibido pela TV, e principalmente do cinema de terror. A produtora inglesa Hammer e os filmes de R. Corman freqüentavam, no fim dos anos 1970, as sessões das sextas à noite, chamadas Viaje a lo inesperado (Viagem ao inesperado). Figuras como Vincent Price, Christopher Lee e Peter Cushing, movendo-se com total elegância nos sugestivos ambientes em que ficava aparente o artifício, me fizeram imergir irremediavelmente neste estranho prazer de apreciar o feio. Os filmes de terror, principalmente os de Hollywood nos anos 1930, e também as produções dos anos 1960, são um verdadeiro germe de fontes criativas: o amor pelo monstruoso, pelo diferente, pelo destrutivo, pelo que chega para abalar as bases de um estrutura deteriorada. Depois veio o período da cinefilia, arranjar e ver (tudo), estudar o que estava ao alcance (em vídeo), desde o cinema primitivo até a atualidade. Durante esse período descobri A bout de souffle (Acossado) de Godard, e, mesmo sem compreender tudo, assumi a idéia da possibilidade da destruição (não podia ainda assimilar o conceito de “desconstrução”), e talvez tenha ressurgido em mim aquele gosto infantil pelo monstruoso, pelo repulsivo, pelo que se opunha à institucionalização das imagens. Esse foi o ponto de partida para uma fuga desesperada, uma busca difícil e às vezes infrutífera de tudo que se produzia nas margens: vanguardas, underground, experimental, videoarte. Aquela “viaje a lo inesperado” da minha infância se convertia em um sinal de uma busca pessoal. Comecei a trabalhar especificamente sobre as imagens talvez um pouco tarde, mas já com uma pesada carga de material assistido e de estudos teóricos por trás. Poderia dizer hoje que, desde aquelas primeiras impressões, meu pensamento foi se configurando em estruturas audiovisuais difíceis de evitar. Uma espécie de “ocasionalismo romântico”, em que todo acontecimento exterior era transformado em projeção de uma expressão interna. Os avatares da minha vida me levaram a realizar meus primeiros exercícios em minha breve passagem pela escola de cinema de Rosario, mas minha verdadeira primeira produção começou depois: ao abandoná-la, ao comprovar a possibilidade do trabalho do criador solitário, do homem com sua câmera (dispensável também) e seu equipamento de edição.
As relações entre cinema e vídeo aparecem em muitos de seus trabalhos. Em vários deles existem também referências diretas a Jean-Luc Godard, realizador central no campo do audiovisual que transita e explora em suas obras as tensas relações entre cinema e vídeo. Como você vê essa relação em seus trabalhos?
Cinema e vídeo são para mim parte de uma mesma linhagem, uma mesma estirpe audiovisual. Ambos se expressam (citando Gene Youngblood) através de “cadeias de imagens e sons no tempo”, para além do suporte. O que o vídeo me permite, com seus particulares modos de criação, é essa liberdade de criador solitário, as possibilidades de apropriação, da transfiguração, da manipulação. A possibilidade de reconfigurar as imagens estereotipadas para tirar delas todas as potências afetivas e a beleza da qual o desgaste as tem irrevogavelmente privado. Colocar tudo na trama das opiniões, abandonar as imagens institucionalizadas e vampirizá-las, levando-as ao terreno de uma expressão pessoal para, talvez, enchê-las com algo da vitalidade perdida.
Em seus trabalhos existe um uso intenso de textos sobrepostos às imagens. Algumas vezes em relação direta com a literatura, como no caso do vídeo El ticket que explotó (2002), vídeo baseado no livro de William Burroughs. Algumas vezes o texto quase interrompe a imagem, ou apenas sugere, como no vídeo La progresión de las catástrofes (2004), em que a palavra “corte” surge sobre as imagens do casal. Como você estabelece a relação entre texto e imagem em seus trabalhos? Existe uma hierarquia, um ponto de onde tudo começa? Como se dá o processo de criação?
Tudo começa com uma imagem. Talvez uma única imagem inevitável que engloba as potências afetivas do que quero expressar. Depois essa imagem insuficiente encontra relação com textos literários que lhe dão uma organicidade imprescindível (em geral Marguerite Duras, mas também têm passado pelos meus vídeos Franz Kafka, Robert Walser, William Burroughs e Clarice Lispector). E aí então a estrutura vai tomando forma. Interessa-me a função poética das palavras (impessoais, em anúncios, privadas de uma voz que as anime), e também a poética das imagens desnaturalizadas e da relação som-imagem. E finalmente a mágica conjunção de todas. Uma poética feita de fragmentos, de apropriações às vezes perigosas, que chegam a traduzir as sensações de uma dor indeterminada, transferida segundo as visões pessoais de cada espectador. Também me interessam o ruído, a interferência, o choque e a dificuldade que se produz na colisão desses elementos heterogêneos.
O trio Vera Baxter, do qual você faz parte, realiza as trilhas sonoras de seus vídeos. O grupo também realiza performances ao vivo com som e projeções de imagens. Como tem sido a relação entre seus trabalhos e os de Vera Baxter? Existe uma troca de referências entre vocês?
Vera Baxter é um grupo independente, tem uma filiação lógica com meus trabalhos. Sua música é a expressão sonora dos meus vídeos, algumas vezes como sustentação, uma espécie de esqueleto. Igualmente, minha concepção das imagens alimenta o conceito cênico das apresentações audiovisuais do grupo. É um intercâmbio permanente, ou, mais que isso, são como partes independentes de uma mesma proposta global. Além disso, Vera Baxter tem tomado agora um caminho independente na criação de vídeos. Estamos produzindo uma série de vídeos curtos, do tipo “diários pessoais” ou “cenas curtas”, concebidos e realizados pelo grupo. Isso se distancia muito da minha obra.
O Vera Baxter lançou seu primeiro CD em 2003. Como tem sido a trajetória do CD?
O CD La disección de una mujer ahogada foi editado por um selo independente de Rosario. Nesta cidade teve uma repercussão que podemos considerar aceitável. De qualquer modo, já que na Argentina toda produção artística se legitima na capital, em Buenos Aires, onde deve ser aprovada pelos “donos do conhecimento e da razão”, poderíamos dizer também que em certo sentido tem ficado relegado a um modesto anonimato, um pequeno fracasso que tem impedido a divulgação mais acertada de nossa música.
Além de realizador de vídeo, você também atua como crítico e curador no projeto Syndrome para a difusão do vídeo experimental. Como você vê a cena da arte eletrônica hoje na Argentina, particularmente em Rosario?
Em relação à produção audiovisual, Rosario pode ser considerada uma cidade conservadora. As ficções tradicionais e os documentários de reportagem típicos da televisão guardam quase a totalidade da produção local. Não existe tradição nem espaços de reflexão e de difusão para esse tipo de manifestações artísticas. A situação é difícil, para além do suporte utilizado; o risco criativo e a reflexão não afloram em toda a obra produzida na cidade. O risco e a reflexão necessários, indispensáveis para não continuar alimentando uma produção de imagens esmagadas pela trivialidade, a repetição e a falta de pensamento crítico.