Biografia comentada Teté Martinho, 03/2006
A determinação de levar o meio eletrônico ao limite da possibilidade técnica - para materializar idéias visuais instigantes e sensibilizar olhares apáticos - marca a obra do argentino Federico Lamas (Buenos Aires, 1979). Remetidos ao cinema, ao teatro, às artes gráficas e ao universo pop/eletrônico, seus trabalhos nascem de arranjos peculiares de elementos cênicos e narrativos, desenhados para inverter expectativas e produzir a sensação do achado. Intenção declarada, a busca do novo se estende da estrutura narrativa ao aspecto plástico, da direção de atores à trilha sonora, do conceito à realidade. Alterar a conformação e os limites do quadro - tela, cenário - é prática recorrente, assim como abrir mão das palavras em benefício da eloqüência do silêncio e da imagem.
Artista gráfico, desenhista, músico, Lamas representa a geração que encontrou nos meios digitais o veículo para um processo criativo que não dissocia música e imagem, desenho e texto, idéia e linguagem. Ou, em suas palavras, um suporte “que permite controlar, de maneira independente, a realização integral”. A necessidade de dominar ferramentas e recursos técnicos - não por virtuosismo, mas para desvencilhar-se das “mil maneiras corretas de fazer as coisas” e encontrar uma forma particular de produzir o resultado antevisto - revelou-se com a primeira câmera, uma Hi8, em 1994. Os controles manuais o obrigaram a tomar decisões formadoras nos primeiros planos, inspirados no “neo-realismo de amigos e familiares”.
À referência primordial do cinema, somam-se as teorias da encenação dramática, que estuda na Escola de Teatro de Buenos Aires, dirigida por Raúl Serrano, entre 1995 e 2000. O curso marca o encontro com os músicos e designers Pablo De Caro, Pablo Malourie, Nazareno Gil e Maximiliano García, da banda Mataplantas, então Barbara Feldon, e inaugura uma parceria que se desdobraria em uma coordenação de imagem continuada, além de capas de discos, website, pôsteres e projeções em shows para o grupo. Três anos depois do primeiro encontro, e já cursando Design Audiovisual na Universidade de Buenos Aires, dirige o primeiro clipe da banda, Navidad y Año Nuevo, iniciando-se no gênero que demandaria repetidamente, nos anos seguintes, seus talentos de realizador, designer e diretor de arte.
A obra busca um registro de “falso ao vivo”, como que “fotográfico”, despretensioso para o autor de um curta de estréia baseado em Bioy Casares, Camitas (1999). Experiência que inaugura a pesquisa com os limites físicos do quadro, o filme é ambientado nos arrabaldes de Buenos Aires e persegue um “neo-realismo retrô”. Na pretensão e na despretensão, Lamas manobra os elementos de que dispõe para criar estética com destreza incomum - desde os primeiros trabalhos.
O curta Bienvenida a mi Mundo (2001) é um passo além, na mesma estrada. A estrutura narrativa, que se serve de um corte e de uma inversão para contar a história completa de um triângulo amoroso, é ao mesmo tempo engenhosa (porque cria impacto) e irônica (ao reivindicar para si uma atenção igual ou maior do que a história, banal, merece). Os diálogos em língua inventada, o quadro ovalado e a cor alterada da película forjam um lugar-gênero deliciosamente desconhecido, sem referências (apesar do tributo ao cinema de David Lynch). Lamas põe no filme, além da capacidade de realizar, o humor sutil e o talento do encenador e do artista plástico.
A fórmula chega ao estado da arte em Roger (2005), que deu ao autor o Prêmio Investigações Contemporâneas no 15º Videobrasil. A obra é movida pela urgência de materializar um insight visual: o cenário infinito. O achado encontra uma solução técnica particular (o looping) e determina o argumento: um casal que briga e se separa diante de um cenário. Enquanto a ação transcorre, a um tempo ligeira (como nas HQs e desenhos animados) e dolorosa, a câmera se abre para expor os limites da ficção - e do cenário - e esparadrapos mantêm colados os fundos que correm, como o tempo, numa alusão a ferimento e precariedade. Amálgama delicado de uma gama vasta de linguagens, híbrido de cinema mudo e artes plásticas, Roger dá à temática exaurida do amor romântico um frescor que desafia a lógica.
Objeto de mostras e prêmios na Europa, a obra inaugura um período de produção febril para Lamas. No curtíssimo Mucho (2005), uma espécie de piada, exercita uma narrativa veloz e hábil, que prescinde de palavras, explora a eloqüência de silêncios e conduz o espectador a um final desconcertante. Em Hawaii, clipe para a Mataplantas, desenvolve imagens em 3-D simuladas, que usa para criar uma atmosfera de sonho e nostalgia. No mesmo período, faz Dame Pasión, para a banda Juana La Loca, e Miss Sentimiento de Otoño, para o cantor Sebastián Volco, clipes para artistas cuja música o interessa e que o deixam “livre para fazer o que quiser”.
No mesmo ano, cria módulos visuais que projeta ao vivo nos shows da banda Mataplantas, como faz desde 2004 nas raves Hey!, dos DJs Pablo Font, Nicolas Zunino, Pablo De Caro e Diego Chamorro. No contexto da festa, surge Hey! (Despierto/dormido), plano-seqüência que acompanha por 90 minutos o trajeto de um homem jovem pelas ruas da capital argentina - enquanto legendas traduzem o fluxo ininterrupto de seu pensamento, com fidelidade, poesia e referências à língua entrecortada dos chats e instant messengers. Rodada com câmera na mão, a obra flerta com a possibilidade de narrativa direta oferecida pelo cinema e com um formato que atrai o artista mais e mais: o longa-metragem. Os projtos, assim como as projeções, os vídeos e os clipes, disputam seu tempo e energia com a publicidade, campo em que trabalha como diretor de arte.