Ensaio Gabriela Kremer Motta, 2011

Letícia Ramos – A consistência do abismo

Desde o início de sua trajetória, em 2004, a artista Letícia Ramos transita entre a criação de aparatos fotográficos e a apresentação de imagens em movimento não exatamente reconhecíveis. Seus primeiros trabalhos – os vídeos Estufa (2004) e Projeto vermelho (2006) –, realizados em parceria com Luiz Roque, articulam paisagens e elementos não propriamente naturais, que assaltam o plano visual. Entre plantas de uma estufa ou brumas de uma serra, surgem fumaças coloridas que se amalgamam com a paisagem, ao mesmo tempo em que reafirmam o seu caráter compositivo, não dado, algo construído pela perspectiva, pelo enquadramento, pelas escolhas do sujeito atrás da câmera. Porém, se nesses filmes iniciais sua preocupação reside principalmente na imagem, qualidades e potencialidades narrativas desse constructo, a partir do projeto ERBF* (2007) entra em jogo a criação de máquinas específicas para a captação determinadas imagens.
E o ERBF foi só o começo. Desde então, outros aparatos foram construídos para captar outras cenas, como aquele desenvolvido para a videoinstalação Cronópios** (2009), filme realizado com um conjunto de três câmeras Lomo Oktographic de oito lentes. Esse tipo de câmera possibilita retratar uma cena durante 2,5 segundos, a partir de pontos de vista distintos. Não por acaso, foi o sistema escolhido para registrar um dia na região do largo de Pinheiros, em São Paulo, do amanhecer ao anoitecer.

Atualmente Letícia está envolvida no projeto Bitacora, que consiste em desenvolver uma câmera polar capaz de registrar nuances cromáticas da paisagem, baseada na influência dos ventos. Este projeto culminará com a participação da artista no programa de residência artística The Arctic Circle, expedição multidisciplinar que, em 2011, viajará pelo Polo Ártico a bordo de um veleiro. Desses aparatos, resultam imagens com outras temporalidades, texturas e angulações, que redefinem conceitos como captação, registro e visualidade.

É nessa trajetória bipolar, entre paisagens estranhas e máquinas esdrúxulas, que se reafirma a encruzilhada analítica da qual o observador não pode se esquivar.

Ou seja, se o problema visual que a artista nos apresenta é a paisagem, algo já bastante complexo para ser enfrentado, há ainda a questão que diz respeito ao equipamento audiovisual que capta as imagens dessa paisagem. Essas máquinas, construídas especialmente para registrar determinada paisagem, condensam o esforço científico e imaginativo de antever aquilo que se quer captar e elaborar a tecnologia capaz de fazê-lo. Ou seja, no princípio nada existe, nem a câmera, nem a imagem. Entre a assepsia daquilo que é visual, distanciado, quase abstrato, da imagem/paisagem registrada pela câmera, e o aparato fílmico cheio de materialidade física, há um abismo conceitual que a artista insiste em enfrentar com pregos e poesia, madeira e música, furadeira e fasma.

Por exemplo, ouso dizer que em seu projeto Bitacora, em desenvolvimento, a proposta de criar uma máquina “capaz de registrar nuances cromáticas da paisagem, baseada na influência dos ventos” não tem muita importância enquanto informação sobre a obra. Interessa, sim, saber que a artista está estudando e reinventando a estrutura mecânica das câmeras polaroides, absorvendo o que essa tecnologia representava quando surgiu – a possibilidade do registro instantâneo, imediato –, e relacionando esse tipo de registro com as anotações e tecnologias empregadas pelos viajantes que se lançaram precariamente aos Polos Norte e Sul no fim do século 19. Ou seja, não há possibilidade de essa máquina não atingir o seu propósito, posto que este é menos importante que a máquina em si. E a imagem que resultar desse aparato será a única imagem possível de resultar.

Nas proposições de Letícia não é possível olhar para o objeto sem ver a imagem que ele é capaz de gerar, ou vice-versa. A obra se dá nessa relação fantástica entre materialidade e visualidade, sem que se possa indicar o que vem primeiro: se é a curiosidade quase infantil e visionária de desmontar e remontar equipamentos, ou o inconformismo com aquilo que se convencionou definir como paisagem. De fato, é a ausência de uma escala de valores entre tais polos e um rigor extremo na construção de ambos que instaura um sentido radicalmente poético em suas obras, que estão entre aquelas “finalidades sem fim” das quais nos fala Antonio Cícero em seu livro homônimo, em que aborda o “sentido” da criação artística.

Há algo em artistas como Letícia que tangencia uma espécie de condenação biológica, como a que define a trajetória de alguns seres ou exploradores: não há alternativa a não ser seguir em busca de novas viagens.


Gabriela Kremer Motta é curadora, crítica e pesquisadora em artes visuais. Doutoranda em história, crítica e teoria da arte pela ECA-USP, integra,como curadora, a equipe do programa Rumos Itaú Artes Visuais 2011/2012. É gerente artística da Galeria Ecarta e professora do curso de gestão cultural da Unisinos – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Realizou, entre outras, as exposições Convivência Espacial (em Recife e Porto Alegre, 2010) e Campo Coletivo (São Paulo, 2008).


*Estação radiobase fotográfica (ERBF) é um projeto de investigação e criação de um equipamento audiovisual desenvolvido a partir do cruzamento de dois campos de interesse da artista: a paisagem e as tecnologias de registro do movimento. Essa máquina é uma câmera pinhole cinematográfica, capaz de captar simultaneamente diferentes pontos de vista de uma paisagem. O nome do projeto faz referência às reais ERBs, antenas de comunicação que povoam os arranha-céus de São Paulo, e “paisagem” escolhida para ser registrada com essa máquina.

**Ver Dossier Videobrasil.