Entrevista Marcio Harum, 2011
A respeito da sua formação como arquiteta, como se deu o início da sua produção artística, da construção do equipamento óptico?
Fiz faculdade de Arquitetura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Considero que toda a minha formação artística veio dessa fonte. Ali aprendi a ver o mundo em três dimensões, a ter um processo de trabalho criativo e principalmente a desenvolver técnicas de desenho, projeto e detalhamento. Foi também na faculdade que iniciei minhas primeiras experiências fotográficas: trabalhei no laboratório de fotografia, fui monitora de geometria descritiva, tinha especial dedicação às matérias de urbanismo e maquete. Entretanto, o que sempre me interessou foi o procedimento do projeto em si, e não o seu fim. Nunca consegui finalizar um projeto de edifício comercial sequer. Surgiram assim muitas maquetes conceituais, muitos desenhos esquemáticos, muitas novas propostas e questionamentos sobre o espaço e suas relações. Em 1998, ainda na faculdade de arquitetura, realizei o meu primeiro curta-metragem, em super-8, chamado Há alguém no vento. Esse filme, de cópia única, em película, montado com tesoura e durex na sala de minha casa, foi o estopim para perceber que o meu trabalho arquitetônico não era comercial e que o meu envolvimento com a arquitetura estava na forma estrutural do meu pensamento, na utilização e conhecimento da tríade: ESPAÇO - TEMPO - PERCURSO.
Em 2002 me mudei para São Paulo para trabalhar na produção de filmes comerciais e cursar a Faculdade de Cinema na Fundação Armando Alvares Penteado. Minha carreira profissional no audiovisual já estava direcionada para montagem e finalização de filmes. Já possuía uma boa formação técnica nessa função e, por isso, durante o curso, foquei todos os meus trabalhos em experimentar artisticamente ao máximo possível, e me utilizar de todas as ferramentas que o ambiente universitário naquela época pudesse me oferecer. Nesse contexto realizei o que considero o meu primeiro projeto artístico individual, chamado ERBF, que se tornou o meu trabalho de conclusão de curso. Foi esse trabalho o que me fez realmente perceber que o limite entre arte, cinema e arquitetura era tênue demais e que, na verdade, minhas pesquisas encontravam-se mais próximas de procedimentos da arte contemporânea do que da arquitetura ou do cinema stricto sensu. A construção de aparatos ópticos foi uma necessidade de produzir algum equipamento que também se relacionasse conceitualmente, em sua prática técnica de formação da imagem, com o tema que queria abordar.
O que de fato te move hoje, depois de alguns trabalhos já exibidos com êxito, a continuar desenvolvendo dispositivos para a realização de algo a partir de fotografia-filme-vídeo?
Ser um explorador/inventor e obter novas paisagens.
Que artefato, no teu trabalho, faz a junção de cinema e arquitetura?
A estruturação do pensamento do projeto tem como resultado um objeto “funcional”, assim como os mecanismos de desconstrução e reconstrução do espaço. Se é para citar um “artefato” prático, diria que é a lapiseira.
Qual é a diferença entre as práticas laborais que envolvem a criação do projeto e sua execução numa oficina? Como é passar do status de montadora-editora para o de artesã-inventora?
O projeto na prancheta parte de um mundo ideal, de uma forma milimetrada, calculada, porém ainda vaga quanto ao uso pragmático. O desenho, em si, é uma prática do pensamento de abstração. Por isso, o vai e vem do projeto ao protótipo é o que materializa o objeto e amplia as possibilidades da pesquisa. A escala real interfere nas minhas escolhas, os materiais disponíveis no mercado, no ateliê, nas lojas de antiguidades, as adaptações e a reciclagem. O projeto não é intocável; interage com estas diferentes esferas e se adapta o tempo todo até chegar a sua forma final. Como é executado por mim, ele é apenas uma maneira de registrar e quantificar o pensamento da máquina. Uma forma de transmitir a outras pessoas a ideia de organizar a execução de determinadas peças na oficina. Mas o projeto somente se realiza em sua construção. Entre o parafuso e a chave de fenda, no erro e no acerto.
Há como se fazer um esforço conceitual e chegar a analogias diversas entre trabalhar numa oficina e trabalhar em frente a um computador como editora de cinema. Até porque, em ambas as atividades, o que precede são os processos criativos, e a grande diferença está no uso das ferramentas, o que exige maior ou menor fator manual.
A montagem de cinema também pode ser artesanato quando, por exemplo, abdica-se do uso de plug-ins e efeitos para consegui-los digitalmente, porém de forma manual. Ou quando utilizamos trucagens e montamos filmes em moviolas, colando cada parte do negativo uma a uma. A montagem dos filmes de Cronópios é um exemplo disso. E, assim como a montagem pode ser também artesanal, a marcenaria também pode ser mecânica, se pensarmos em uma fábrica de móveis. A grande diferença para mim está na absorção dos acasos, no propósito do trabalho que se quer desenvolver. Tenho a impressão de que essa é a minha técnica: misturar ferramentas com tecnologias distintas. É por isso que o meu computador de trabalho está sempre tão sujo e que tenho até um software para calcular cada furo exato da pinhole.
Relembrando o mote da exposição de arquitetura e design Brasilien baut Brasilia (O Brasil constrói Brasília), organizada por Mary Vieira em Zurique e Berlim entre 1957 e 1959: uma cidade do futuro significa também a cidade do presente?
Brasília sempre foi uma questão, principalmente quando se trata de vislumbrar a cidade do futuro. Sabemos da falha moderna da setorização funcional e a sua evolução de pensá-la como um espaço relacional e de aprendizado, como vimos nas teorias de Jane Jacobs. Acho que Brasília como plano de cidade moderna atingiu o seu objetivo, mas o homem moderno não caminhou na direção que se planejou para ele. Contudo, ao mesmo tempo, quando vemos projetos como o da Lina Bo Bardi para o SESC Pompeia funcionando na realidade de sua utopia máxima, devemos nos questionar se alguns desses espaços é que não foram planejados para pessoas utópicas. Recentemente apresentei uma fala em um simpósio de Porto Alegre sobre o tema: “Expandir o presente, contrair o futuro”. As camadas temporais sobre uma cidade, a velocidade com que isso acontece, fazem com que a percepção do agora seja o futuro. A questão poderia ser múltipla: O que temos como uma séria reflexão sobre a cidade de hoje? Para que esperar o amanhã para tomarmos as atitudes que já sabemos que serão realmente necessárias? Se já possuímos dados concretos, para que saber aonde isso tudo vai nos levar? Nos meus trabalhos, a cidade do futuro é baseada em gênero. Em imaginário e ficção. Quem sabe até no próprio estereótipo do futurismo. Sobretudo, o que tento fazer é uma grande confusão temporal. Produzo filmes que parecem ter saído do século 18, porém tratam de temas atuais e de imaginários futuristas de um passado recente. As multicamadas se confundem e formam esta grande ficção, esta máquina do tempo.