Biografia comentada 2011

O aparato óptico construído

Detrás de un muro un jardín efímero
Un mar que no es mar
Un cielo de agua, paredes de hojas
Mirar por una rendija un jardín escondido
(Jardín del Cronópios, 2008)

A cada passo investigativo por entre o conjunto de trabalhos recentes da artista Letícia Ramos, é possível, como resultado de tal exploração de sentido visual, descobrir uma nova cidade de passado remoto.

Desde 2005, sua produção com a imagem em movimento vem tomando uma direção enviesada, se notarmos o rol de soluções que encontra, ante a recorrência dos recursos de pós-produção acessíveis. A partir do conhecimento adquirido por excelência nos campos dos quais é egressa, primeiro a arquitetura e posteriormente o cinema, ao longo de suas proposições de percurso, conduzidas pelo tempo que julga necessário, Letícia Ramos vale-se de precisas noções experimentadas com o irromper no espaço, traço amplamente percebido em sua realização videográfica.


Obeliscos

A obra ERBF – Estação radiobase fotográfica (vídeo, objeto e fotografia, 2005-2009) reúne sob disparo único, de 24 quadros por segundo, diferentes perspectivas do skyline da cidade de São Paulo.

Composta pela série Instantâneos sequenciais #1, #2, #3 e #4, e Panorâmica 01 (35 mm/vídeo, 1 min, projeção em loop, 2005), as frenéticas animações pululam espontaneamente como marcações delineadoras da própria cidade, cercada de antenas de telefonia celular e transmissão. De uma nova classe de contornos, esses monumentos aéreos induzem a uma tentativa de fixar o olhar em meio a uma paisagem de horizonte reconhecidamente metropolitano. Vê-se surgir assim a silhueta de um bosque criado como imagem da ilusão em movimento.

Acompanhando a sequência de furos idênticos, posicionados lado a lado, à mesma distância focal um do outro, eis que temos a câmera especificamente construída, sem a utilização de lentes, pela artista. O que realmente parece importar nas relações entre as obras de Letícia Ramos não é a imagem do objeto que está em movimento, mas sim os modos de ver da câmera, sob determinado ponto de vista do objeto. Tal singularidade arremessa seus trabalhos para além do registro convencional do tempo.

Em outras palavras, talvez signifique deslocar o próprio constructo, de assumir a escolha da pinhole perante um equipamento normativo como a câmera de cinema. Verossimilhança à parte, seria como deter as naturais paisagens gigantes de Marc Ferrez, feitos impensáveis para uma época em que uma missão fotográfica dispensasse arcas de víveres, provisões e equipamentos a ser transportados por tropeiros e carregadores em cima do lombo de mulas.

A partir deste ponto de inflexão técnica, a artista passa a perseguir, numa incessante busca, ainda em curso, o encaixe de marcenaria perfeito, em sessões semanais de testes com novos protótipos de câmeras. Sem deixar de lado também a revelação de negativos, tarefa da qual se ocupa pessoalmente. A constante observação da cidade imprime profundas modificações visuais – o que não circunscreve em hipótese alguma apenas a obtenção de enquadramento ou a localização do melhor ângulo –, como confirmou a mostra de ERBF no Centro Cultural São Paulo em 2009. A expedição de Letícia Ramos visa estabelecer uma outra temporalidade com o objeto que é fotografado – como se ele fosse um alvo no ar do topo de um alto edifício.


Jardins suspensos

De dentro da parede, por uma fresta na fachada pintada de branco, junto à calçada da rua, ouve-se um áudio suave e inquietante de caixa de música. Os transeuntes são atraídos a espiar por esse vão, onde narrativas visuais de sonho são entrevistas em Jardim fantástico (35 mm/ vídeo, 3 min, 2008).

Ao empurrarmos a porta lateral, o jardim de ficção, à maneira estrutural de um ambiente de passagem, abre-se a uma fruição incontida. Atravessando os vidros das janelas em seu caminho de reflexos estaiados, o Jardim efêmero é constituído por duas projeções distintas: um corredor estreito, repleto de folhas que se desvendam de forma espectral sob a luz do facho do projetor no vídeo Hojas faz a vista alcançar quase até o muro do fundo do galpão, onde a projeção do vídeo Mar evoca, em escala espacialmente ampliada, a contemplação marítima.

Tal qual cenários, a partir de registros desdobrados com a câmera Lomo Oktomatic de oito lentes, as projeções multicanais que compõem Jardín del Cronópio (videoinstalação + vídeos em loop, 2008) abrem campo livre para deambulações aos jardins descobertos, como na mostra da ThisIsNotAGallery, em Buenos Aires.


Passeio na praça

A videoinstalação Cronópios (35 mm/vídeo em loop, 2008-2009) reproduz o período de um dia inteiro no Largo da Batata, São Paulo, do amanhecer ao anoitecer. Situado no bairro paulistano de Pinheiros, este estrangulamento de intenso tráfego na malha urbana serve à zona oeste como passagem de acesso entre o centro expandido e a zona periférica. O pesado trânsito confluente congestiona a área, aliado a um lento e ambicioso projeto de reurbanização.

Desenvolvido especialmente para essa finalidade, o sistema de captação de imagens (um conjunto de três câmeras Lomo Oktographic com oito lentes cada) contribuiu para a gênese desta peça. De diversos pontos, observados por 2,5 segundos cada um, inúmeros retratos simultâneos de uma mesma cena são exibidos, com altíssimo efeito de mobilidade nas combinações angulares e de sobreposição.

A múltipla montagem desta videoinstalação se dá pela refração saturada de luz que é produzida com a projeção, através da transparência de ambos os lados, em uma tela única de acrílico. Contudo, o uso deste material provoca mais duas outras projeções fantasmas, em ângulos específicos que, no entanto, reagem com luminosidade oscilante.

Entre 2008 e 2009, o público de quatro capitais (São Paulo, Curitiba, Salvador e Rio de Janeiro) do programa nacional Rumos Artes Visuais, do Instituto Itaú Cultural, além de circular ao redor desta tela acrílica, instalada a ponto de visualização de todos os distintos ângulos refratários, ainda pôde sentir o pulso desta cidade bem perto dos olhos.