Entrevista Thaís Rivitti, 2003
O ponto de vista do artista
Em entrevista à revista Um, autor da intervenção gráfica analisa o cenário brasileiro das artes como terreno ampliado de ações e defende pausas “involuntárias” nos processos de institucionalização do espaço.
por Thais Rivitti
Você é formado em arquitetura, o que, aliás, transparece em seu trabalho. Digo isso pelo poder de interferência das obras na cidade, o que evidentemente não é apenas uma questão de escala, mas fruto de uma aguçada elaboração acerca da estrutura do espaço urbano. Que possibilidades você viu nas artes plásticas que não estão presentes na arquitetura e que fizeram você escolher a primeira?
Milton Santos pensava o espaço como sendo a síntese provisória entre o conteúdo social e as formas espaciais. um eterno Presente resultante de processos e funções atuais. uma construção visível principalmente no espaço comum das ruas, cuja metáfora é a da impermanência. a arquitetura, por sua vez, nasceu sob o signo da permanência, da fixidez, e portanto distante dessa dimensão, digamos, mais fluida. e, apesar de ser uma ação física que define e molda o ambiente que nos envolve, na maioria das vezes ela ainda teima em nos ver como meros usuários, deixando de aproximar suas respostas das necessidades e prioridades dos habitantes das cidades. enquanto para a arquitetura o espaço ainda aparece como uma dimensão exclusivamente física, para a arte ele vem sendo compreendido como lugar onde a conversão de usuários em sujeitos é uma possibilidade real.
Como você acha que ser brasileiro, ou seja, ser formado dentro de uma determinada conjuntura sócio-econômica, ter acesso a determinadas obras de arte como referência (e principalmente não ter acesso a inúmeras outras) e conviver com uma escassa reflexão sobre arte contemporânea, influencia seu trabalho?
de muitas maneiras. e a principal delas tem a ver com a facilidade com que nossas ações se deslocam e procuram resignificar o papel da arte. embora em alguns momentos esse ambiente pareça limitado, a relativa “escassez” de referências e a conseqüente incipiência do mercado têm papel fundamental na garantia do frescor presente em nossa produção mais recente. pode parecer uma contradição, mas esse cenário funciona como um passe libertador. se de um lado as instituições começam a se fortalecer e a deixar bem claro o tratamento que irão dispensar à arte, de outro há uma certa liberdade para que essa produção decida em qual terreno ampliar suas ações. um contexto que facilita a ocorrência de novos projetos, sem que esses sejam imediatamente taxados, enquadrados ou consumidos.
Alguns trabalhos seus têm a característica de revelar certos mecanismos e comportamentos sociais que permanecem escondidos. Em Vazadores (2002), a construção de uma passagem discreta na fachada da Bienal que permitia o contato entre o que estava dentro e fora da exposição gerou uma intensa polêmica com a administração que temia evasão de renda. Colocou-se às claras um limite das instituições em abarcar a arte contemporânea. E mesmo os postes e outdoors brancos fotografados no espaço urbano (série Puzzles, 1997-2002) questionam a publicidade evidenciando seu conteúdo vazio, a poluição visual e a imposição de conteúdos ideológicos que ela carrega intrinsecamente. A partir desta leitura‚ é possível falar numa função social ou política da arte?
pensar nestes termos nos dias de hoje é correr o risco de manter o artista no papel de “patrono ideológico”, como escreveu Walter Benjamin. a cultura não pode mais ser vista como um campo autônomo, como algo que tem um espaço determinado no interior da sociedade. há muito que as ações realizadas no espaço urbano passaram a lançar um olhar crítico em relação às estruturas e instituições que “organizam” as metrópoles e a considerar aspectos políticos, proposições estéticas e ramificações sócio-econômicas como fatores igualmente decisivos para a constituição de lugares. esse processo “introduziu” o conceito do “outro” e revelou a importância de uma investigação crítica em relação aos mecanismos da produção simbólica e ao papel exercido pelos aparelhos controladores da representação cultural. ações que não se colocam para, mas desde o interior de um contexto mais complexo e difuso.
embora a questão da acessibilidade estivesse muito presente em Vazadores, o projeto tratou principalmente das várias restrições percebidas nos processos de difusão da arte contemporânea, onde o mais importante foi tentar garantir uma experiência ligada à transposição, ao atravessamento. uma oferta contraposta à visível limitação da utopia modernista. como não havia qualquer indicação dessa passagem ou qualquer placa de identificação, alguém que não soubesse nada sobre o trabalho, mas que percebesse a estrutura de ferro instalada na fachada do prédio, poderia se projetar sobre ela e entrar ou sair do espaço da Bienal. o projeto propunha assim uma passagem sem intermediações, pretendida e acionada por você. quanto às fotografias da série Puzzles, elas foram feitas sem qualquer interferência, no intervalo existente entre uma informação e outra. para mim, esses outdoors em branco se apresentam como uma subtração, uma pausa instalada na caótica paisagem da cidade. ao invés da estratégia do discurso midiático, que nos convoca diariamente à troca ou ao consumo, temos o esvaziamento de seus conteúdos e a oferta de uma experiência aberta indistintamente aos habitantes da cidade. uma pausa “involuntária” nos processos de institucionalização do espaço público.
Acho particularmente interessante o modo como o público entra em seu trabalho. Muitas vezes, como em Detetor de Ausências (1994), trabalho em que dois feixes de luz cortavam o viaduto do Chá iluminando os transeuntes, e em trabalhos realizados do lado de fora do espaço expositivo, como a instalação de luzes em bueiros e de tomadas voltadas para a rua, a obra só se consuma no contato com o público. Isso parece evidenciar um certo limite para a ação artística: ela não pode ser imposta, depende sempre de uma disponibilidade imprevisível do público para ocorrer. Como você pensa esta questão da participação?
estamos falando de ações realizadas na rua, um espaço supostamente comum aos que vivem numa mesma cidade. assim, acredito que os trabalhos a princípio entrem no espaço urbano como uma oferta qualquer: sem divulgação, convites, ou qualquer anúncio prévio. não costumo criar expectativas em relação aos projetos, e tampouco imagino essas ações como propostas transformadoras. penso nelas como inserções “silenciosas” que não procuram provocar qualquer descontinuidade à paisagem. apenas sugerir, através de um processo de resignificação dos espaços, a presença de outros fluxos contidos no interior do ambiente urbano. são ações que procuram atuar em uma linha limite entre o estar e o não estar na condição de arte; e são realizadas sem que as pessoas saibam se tratar de um projeto ou serem informadas de que o que ali se apresenta deriva de uma prática artística. como a participação não está pré-determinada, não há como prever a extensão ou a natureza dessas experiências. elas podem inclusive não se dar ou acontecer algum tempo depois, como memória.
O tema do número UM é a arte alternativa entendida, em termos gerais, como aquela arte que as instituições culturais tradicionais não abarcam em suas programações. Como você vê esta produção?
não sei se a palavra “alternativo” consegue expressar bem a orientação das experiências realizadas fora do chamado circuito oficial. além do mais, utilizá-la como contraponto às ditas “instituições culturais tradicionais” me parece um problema de origem, pois oferece um olhar lançado a partir desses espaços, como se esses fossem os centrais. não é de hoje que vemos boa parte dessas instituições perder o pé do curso e se enfraquecer como canal para a difusão da arte contemporânea. quem acompanha nossa produção mais recente sabe que muitas de suas intenções e necessidades estão simplesmente passando longe desses ambientes. e não me consta que o processo se dê apenas por causa de uma falta de espaços. não que isto também não possa estar ocorrendo, mas penso que esses movimentos desenhados por artistas estejam principalmente respondendo à natureza dos projetos, mais independente em relação às estruturas dadas.
Como você vê a crítica de arte no Brasil?
sem espaço.
RIVITTI, Thaís. "O ponto de vista do artista". Revista Número Um, Ano 1, Nº 1, maio-junho de 2003. Website: