Entrevista Helio Hara, 2001
Entrevista
Por Hélio Hara
Em anos recentes, a tecnologia tem estado em todo lugar. Você tem a sensação de que quanto mais ela progredir, mais liberdade haverá para alguns artistas?
Ser humano significa ser tecnológico, mas é necessário apropriar-se da tecnologia e não ser apropriado por ela. Na verdade, a imagem é que se tornou ubíqua, com a ajuda da tecnologia. E é a imagem que nos deve fazer ficar em guarda. O fluxo contínuo de imagens cambiantes produz uma fascinação inconsciente, e isso é perigoso quando não sofre mediação. A velocidade com que a tecnologia muda e as “possibilidades” que ela oferece aumentam exponencialmente no tempo. O que antes eram engenhocas curiosas hoje são aparelhos “essenciais”; o que antes eram efeitos especiais hoje são partes comuns da linguagem da imagem. Quando a tecnologia pára de trabalhar é que vemos o que a tecnologia é. De maneira similar, quando ficamos doentes ou resvalamos na morte sentimos a presença e a vulnerabilidade da vida. Eu me cerquei de máquinas de fazer arte e às vezes penso que é apenas para que eu as refute.
Você julga a interatividade tecnológica algo muito diferente da interatividade da experiência estética?
“Interativo” é outro termo superutilizado, como “instalação”. A melhor descrição que ouvi para diferenciar estas duas noções de interatividade são os termos "implícito" e "explícito". Implícito significa interagir com o mundo em geral (experiência estética ou não), e explícito significa que há algum tipo de interface tecnológica através da qual, ou com a qual, um participante confronta um trabalho. Não seria difícil acrescentar muitos subdivisões a elas. Esta última definição nos coloca no campo das máquinas. Ela envolve retroalimentação (feedback) e cibernética. Penso que para um trabalho de interação explícita obter sucesso, a interface e sua complexidade não podem ser sentidas conscientemente, mas sim ser “naturais” - confrontar-se com uma obra de interação explícita é tão simples quanto dirigir um carro. Muitas das primeiras obras de interação explícita tinham o problema de forçar o participante a adotar uma posição consciente cada vez que uma decisão precisava ser tomada. Por exemplo, “você está aqui; para onde você quer ir: A, B, C, ou D?”. Isso especialmente no caso dos CD-ROMs e de outros meios de “encruzilhada” [branching]. Processos intuitivos são impedidos ao sermos levados de volta à superfície - o "script" tecnológico, poderíamos dizer. As interfaces correntes são consideravelmente mais sofisticadas e intuitivas, mas, mesmo assim, permanecemos conscientes da interface. Há algo de quase fetichista, e isso porque em obras com poder a interatividade é muda.
Você começou trabalhando com escultura. Em que ponto você percebeu que o vídeo era um bom meio para lidar com a fisicalidade da linguagem?
Minha experiência inicial com o vídeo foi muito forte. Parecia que tinha a ver com meu sistema nervoso, com feedback, e com assistir a mim vendo a mim mesmo e “interagindo” com esta conversação. Eu estava dentro de um processo e ao mesmo tempo eu podia ver o processo de fora. Talvez seja algo comparável a uma primeira viagem de ácido, ou a um certo tipo de avanço na psicanálise, ou “ao momento” de algum esporte radical. Infelizmente, pelo menos em retrospecto, eu estava fascinado, ou deveria dizer mesmerizado, pela imagem eletrônica - sua arquitetura, como se podia processá-la e manipulá-la e assim por diante. Eu era um escravo do pixel. Foi só pelos meados dos anos 70 que comecei a falar e a usar meu corpo para interromper a fluxo constante de imagem - o sinal. Neste ponto as coisas ficaram muito mais interessantes para mim.
Nos anos 80, muitos artistas usavam o vídeo de maneira um tanto estática. Agora vemos o vídeo sendo usado pela indústria do cinema, na internet... Você acha que todas as mídias [todos os meios] estão ficando cada vez mais misturados?
Uma vez que se torna digital, abrem-se as comportas! A web chegou para ficar, e “intermídia”, um termo cunhado pelo poeta Dick Higgins décadas atrás, é tão natural à web que criará muitas possibilidades a mais do que as que já tem. A net art está passando por um processo semelhante àquele do vídeo em seus primeiros estágios. Eles estão ligadas à idéia de intermídia - para não falar nas implicações políticas em jogo, no acesso e em quem o controla, o dono da mídia [dos meios]. As possibilidades estéticas da net não são tão interessantes quanto os projetos de base mais conceitual. É importante perceber que o vídeo, net art etc. são ligados a fontes no passado - não se trata de nova tecnologia gerando, por conseqüência natural, novas formas de arte.
Até que ponto o significado é importante em obras como "Remarks on Color", que será apresentada em São Paulo, já que consiste em leitura?
"Remarks on Color" é, sim, sobre significado; como podemos concordar sobre qual seja o significado quando, em última instância, não temos certeza do que a outra pessoa está dizendo precisamente. Nós dialogamos, falamos e escutamos porque buscamos o significado - queremos significado [sentido] em nossas vidas e nas coisas que nos cercam. Em "Remarks on Color" eu tentei externalizar esse processo fazendo uma criança ler algo que ela pouco entende, o que faz com que a inflexão e a pronúncia mudem um pouco. Algo como quando uma criança tem uma ilusão de óptica ou quando uma palavra tem duplo sentido: estes são casos em que fazemos a travessia e então vemos a outra palavra/sentido. Nesse tipo de espaço, o sentido não é fixo; está mais próximo de um processo em andamento, onde a natureza do sentido está se fazendo conhecida.
A filosofia desempenha papel importante em seu trabalho. Em "Remarks on Color", por exemplo, há uma referência a Wittgenstein...
Eu realizei uma série de trabalhos que eram inspirados em textos específicos, mais do que em leituras completas de pensadores particulares. De todo modo, eu diria que tinha a ver com tratar esses textos quase como objetos físicos, nos quais a compreensão é trazida para o primeiro plano e experimentada como processo. Meu relacionamento com esses textos e como trabalhei com eles vem em parte dos metálogos (metalogues) de Gregory Bates e de sua descrição da estrutura que comportam. Ele fala sobre o conteúdo da conversação sendo refletido na estrutura da própria conversação - algo como forma e conteúdo, mas de um ângulo um pouco diferente. De fato, um dos primeiros trabalhos que realizei sobre texto de um escritor foi “Why Do Things Get Into a Muddle?” [Por que as coisas ficam confusas?], de Bateson's. Fiz uma espécie de metavídeo sobre o metálogo do mesmo título, com a adição do subtítulo (Come on Petunia) [Vamos lá, Petunia].
Quais são as mudanças em trabalhos como "Remarks on Color" quando são apresentados em inglês, alemão ou português, línguas de estruturas diferentes?
Bem, eu espero que o jeitão da obra seja o mesmo pelo menos no que toca às leituras. Claro que há mudanças de nuança, inflexão, transformação de pronúncia e de palavras, mas a maneira como o sentido vem e vai e como a audiência experimenta a compreensão reflexivamente deve ser bem similar. Por outro lado, os sets ou cenário das leituras são um tanto diferentes, particularmente na versão em português, que acontece no meio de folhagem. Além disso, as cores que o leitor veste são diferentes, e essa referência traz relações diferentes com o texto.
Existem áreas/questões especiais que você gostaria de tratar no futuro?
Eu ainda estou interessado no espaço ontológico onde ser, pensar e experimentar sejam ativos de uma maneira meio tímida e ao mesmo tempo experimentada em um nível muito visceral - onde o pensamento se torna quase palatável. Por outro lado, fico ainda fascinado com o problema diário de como uma imagem se segue à outra.
Como você vê a interseção entre o som e a imagem em seu trabalho?
Quando comecei a usar vídeo, eu estava realizando muito trabalho de som com minha escultura. Trabalhei com barras de ferro, que por acaso tinham ricas possibilidades sonoras. Isso me levou a usar gravadores, fitas em loops, feedback e, por fim, som gerado eletronicamente. Eu fiquei muito interessado na noção de ver o que se ouve e vice-versa - algo como a fita de Mobius, em que um lado não tem precedência sobre o outro [não há lado de dentro nem de fora]. Eu estendi essa idéia para o discurso. Em "Around & About" [Em volta e em torno] e em "Primarily Speaking" [Primariamente falando] as imagens são editadas para que os elementos silábicos da linguagem dêem a sensação de que linguagem tem espaço e tempo em oposição a ser objeto do sentido.
O tempo é uma questão crucial no ambiente de vídeo. Como tempo, memória e linguagem são articuladas em seu trabalho?
Esta é uma questão muito ampla, que cobre muito terreno. Eu tentarei responder ao espírito da coisa falando de um trabalho específico, "Midnight Crossing", de 1997. Para começar, o próprio título vem de um momento que ocorre em códigos de tempo. Quando 23:59:59:29 muda para 00:00:00:00, podemos falar em “travessia da meia-noite”, que realmente se refere a uma espécie de não-tempo - ou talvez um momento breve para se pensar sobre o tempo. Na obra, há um texto falado construído de frases individuais que são ouvidas a intervalos irregulares, digamos de 15 a 90 segundos, com silêncios entre eles. Durante o tempo da vocalização, um número de luzes de alta intensidade instantaneamente ilumina uma tela e sua estrutura de apoio tipo andaime, obliterando qualquer imagem que lá estivesse. Ao esperar pela próxima imagem, que emerge do negro total, o espectador ainda vê o pós-imagem [after images] da tela e do andaime, que “se movem” e “se misturam” com a nova imagem, que lentamente se faz visível e que firma novamente a tela e a estrutura de apoio. O tempo da luz intervém na construção da narrativa através de imagens, ao mesmo tempo que sinaliza o próximo elo ou frase que o espectador continua a construir e a rememorar do texto falado. Mais e mais a questão se coloca: aquilo era a memória da imagem e/ou da linguagem deste espaço e tempo, ou era a memória coletiva dos espectadores?
(catálogo do 13º Videobrasil) ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "13º Videobrasil": de 19 a 23 de setembro de 2001, p. 101 a 106, São Paulo, SP, 2001.