Depoimento 2003

Respostas de Lucas Bambozzi às questões formuladas pelos organizadores do 14º Videobrasil


1. Durante o festival estaremos discutindo as questões do deslocamento e dos processos nômades como imagens e ações emblemáticas da situação política e cultural contemporânea. Como você reflete isso no painel da arte eletrônica? Este é um tema de interesse em sua obra?


Parece haver muito o que se discutir nesse contexto. O fenômeno das novas midias [ligadas ou nao à arte] rende dezenas de e-mails ao dia, apenas em minha caixa postal. Acho que em nenhuma outra área as discussões fervilham tanto com tanta profundidade, envolvendo conceitos e campos dos mais distintos [social, filosófico, design, politica, entretenimento, audiovisual, ativismo, interatividade… sem falar do comercio e do controle social].

Ao mesmo tempo, há uma mitificação, um modismo, um hype, uma histeria um tanto irritante em torno das novas mídias - o que acontece dentro do circuito da arte mesmo. Outro dia um curador criticou um trabalho porque ele supostamente teria “pegado carona no modismo da arte_política”. Entendi isso como uma impaciência ou indisponibilidade para trabalhos políticos. Então pergunto: quem transforma os processos sociais em modismo? Já foi o tempo em que apenas os mecanismos comerciais o faziam. Hoje os circuitos da arte e da cultura se especializaram nesse processo também.

E quando se fala em deslocamentos, penso em aspectos muito distintos, como o reflexo de situações num universo da micropolítica ou da “grande política”. A produção ou a reverberação desses deslocamentos no plano individual pode ser resultado de um espectro de acontecimemtos dessa magnitude. Finalmente, parece ser passado um tempo em que ser politicamente correto implicava em não ser político, em não adotar uma postura definida, como se o comedimento [que significa omissão na maior parte dos casos] fosse a melhor postura possível. Vejo com muito bons olhos a micro-política se engordando, não dando conta de si, transbordando o umbigo e abordando algo mais do que “o outro”. O macro nos sufoca, não há como negar, e temos que ter uma posição [ou melhor, uma atitude] com relação a isso.

Resta saber [ainda tenho dúvidas]: isso estaria acontecendo de fato em escala localizada ou planetária? Isso já teria deixado de acontecer?



2. A relação entre arte e política é ao mesmo tempo rica e conflituosa. Como você percebe esta relação no caso específico do seu trabalho?


Num recente debate on-line entre amigos fui provocado por um colega que citou uma frase de Mário Faustino, colocada na boca de Jardel Filho por Glauber Rocha [Terra em Transe]: “a arte e a política são muito para um homem só”.

Não há como negar a força poética da afirmação, principalmente porque ela sugere um arrebatamento irreversível numa ou outra opção, o que inviabilizaria a vivência de ambas as opções de forma exacerbada. Mas como interessa dar continuidade à questão e não encerrá-la por aqui, penso que sempre foi adequado ao artista/realizador ter sua posição política bem definida e clara, mas em poucos momentos de nossa história, a estética ligada à politica foi bem vinda. Forma revolucionária hoje é diferente do que era na revolução russa, inclusive porque o conteúdo hoje se traveste na própria mídia (Marshall Mcluhan) ou na própria interface (Lev Manovich). Mas no aspecto prático, infelizmente os circuitos existentes são os mecanismos que sinalizam o que pode ser ou não bem-vindo em termos de acento político. A grosso modo, diria que, há poucos anos atrás havia uma certa rejeição pelo que fosse demarcado explicitamente pelo político. Hoje diria que há uma rejeição pelo avesso: pelo político ter sido absorvido como elemento de um modismo, gerador de saturação. Assim, no momento em que se diz que a política saturou o terreno da arte isso me preocupa de uma forma diferente. Pois desautoriza uma necessidade, uma compulsão natural, uma vez que somos políticos por natureza. E de uma maneira geral me preocupo também quando algo, seja um tema, uma linha estética, uma técnica ou um recurso poético que urge ser explorado, passa a ser taxado de moda ou modismo. Isso funciona como um elemento desestabilizador, que supostamente abala a consistência dessa estrutura que mal se esboça. Junto com a tendência em desaprovar determinados assuntos está uma negação em observar em que barco estamos, para onde estão nos levando e para onde gostaríamos de ir. Modismo, saturação e cansaço se misturam muito. O que lamento é o cansaço com que não apenas determinadas midia, mas certa academia, grupos de curadores e muitos artistas tratam de temas.

E como foi complementado por outro colega no mesmo debate, se arte e politica são muito para um ser... quando deixamos de fazê-lo, um ou outro? Será que conseguimos fazê-los separadamente?

Especificamente no caso do meu trabalho, creio que fui me dando conta aos poucos de como já havia realizado (desde mais ou menos 1996) alguns vídeos e instalações que evidenciavam uma vocação política bem nítida, especialmente ligada às indefinições entre espaços públicos e privados e os conflitos dái resultantes. Isso pode ser associado a um contexto global, mas me interessa ver como isso é sentido no particular. A maioria desses trabalhos procura por existência particulares na vida urbana, quase sempre focalizando assuntos ligados ao indivíduo, da natureza humana, da invasão de privacidade, dessa política que se confunde entre micro e macro.

Está em questão nesses trabalhos uma relação de intimidade com “o outro”. Esse é um dos “assuntos” de AQUI DE NOVO. Outros elementos incluem: as janelas, a privacidade, os espaços vazios, a intimidade mediada, o voyerismo, as situações invasivas, e as dúvidas…

Em resumo o vídeo AQUI DE NOVO, na forma de um pequeno 'ensaio', sugere a reflexão sobre algumas contradições contemporãneas: sobre a defasagem entre o que se quer fazer e o que se faz de fato, sobre a disparidade entre o que se diz e o que se quer dizer. Enfim, busquei imprimir nele alguns aspectos sobre o convivio nos espaços públicos e os desejos privados.

Outro aspecto que direciona atualmente meu pensamento para os aspectos desses conflitos urbanos e políticos, foi ter vivido entre 200 e 2002 na Inglaterra, quando foi bastante nítida uma retomada de ações totalitárias por parte do governo em alguns centros Europeus. A Inglaterra vem se destacando como o país com o maior número de câmeras de vigilância per capita no mundo inteiro. Mas os motivos da efervescência em torno do assunto são muitos. Não vou nem entrar nos acontecimentos após 11 de setembro nos EUA ou nas questões que envolvem programas do tipo big brother e inúmeros outros formatos de reality show ao redor do planeta. Mas me preocupa especialmente o fato de leis estarem sendo modificadas para permitir que o Estado e as autoridades utilizem a Internet como forma de exercer nesse novo ambiente as práticas e ações de controle que eles já vinham utilizando através de tecnologias mais antigas (essa tem sido a justificativa mais comum dada aos usuários no processo de intrusão on-line: a de que a polícia e as autoridades têm que se atualizar e utilizar métodos compatíveis com aqueles utilizados pelos criminosos hoje). É sabido que a Internet é utilizada por grupos de todas as facções radicais, sejam terroristas ou por pedófilos e a polícia teria que ter sob controle esse ambiente também. Algumas leis foram modificadas nesse sentido, para permitir uma intrusão maior e várias coisas passaram a acontecer, como provedores instalando sistemas de triagem do fluxo de comunicação. O que antes não era permitido por lei, passou a ser não apenas permitido como obrigatório.

Influenciado por esse contexto, acabei sendo motivado a criar algum trabalho que colocasse esses aspectos em evidência, ou melhor que utilizasse de recursos semelhantes para fins distintos. Como já vinha trabalhando questões ligadas ao público e ao privado, fui me dando conta de que deveria enfrentar questões como essa de alguma forma. Então segui em frente e me senti inclusive na obrigação de fazer algo conectado e adaptado à prórpia Internet, e não apenas dar continuidade ao que eu vinha desenvolvendo antes, que era uma instalação interativa (4PAREDES, apresentada no Paço das Artes em 2002 durante a exposição Intimidade). Assim foi criado o trabalhode net_arte META4WALLS, cujo protótipo foi apresentado no Videobrasil em 2001. Há de fato um ambiente de discussões em torno das questões envolvidas pelo tema. Este trabalho se apropria deste contexto. Um contexto de “vale tudo” na Internet, de selvageria, de envio indiscriminado de produtos e ofertas de coisas cada vez mais bizarras. Isso é o conteúdo do trabalho META4WALLS, como forma de criar uma espécie de meta-conteúdo e meta-invasão. Supostamente essa meta-invasão seria capaz de gerar uma espécie de conscientização, ou pelo menos, proporcionar um olhar crítico na pessoa, fazer a pessoa se dar conta desse mecanismo.



3. As tecnologias da imagem e da informação participam de estratégias de controle e vigilância, sutis (ou não) e generalizadas. Diante desta realidade, qual seria , a seu ver, o papel da arte em contextos midiáticos?


Acredito que hoje (ainda hoje!), falar sobre novas midias implica falar sobre a política das novas midias. Trata-se de um novo contexto que caracteriza boa parte dos anos 90 e que ainda não avaliamos por aqui no Brasil a sua devida consistência. Por outro lado o próprio conceito de mídia-arte há muito já incluiu em suas definições a idéia de subversão e apropriação, duas estratégias comuns ao universo do uso das mídas de forma mais notadamente tática. Assim o papel da arte em contextos midiáticos teria a ver naturalmente com os conceitos daí derivados.

Uma outra aptidão dessas obras seria ainda a de criar visibilidade, apontar coisas, direcionar a atenção.. A Internet utiliza todo um suporte que vem de várias outras mídias, vem do videogame, do vídeo, do cinema, do texto, do hipertexto, de coisas que já estavam por aí. A Internet teve o poder de fazer convergir isso tudo e ao mesmo tempo de tirar a visibilidade de tudo. Ao mesmo tempo em que tudo existe na Internet, fica cada vez mais difícil de encontrar aquilo que interessa ou produz alguma emoção, aquilo que toca, aquilo que diz e comunica. Eu acho que uma das funções que me interessam (se não é uma função, pelo menos é uma coisa que me interessa muito): é apontar e direcionar a atenção.



4. No contexto sócio-político e cultural contemporâneo, as identidades locais se reconfiguram em tensão com os fluxos globais. Inserida neste processo, a arte eletrônica participa como um campo aberto à experimentação e expressão de novas formas de subjetividade. Como essas questões se manifestam em seu trabalho?


Creio que venho experimentando as possibilidades de expressão da subjetividade desde que fiz o vídeo Love Stories (6min. 1992). Desde então meu trabalho vem sendo pontuado exatamente pelas coisas vividas, seja influenciado pelos fluxos globais ou pelos reflexos das relações pessoais.

Digo que me armo de aparatos da mídia e os aponto para o universo das relações humanas. Outros o fazem apontando-os para as próprias mídias, para os animais, para o espaço arquitetônico, para questões espirituais, para a linguagem escrita ou falada, para a linguagem não-verbal ou para as formas abstratas. Muitos se interessam pelo mecanismo de produção dos problemas atuais, pelas relações de poder entre as pessoas e os mecanismos sociais. Me interesso particularmente por esses últimos, que envolvem as relações entre indivíduos, e cada um vai descobrindo formas diferentes de vê-lo [ou de experimentá-lo].

Pessoalmente, me interessa ver, não como esse poder é maquinado na obscuridade do sistema, mas como é sentido, experimentado, negado ou subvertido pelas pessoas. Ou seja, os problemas são a matéria bruta e me interesso pelos sintomas.

Não são as mídias que me importam tanto. Interessa mais o trânsito entre elas.



5. Atualmente, verifica-se nas culturas locais o desafio de reinventar as memórias pessoais e coletivas, sem deixar que elas se esvaziem frente aos fluxos de comunicação global. A seu ver, como este desafio se traduz nas experiências da artemídia?


Em nome da globalização estamos absorvendo um estilo de vida que não é nosso. Penso mesmo que hoje somos influenciados por um“status quo” representado pelo que há de pior nos EUA, e que os nossos pais questionavam em vários aspectos (ao menos os meus).Absorve muito de tudo, de uma forma muito menos perceptível do que há 10 ou 20 anos. Não é mais o sonho do carrão, mas é como fazer um financiamento para se livrar de outros financiamentos, como manejar sua dívida, como ter uma vida sexual melhor por meio de pílulas, como trepar melhor com a ajuda de manuais. A quantidade de e_mails que eu recebo sobre mortgages, loans (empréstimos), saber sobre segredos do vizinho ou aumentar o tamanho do pênis é impressionante. Para isso existir dessa forma tão esmagadora, significa que existe público para tanto. Esta é a vida real por trás da Internet e não adianta fechar os olhos para isso e falar: “não, isso é baixo, é o low Internet, isso não interessa a nós artistas”. É como você viver numa cidade como São Paulo e fechar os olhos para loucura que está aí. Tem que haver algum tipo de enfrentamento dos conflitos reais. E não é elegância ou beleza que produzem tensão. Então, que universo é esse que intriga, que instiga? Que matéria é essa que pode ser processada? Ou ainda: o que eu como artista, como indivíduo, como pessoa viva, que sofre essa tensão da cidade, posso fazer com isso? Uma coisa que eu tenho certeza, é que eu não posso fechar os olhos para isso.

Então tento pequenas formas de reprocessamento. No caso, um simples e singelo vídeo, um site, uma instalação. Mas vivo isso e me deixo transformar por esse processo de realização.



6. No contexto de abordagem dos meios eletrônicos-digitais , interessa-lhe as questões do corpo? Como o corpo aparece em sua obra?


Sim, as questões do corpo interessam. Mas no momento as anteriores se sobrepõem a essa…


Associação Cultural Videobrasil