Depoimento 2019
Transcrição de depoimento para a 21ª Bienal
A minha amizade com Shapu, intermediada por amigos em comum, mas também pela câmera, me influenciou a fazer mestrado. Elaborei o projeto de pesquisa científica “justificando” uma oficina de audiovisual: por meio de metodologias participativas, compreenderia como o cinema e seus instrumentos seriam uma forma “moderna” de xamanismo, o campo sendo a experiência para catalisar elementos xamânicos no olhar cinematográfico Matis, além de espaço para tentar levar a sério o conhecimento, os afetos e as críticas indígenas, na hipótese de que o processo fílmico poderia ser “indigenizado”; assim nasceu Sobre câmeras, espíritos e ocupações. A edição foi colaborativa, dentro dos limites de tempo, das demandas de cada um e tentando estar atento para não estagnar nas intermitências da ética, tanto em relação à produção quanto à divulgação destas imagens e deste trabalho. Quando retornei à Holanda, tive que “adaptar” o que produzimos para um público internacional e acabei criando a última parte – uma catarse pessoal – com materiais que pareciam não se encaixar nem no filme de Shapu, nem na ocupação Kanamari.
Markus Enk, membro do Alto Amazonas Audiovisual
Um dos principais motivos da escolha da Festa do Milho como ambiente a ser retratado é que não podemos perder nossas festas, como a gente vive, como a gente come. É importante lembrar isso, como vivemos e como escutamos os mais velhos em nossa maloca. Quando volto para a aldeia, posso mostrar o que acontece no Brasil pelos vídeos das lutas dos parentes – mostro para o cacique, para os mais antigos, para todo mundo como os nossos parentes estão se organizando e lutando. Hoje, gravando a memória dos nossos antigos, podemos documentar nosso passado, que pode servir de pesquisa para nosso próprio povo. O meu trabalho no futuro é esse. Aqui na aldeia, eu não posso perder a memória do meu pai, as pinturas, as caças, os animais e como se come, como é o passado, como vivemos agora: isso é histórico.
Shapu Mëo Matis, membro do Alto Amazonas Audiovisual
Nós somos de lugares bem distintos – um fotógrafo indígena e um mestre em antropologia, e a troca é indispensável: o não indígena oferece seus conhecimentos e o indígena apresenta o seu. Porém, quando filmamos, assistimos, sentimos o outro e dizemos nossas opiniões, a resolução gradual dos conflitos gera parcerias, amizade e confiança, além do técnico ou do acadêmico. Na aldeia falta muita coisa: câmera, notebook, programa de edição, papel para anotar, capacitação técnica. As parcerias têm que ser sensíveis às especificidades dos territórios e de seus povos, envolvendo-se pessoalmente não só para gravar, mas também para editar e divulgar esse material, reconhecendo os indígenas como protagonistas neste processo. Mais ainda, é preciso ter sensibilidade suficiente para olhar as imagens e ouvir essas vozes, permitir-se ser afetado. Assim podemos criar coisas inesperadas para os dois lados, rompendo fronteiras e cruzando histórias. Assim podemos auxiliar o processo de conviver com as diferenças, seja refletindo sobre sua própria cultura ou até identificando os limites de seus modos de viver.
Markus Enk e Shapu Mëo Matis