Ensaio Ricardo Casas, 10/2007

Martín Sastre, autodidata

Nasceu no Hospital Britânico de Montevidéu, em uma sexta-feira, 13 de fevereiro de 1976, às 13h, aquário com ascendente em gêmeos, dragão no chinês. É o maior de três irmãos, atualmente vive na Espanha.

O cinema começa a existir por volta de 1885 e, quase simultaneamente, começam a ser vistos alguns filmes estranhos, que posteriormente foram chamados de “cinema experimental”. Muito vinculados à literatura, mais precisamente à poesia, tivemos nossos antecedentes uruguaios em Pupila al viento (1949), de Enrico Gras e Danilo Trelles, com Rafael Alberti declamando seu poema na trilha sonora. Depois, Largo pétalo, do arquiteto Alberto Mántaras, realizado em 1958 com Pablo Neruda em off e na tela. O cinema continua a ser escasso no Uruguai até que aparece o vídeo, em meados dos anos 1980, e, com ele, várias mudanças.

O que vinha sendo “experimental” se converte em “videoarte” e depois em “arte”. Sempre vinculado a outras artes, como se pedisse licença. Podemos mencionar algum trabalho de Hugo Ulibe e Guillermo Casanova para dar caminho a um grupo de realizadores, já mais ligados à plástica, inclusive à dança, que fundam o Nuva (Núcleo Uruguayo de Videoarte), na segunda metade dos anos 1970, do qual se destacam Fernando Alvarez Cozzi e Enrique Aguerre.

Esses jovens criadores se livram das amarras de toda a tendência anterior, e começam uma obra criativa e original, gerando um verdadeiro movimento artístico, com autonomia e rigor na utilização da linguagem audiovisual.

Entre os filhos do Nuva, podem-se mencionar Paula Delgado, Dani Umpi e Martín Sastre. Este último começa já de pequeno nos cursos de cinema para crianças que Eloy Yerle organizava na Cinemateca Uruguaya, depois passou pelo desenho, pela escultura e pela Faculdade de Arquitetura...

Em 1999, a Aliança Francesa de Montevidéu lhe pede para organizar uma instalação para uma mostra de videocriação. Consegue emprego na galeria da Aliança e daí divulga um press release anunciando que, por conta da morte de “Robert Quenedit”, “Jaquelín Quenedit” chegaria ao Uruguai como parte de uma turnê mundial para exorcizar a maldição da família. Conseguiu que alguns jornalistas solicitassem entrevistas com alguém que nunca desembarcaria, já que havia morrido anos antes.

Depois dessa intervenção midiática, obteve uma bolsa de estudos na França e, na volta a seu país, se dedicou seriamente à criação audiovisual, que o leva a dirigir vídeos ao chegar o início do século. Em 2000 apresenta The E! True Hollywood Story e Heidiboy, ao mesmo tempo em que expõe em Nova York Big, quisiera ser grande, chamando a atenção por sua originalidade e desembaraço, sobretudo ao se considerar que vinha de um país tão cinza e tão conservador como o Uruguai.

O vídeo é um falso documentário em que o autor é o entrevistado e termina por revelar-se um artista que surge da pobreza de seu povo para alcançar o cume de Hollywood. Uma espécie de ironia sobre a sua própria história, em que o artista força os extremos e converte o relato quase em comédia.

No ano seguinte, vêm Masturbated Virgin I, Masturbated Virgin II, Sor Kitty: The Missionary Nun. Sastre começa a utilizar os ídolos de nossos dias, de nossa querida sociedade de consumo, no caso, Britney Spears, então vivendo o drama de sua virgindade. Novamente o artista se coloca em primeira pessoa, agora já convertido em herói, uma espécie de apóstolo ou Superman doméstico capaz de salvar sua heroína. Sem recursos sofisticados, sai correndo pelas ruas com um cotonete gigante nas mãos.

Muito influenciado pelo pop, a proposta visual do artista não tem pudor. Com escassos suportes tecnológicos, ele recria um mundo de fantasia apelando para dados da realidade. E nos defronta com a outra face dessa realidade, tão frívola e cruel que nos recorda a Factory de Andy Warhol, ainda que no caso de Sastre sejam as próprias stars que aparecem na tela.

O humor é a chave para meter o bisturi em suas histórias. Elas conseguem a cumplicidade imediata do público, que desfruta de fazer parte desse mundo cheio de cor e de idéias visuais.

Nesse ponto, o artista chega a Madri, com uma bolsa da Fundação Carolina. Lá realiza La Trilogía Iberoamericana, integrada por Videoart: The Iberoamerican Legend; Montevideo: The Dark Side of the Pop; e Bolivia 3: Confederation Next. Já convertido em Walt Sastre, adentra o túnel do tempo para criar uma aula sobre a videoarte na América ibérica, uma espécie de cruzada épica nunca vista antes.

Uma história de sucesso na qual Hollywood se vê substituída pelo desagradável hiper-realismo dos meios de comunicação. Dentro de um gosto muito kitsch, desfilam personagens como Carmen Miranda, Kurt Cobain, George Bush, CNN, Ho Chi Minh e o próprio Martín Sastre, transformado no galã da hora, leia-se Tom Cruise ou Richard Gere em seus melhores momentos cinematográficos.

Na América Latina, segredos e mentiras vão definindo sua história. Os mais brilhantes expoentes do Centro Europeu de Inteligência são enviados para investigar, em Montevidéu, o segredo do sucesso de Martín Sastre. Os jovens experts descobrem uma cidade deserta e Sastre cantando karaokê pelas ruas. Uma história retrofuturista que fala de colonialismo ao revés, com fundo de quintal “sudaca” e financiamento europeu. Essa obra leva o artista a ganhar o Prêmio ARCO de Madri, aos 28 aninhos.

Bolivia 3 apresenta o duelo entre Martín Sastre, representante da Arte Ibero-Americana, e Matthew Barney, representante da Arte Norte-Americana. A metáfora dessa confrontação é a desigualdade entre os oponentes, uma espécie de Davi e Golias que não abandonam a luta.

Em Madri, Sastre teve um programa de televisão com entrevistas e ações performáticas, que por sua vez levavam o esquema televisivo aos territórios da arte. “Interessa-me expandir os limites, trabalhar sobre eles e dissolvê-los. Não estou de acordo com que se restrinja a arte, quando o restante das coisas se expande”, afirma.

E a ironia se apodera de nosso artista. Talvez com a perspectiva da velha Europa, cria o que batizou de The Martín Sastre Foundation for the Super Poor Art, exortando os mecenas do século 21 a adotar artistas latino-americanos, colocando-se novamente no lugar protagônico de um mundo que endeusa personagens por capricho, e não por talento.

Digamos que tenha terminado a crise de valores do século 20, quando a Bíblia era colocada ao lado do aquecedor, como diz o tango argentino Cambalache. Agora o jogo é outro: se você me agrada, eu compro. O site da Fundação é tão atraente, tão fino, tão sugestivo, que quase não delata a grande ironia de seu conteúdo. Ele seduz mais que ordena, porque tem a razão dos valentes, daqueles heróis puros de filmes dos anos 1940.

As exposições importantes vão acolhendo Martín, desde o Palais de Tokyo, em Paris, com sua obra Playlist, até a 26ª Bienal de São Paulo, em representação do Uruguai. Depois Dublin, Nova York, Edimburgo, Genebra, Sydney, Gênova, Xangai foram conhecendo uma série de obras que seguem inéditas em seu próprio país.

O reconhecimento internacional é sempre maior que o nacional, para todo artista uruguaio, uma regra que não se altera com o tempo. É que não há nem direitas nem esquerdas para o tratamento da arte em um “paizinho” como o nosso. Em 2005 estréia Diana: The Rose Conspiracy, durante a Bienal de Veneza, uma ficção em que pleiteia haver descoberto que Lady Di não morreu sob a ponte D’Alma de Paris, mas vive e está escondida em um bairro da periferia de Montevidéu. Uma irmandade secreta de freiras resolve resgatar Diana de Gales, seu membro mais importante.

Ela não fala, mas é vista com sacolas de compras nas ruas de um bairro pobre e comendo churros com um namorado mais jovem. Simultaneamente, vemos imagens de arquivo que as redes de notícias internacionais emitem, ao descobrir que a princesa não morreu. Nas palavras do autor, como A Bela Adormecida ou Branca de Neve, Diana devia escapar de seus inimigos, como quando as princesas dos contos de fada se escondiam dos malvados e terminavam em cabanas perdidas no bosque…

Nesse mesmo ano, a The Martín Sastre Foundation concede uma bolsa de estudos para Charlotte Seidel, Susi Pietsch e Annemarie Thiede, três artistas alemãs da Bauhaus de Weimar, para viver em Montevidéu através do programa Seja um artista latino-americano, criado pela Fundação.

Parece que a criatividade não tem limites para Martín Sastre, e o desafio é demonstrar que ainda há força no continente latino-americano, mais vontades que possibilidades, ainda que esse personagem se vire para conseguir o que quer. E é assim que chega à Inglaterra, em 2006, por meio de uma bolsa da Site Gallery, de Sheffield, para realizar o projeto Freaky Birthday, inspirado no filme de Hollywood Freaky Friday (Sexta-feira muito louca), em que uma jovem quer ocupar o corpo de sua mãe para conseguir entender como se vê o mundo a partir do lugar do outro. E Sastre descobre que nasceu no mesmo dia que Robbie Williams. Um sonho se converte em realidade, e Martín chega a conhecer a fama e o êxito de Robbie, viver na pele do outro com olhos de um artista latino-americano.

Sua relação com o “mundo real” tem várias arestas. Por exemplo, o trabalho com a banda espanhola de eletropop Fangoria (La mano en el fuego), a colaboração com o ator Nacho Vidal e a marca de roupa masculina EBP, além de vários clipes publicados no YouTube e uma longa lista de et ceteras.

Sastre não está alheio aos mitos contemporâneos. De Britney Spears a Paris Hilton, eles formam um discurso que lhe permite ironizar sobre este mundo em que nos cabe viver. A mundialização é um dado sempre presente em suas obras, desde os objetos que compõem seus desenhos até os fragmentos de filmes, documentários, ficção ou animação. Criam um mundo pós-industrial em que nada significa o que é, senão em função do contexto. Os sonhos se tornam realidade facilmente, bem como a fama, a possibilidade de se converter em estrela ou a possibilidade de se converter em artista latino-americano, ou seja, pobre. O pop aí é uma forma de ver o mundo, de ir além do que parece, de compor um espaço-tempo próximo à fantasia, essa fantasia que nos invade a partir das telas todo o tempo, distinta da realidade do noticiário.

“O Uruguai é um território pequeno que não tem uma cultura muito arraigada e autóctone. Um lugar de cruzamento entre o latino-americano como origem geográfica, a contribuição da imigração européia majoritária e a forte invasão da cultura norte-americana”, já disse Sastre.

Não é casual que Martín Sastre viva na pátria de Almodóvar. Também não por acaso sua fonte de inspiração continua a ser o Sul, Montevidéu, sua terra, essa que o expulsa, mas que lhe dá tantos temas para representar. Talvez esse garoto que aprendeu a decodificar imagens com Eloy Yerle esteja procurando um mito para acreditar, depois de se dar conta de que a fama é puro conto, divertindo-se como protagonista, herói de uma comédia humana que constrói a cada dia, enquanto prossegue na busca.

É que somos tão sérios, os uruguaios, que necessitamos de um espaço para tirar a máscara da transcendência e começar a desfrutar do humor de Martín, este que briga com o império, que descobre segredos de mitos (vivos e mortos), modesto a partir da soberba, que canta e dança como os grandes artistas e que nos aproxima de um universo onde tudo é possível. E, se não há dinheiro, fazemos do mesmo jeito, porque Martín é um gênio. “O avassalador registro do real por parte das redes de notícias (onde se percebe uma realidade simultaneamente destacada, ‘produzida’ e eventualmente gerada pelos meios) é simplesmente o primeiro sinal de um cataclismo de dimensões descomunais que demonstra o avanço do real sobre a fantasia. E o terror e o caos vieram com o advento da era Bush, quando as guerras transmitidas ao vivo pelas telas de nossos televisores e a onipresença das câmaras de vigilância produziram efeitos de realidade tão potentes que arruinaram Hollywood, a grande fábrica de sonhos”, afirma o artista.

Todos somos Gardel, todos somos Martín Sastre!

Obrigado, Martín.

Curador e cineasta, Ricardo Casas (Montevidéu, 1955) criou no Uruguai o Divercine - Festival Internacional de Cine para Niños y Jóvenes e o Iman – Instituto de Medios Audiovisuales para Niños y Jóvenes, e escreveu, com Graciela Dacosta, o livro Diez Años de Video Uruguayo (1995). Seu Palabras Verdaderas (2004), sobre Mario Benedetti, foi premiado como melhor documentário latino-americano no Festival de Lleida (Espanha). Em 2000, assumiu a vice-presidência da ASOPROD – Asociación de Productores y Realizadores de Cine y Video del Uruguay, que o reelegeu em 2005. Integra a Comissão Diretora da Cinemateca Uruguaya.

Entrevista Denise Mota, 10/2007

Em The E! True Hollywood Story, você conta sua biografia em um formato que é usado para narrar a vida de ídolos pop internacionais. Isso pode ser visto como uma tradução bem-humorada do postulado desse dossiê: (A)Pareço, logo existo. No seu caso, reinventar-se como estrela e ser absorvido pela cultura de massas mundial. Tudo o que vemos através de uma tela é uma construção? 

Um filme, em geral – e mais ainda se é uma ficção –, são milhares, milhões de dólares e o esforço de centenas de pessoas para apenas uma coisa: mentir. É uma convenção, todos sabemos que o que vamos ver é mentira. Não se trata, portanto, de uma mentira má, é simplesmente uma mentira em que queremos acreditar e da qual inclusive precisamos. Um documentário é a mesma coisa, por trás dele há um realizador que não é imparcial. Desde criança, sempre que via um concurso de televisão, dizia à minha irmã: “Isso é uma armação”. E ela, até hoje, ri de mim por causa disso, o paranóico que eu sempre fui (risos). Mas acho que foi justamente essa paranóia precoce que me salvou de ser um telespectador bobo, passivo. Mais que paranóia, é uma sensação inerente a tudo o que vejo em uma tela, uma espécie de sexto sentido do truque, com o qual – para bem ou para mal — nasci. Sempre há um olho que olha mais para um lado do que para o outro, um olho que constrói. Meu The E! True Hollywood Story – a partir de um ponto de vista restrito – é absolutamente real. Todas as coisas que são contadas me aconteceram de verdade: tomei gasolina aos dois anos de idade, desenhei o Papa porque acreditava que João Paulo II fazia parte do grupo Kiss etc. E todos os personagens que aparecem são absolutamente reais, em situações reais. Trata-se quase de um documentário. O que há de construção é que contei minha própria história como se fosse contada pelo canal E! Entertainment Television. Assisti a cerca de trinta episódios e notei que biografias de pessoas diferentes iam ficando mais e mais parecidas, todos haviam tido um acontecimento na infância que os havia traumatizado, todos haviam tido um ponto de inflexão entre ser alguém desconhecido e se tornar uma estrela. A construção de uma estrela atualmente também está padronizada, e o The E! True Hollywood Story da minha vida obedece a esse processo. Em termos de leitura linear, é tudo real. Parecer e existir são coisas muito diferentes. Esse trabalho concretamente primeiro existiu – a minha história – e depois pareceu – um programa de televisão. O processo é exatamente o inverso da linha curatorial. 

Você recebeu algum comentário ou resposta de Matthew Barney a respeito da “participação especial” dele em Bolivia 3? Por que Barney foi o escolhido?

Matthew Barney é o videoartista mais bem-sucedido da geração imediatamente anterior à minha, aquela que despontou nos anos 1990. E, como bem apontou Tom Morton, um crítico de arte inglês, minha luta com ele é a batalha de Luke Skywalker com seu pai, Darth Vader, quando lhe diz: “Luke... I’m your father... Come to the dark side...” [Luke…, sou seu pai… Venha para o lado negro…]. Nunca havia pensado nessa referência quando fiz Bolivia 3: Confederation Next, mas ela me pareceu muito válida. É necessário lutar contra o que já está estabelecido, e concretamente Matthew Barney representa os grandes orçamentos da arte norte-americana, algo que faz com que minha luta com ele seja mais como a de Davi contra Golias, dois personagens que se assemelham às dimensões díspares que há entre Uruguai e Estados Unidos, uma superpotência cultural gigante como poucas na história e um país diminuto sem políticas culturais fortes ou claras. Levei muito tempo pensando na conclusão desse conflito, se Barney deveria morrer ou não no final. No entanto, ao invés de um final violento, optei por transformá-lo em Barney, o Dinossauro, um ser afetivo. Escolhi levá-lo a outro território onde, ao fim, poderíamos ser amigos. A cada vez que estreei alguma parte da trilogia me aconteceram coisas estranhas. Quando estreei Bolivia 3 representando o Uruguai na Bienal de São Paulo, para minha surpresa, Matthew Barney apareceu por lá e entrou para vê-la. Quando saiu, estava muito emocionado, me fez uma reverência e me abraçou entre risos. Efetivamente, o Barney real e o do vídeo haviam se transformado em seres emocionais, no final. Na minha frente, não tinha mais o Matthew Barney super estrela da Arte Atual, marido da Björk etc., mas um colega que ria comigo. E então fiquei feliz comigo mesmo pelo final que havia escolhido, era outra mostra de que quem domina a ficção domina a realidade. A arte transforma, isso é o que há de bom. 

Pode-se perceber o seu interesse em muitos setores do pop, desde ...E o vento levou até Britney Spears, Paris Hilton, Guerra nas estrelas, Matrix ou Entrevista com o vampiro. Qual é a importância do cinema na sua formação?

“Setores do pop” é um título muito bom para alguma coisa! Eu me criei em plena expansão das videolocadoras, aos onze anos já tinha visto todos os títulos que havia na locadora do meu bairro e fui mudando de locadora. Quando já tinha me associado em todas as locadoras das zonas mais próximas, comecei a ver várias vezes os mesmos filmes. O que me interessava era ver, e assim passei a minha infância, puberdade e metade da adolescência vendo filmes em casa. Na época da Guerra Fria, e como bem disse Margaret Thatcher quando Ronald Reagan morreu: “O presidente Reagan ganhou a Guerra Fria sem usar uma só bala, sem lançar um só míssil...” A isso eu adicionaria: “Ganhou a guerra com filmes”. Não foi por acaso que, sendo um produto de Hollywood, ele fomentou a propagação de um tipo de filme barato e efetivo, que, por meio do VHS, chegou a todo o mundo. Paralelamente, a primeira coisa que estudei na vida, além de ir ao colégio, foi cinema. Entrei em uma escola experimental para crianças aberta pela Cinemateca de Montevidéu depois do fim da ditadura militar, e foi uma experiência muito rica, que me marcou muitíssimo. Ia com minha irmã todos os sábados a um antigo edifício do centro da cidade e com o resto das crianças montávamos histórias que depois realizávamos, fazíamos animações. Acho que aí aprendi todas as bases do audiovisual. Minha história é exatamente igual à de Britney Spears ou à de Robbie Williams. Por trás de tudo, houve uma mãe visionária sonhando em ter um filho famoso (risos)... Dos filmes que você cita, gosto de todos. Talvez de Entrevista com o vampiro goste ainda mais, porque representa aquele lado romântico – quase gótico – da minha adolescência grunge em Montevidéu, durante os anos 1990. Especialmente ...E o vento levou sempre me interessou muito, e há referências a esse filme em muitas de minhas obras. Sempre me senti um pouco Scarlett O’Hara, lutando contra a adversidade em uma Montevidéu devastada e esvaziada – como o resto da América Latina – por governos militares e democráticos impostos por potências estrangeiras. Há um momento em que me identifico especialmente com Scarlett, que é quando ela arranca as cortinas da época em que a família tinha dinheiro, para buscar o dinheiro que salvará Tara, sua pátria familiar, o lugar que representa sua infância de conforto onde não havia guerras. Para Masturbated Virgin mandei fazer uma roupa com as cortinas de minha avó para ir a Nova York. O importante é entender que Scarlett poderia estar vestida com cortinas, mas você pode ter certeza de que essas não eram quaisquer cortinas, eram cortinas muito boas. 

Por que Hello Kitty é seu símbolo do “todo-poderoso poder do pop”?

Porque ela não tem boca. Hello Kitty é a Monalisa do futuro. 

Montevidéu ganha uma pronúncia interessante em seus vídeos – Monte-vídeo –, como se ela se tratasse de uma obra de ficção, mais do que de uma cidade. É isso? 

O nome Montevidéu é uma ficção, ou pelo menos uma abstração, que ninguém sabe exatamente de onde vem. Há muitas hipóteses, mas ninguém disse, até hoje, “fui eu quem lhe pus esse nome”. Por isso, tive a idéia de rebatizá-la Monte-vídeo. Sempre me pareceu estranha essa coincidência entre o nome da cidade em que nasci e o fato de que eu seja um videoartista. Os gregos colocavam seus deuses no Monte Olimpo e até Hollywood tem um monte que a caracteriza. Como eu não iria estabelecer a Meca Mundial da Videoarte em Monte-vídeo, se sou de lá? Por outro lado, sempre me senti muito próximo a Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, que – como eu – também foi um uruguaio que desenvolveu sua obra no exterior e fazia uma construção quase mitológica do lugar em que havia nascido. Isso também compartilhamos… um interesse mitológico por Monte-vídeo. 

Como é sua rotina na Espanha e onde você busca hoje elementos para suas criações? Vê muita televisão?

Sempre fui viciado em audiovisual. Se há uma imagem em movimento, aí estou, consumindo. Agora estou superconectado ao YouTube, em níveis preocupantes... quase de vício (risos). De verdade! Adoro o tipo de narrativa aleatória que se gera ao navegar pelo YouTube, o salto entre um tema e outro, a quantidade de informação acumulada, a possibilidade de que todo o mundo tenha seu próprio canal de televisão, mas, melhor, porque chega a milhões de usuários do mundo inteiro, sem distinção de nacionalidade. Agora quase já não vejo TV, a troquei pelo YouTube. Acho que já vi toda a TV que tinha que ver, porque na verdade nunca mais voltei a me envolver tanto com uma telenovela como me aconteceu com Vale tudo. Algo mudou. Há algumas séries de que gosto muito, como South Park, Family Guy, So Notorious ou The Simple Life de Paris Hilton. Há um canal de terror e ficção científica na Espanha que se chama Calle 13 [Rua 13] e, à noite, filmam cemitérios vazios, e eu também assisto, mas não me ligo de verdade em nada. Acho que o tipo de narrativa está ficando obsoleto. Tudo me parece lento e, depois de um tempo, me entedia. Nada me conquista mais como um Vale tudo, já não há mais personagens como Odete Roitman. Por outro lado, a TV me parece um meio estruturado demais – maquiagem, cabeleireiro, técnicos para tudo... por causa da publicidade, agora é um meio controlado, enquanto o YouTube é o oposto, é desestruturado, com frescor e com uma estética nerd que me interessa. É verdade que por enquanto está em uma etapa Atari, ou mais para TK90, mas dentro de alguns anos vamos estar todos tão – ou mais – conectados a ele quanto ao televisor. De todas as formas, acho que a televisão é um meio a investigar, em que ainda restam coisas a ser inventadas. Há quatro anos fiz um programa de entrevistas para televisão em Madri. Foi algo fresco e espontâneo que me convidaram para fazer durante uma temporada em uma rede espanhola. Aproveitei muito esse convite, sobretudo porque pude mostrar um leque de todos os clichês das apresentadoras de televisão argentinas, algo que tenho mais do que incorporado, coisas com as quais cresci. Ia ao ar com um colar de pérolas e ao começar o programa mostrava a roupa que vestia nesse dia, era muito divertido. Foi uma experiência reveladora do poder que gera o televisor. Até hoje as pessoas me param na rua por causa desse programa. É necessário saber usar esse poder. Agora quero repetir o experimento com uma nova proposta e estou preparando um novo programa de televisão. Adoro investigar. 

Seu personagem é um bem-sucedido artista latino-americano que triunfou na Europa devido ao fato de possuir os segredos do “todo-poderoso pop”. Como foi criado Martín Sastre, o personagem?

Acho que você está errada. Martín Sastre não é um personagem. Martín Sastre sou eu.

Biografia comentada Denise Mota, 10/2007

TRAJETÓRIA PROFISSIONAL

Na pátria de Joaquín Torres García (1874-1949) e ao abrigo da Cinemateca Uruguaya, duas das instituições artísticas mais nobres do pequeno país austral, a experiência pessoal de Martín Sastre – o reinterpretar constante da avalanche de conteúdos importados à luz do cotidiano e sob um filtro de saudável desconfiança (o artista diz que, desde pequeno, sempre sentiu que tudo a que assistia por meio de uma tela “era armado”, como conta na Entrevista para este Dossier) – desembocou em uma obra satírica, fiel aos mais mínimos detalhes que fazem a engrenagem midiática girar, triunfal, em todo o mundo e capaz de despertar empatia nos mais diversos (tele)espectadores, porque não prescinde das fantasias explícita ou implicitamente alimentadas pelo homem comum.

Torres García, criador do universalismo construtivo – doutrina estético-filosófica em que se interconectam princípios de proporção, unidade e estrutura, em busca de uma arte autoctonemente americana, “poderosa e virgem”, como definia o artista, teórico e professor –, foi quem ilustrou o hoje mais que conhecido conceito de reinterpretação histórica, ideológica e cultural da América do Sul a partir da representação do continente americano de ponta-cabeça, transcrita no mapa América invertida, que o mestre uruguaio desenvolveu nos anos 1940.

Meio século depois, Sastre atualiza essa proposição: inventa a Confederação de Nações Americanas, império sul-americano liderado pela Bolívia e que desbanca os Estados Unidos do posto de manda-chuva mundial após derrotá-lo na Batalha pelo Controle da Ficção. Bolivia 3: Confederation Next, título da saga, representou o Uruguai na 26ª Bienal de São Paulo, em 2004.

Da Cinemateca, Sastre absorveu todo o aprendizado que a organização destinou ao público infantil após o fim da ditadura no país, em 1985, estímulo mais do que explosivo para um fanático das telas, grandes ou pequenas, como se define o artista: “Sempre fui viciado em audiovisual. Se há uma imagem em movimento, aí estou, consumindo”.

Entre os primeiros experimentos em vídeo resultantes de uma infância e adolescência recheadas de imagens em movimento, surge The E! True Hollywood Story, trabalho de 2000 que em muitos aspectos já estabeleceria os elementos fundamentais de obras posteriores do artista: a emergência de sua condição como popstar, o protagonismo assumido nas narrativas, a revelação de alguma informação ou fato transformador e espetacular, a ponte que se estabelece entre o mundo doméstico e trivial do cidadão anônimo e a realidade de vaudeville inerente aos famosos.

Em The E! True Hollywood Story, Sastre explora o que há de sensacional ou inusitado em sua biografia – o fato de haver tomado gasolina quando bebê, a confusão entre a figura do Papa e a de um astro de rock – para criar uma espécie de introdução a uma personalidade fora do comum, genial e visionária, intrigante e sedutora, que se desdobrará em novas aventuras, sob fantásticas circunstâncias, nos vídeos seguintes.

O artista leva passagens de sua vida pessoal ao terreno da cultura de massas, reformulando-as com os apelos do pop, mas não só. Também dilui as fronteiras (se ainda as há) entre arte e cultura popular, massificando gêneros supostamente herméticos, como a performance ou a videoarte.

Um exemplo flagrante é o programa de televisão que conduziu na Espanha em 2003, onde deu vazão a toda a “cultura de sofá” acumulada durante anos de telespectador da TV argentina, apresentando-se com os trejeitos e estilos das divas eletrônicas do país vizinho.

A estética acompanhou outro feito concretizado nesse ano: o lançamento da The Martín Sastre Foundation for the Super Poor Art, criada para canalizar patrocínios a jovens artistas latino-americanos.

No vídeo homônimo de 2003, onde apresenta os objetivos e o funcionamento da organização, o autor aparece no paradigmático cubo branco da arte contemporânea, também vestido de branco e envolto em um colar de pérolas. A visão é a de um guru-mecenas que, no cume dos circuitos tradicionais da produção artística – espaço que conquistou graças a uma incomum sagacidade e apesar de vir do “quintal” sul-americano –, prepara, fomenta e opera a reformulação desse sistema ou ao menos a redistribuição igualitária das benesses contidas no reservatório de abundância do Primeiro Mundo. “Prada para todos”, deseja Sastre, em postura de oração.

Mais recentemente, os ricos e famosos britânicos vêm sendo alvo da atenção do artista. Em 2005, com Diana: The Rose Conspiracy, Sastre voltou à adolescência grunge no Uruguai da década de 1990 para contar como a princesa de Gales escapou aos maléficos planos dos “arquitetos” da ordem mundial e, ao contrário do que a humanidade pensa, vive e é feliz na periferia de Montevidéu.

No ano passado, o criador deu início ao registro de uma nova epopéia: trocar de identidade e viver no corpo de Robbie Williams, que por sua vez também viverá seus momentos de latino-americano. O vídeo, em conclusão, pode ser visto parcialmente no YouTube – hoje o Shangri-Lá da criatividade audiovisual para Sastre, o lugar onde passa horas navegando.

Além do término de Freaky Birthday, o artista também está trabalhando no projeto de um novo programa de televisão, território que já não lhe oferece novidades, mas no qual acredita que ainda existe espaço para criar. “Acho que já vi toda a TV que tinha que ver. O tipo de narrativa está ficando obsoleto. Tudo me parece lento e, depois de um tempo, me entedia. A TV me parece um meio estruturado demais – maquiagem, cabeleireiro, técnicos para tudo... por causa da publicidade, agora é um meio controlado, enquanto o YouTube é o oposto, é desestruturado, com frescor e com uma estética nerd que me interessa”, comenta Sastre. “De todas as formas, a televisão é um meio a investigar, em que ainda restam coisas a ser inventadas.”

Referências bibliográficas 10/2007

The Martín Sastre Foundation
Site oficial da The Martín Sastre Foundation for the Super Poor Art [Fundação Martín Sastre para a Arte Super Pobre], da qual o artista é presidente honorário. Com base na internet, a Fundação foi criada para “apoiar jovens artistas latino-americanos”. Em 2005, lançou o programa Seja um artista latino-americano por três meses e concedeu uma bolsa de estudos a três estudantes alemãs da Universidade Bauhaus para viver e trabalhar em Montevidéu, com uma renda mensal de cem dólares norte-americanos. O site informa ainda sobre como “adotar um artista latino”.

Na NYArts
Sob o título La comida estaba deliciosa, a revista analisa a trajetória e a obra de Sastre. Para a publicação, o artista vive o “divertido” papel de estrela da arte internacional “não como efeito colateral de seu trabalho, mas como sua própria essência”.

Testemunhas de Martín Sastre
Fotoblog de fãs do artista. Traz um clipping dos registros de exposições de Martín Sastre ao redor do mundo e fotografias relacionadas ao universo de suas obras.

Videobrasil On-line 
As participações do artista no Videobrasil, obras incluídas em curadorias ligadas ao Festival e outras ocorrências.