Ensaio André Brasil, 06/2005
Quase nada: o afeto
8762 - Ver também é um movimento.
- Ver supõe apenas uma separação compassada e mensurável; ver é sempre ver à distância, mas deixando a distância devolver-nos aquilo que ela nos tira. [...]
- Ver é perceber imediatamente longe.” (Blanchot)
0964 Um homem caminha. Passo firme, ao longe. Aproxima-se, enquanto a câmera, fixa, o acompanha. Um alagamento forma uma espécie de rio, que cruza a rua por onde ele anda. O zoom digital da câmera torna a cena impressionista, trêmula, rarefeita, dissolvendo a profundidade de campo. Naturalmente, sem qualquer hesitação, o homem começa a atravessar o rio, afundando devagar, até cobrir quase todo o corpo. Ele sai da água, continua a caminhar pela rua e passa pela câmera, sem tomar conhecimento dela. O vídeo termina quando o homem sai de cena. Sem trilha sonora, sem créditos, sem agradecimentos, sem patrocinadores.
9564 Auto-estrada. Paisagem dilatada: a velocidade com que os carros passam contribui para ressaltar o alheamento do homem que caminha. A câmera acompanha o seu movimento lento. A duração da cena faz aumentar, pouco a pouco, a angústia que nos toma. Imerso, alheio à vertigem dos carros, o homem anda pelo acostamento. O trânsito o interessa menos do que um ou outro resíduo que ele colhe minuciosamente pelo asfalto. O vídeo é bruscamente interrompido pela tela preta: o andarilho continua seu rumo.
7692 Encontramos o mesmo homem absorto em seu alheamento. Ele agora está em um cruzamento movimentado do centro da cidade, entre carros, motos e caminhões. Há fumaça, o ar está dilatado pelo calor do asfalto. Um ônibus corta a cena, e ele já não está mais ali.
7439 Noite. Rua vazia, silenciosa. Em um mesmo enquadramento vemos um cavalo parado no asfalto e, um pouco acima dele, por trás da parede de vidro da academia iluminada, um homem solitário caminhando sobre uma esteira de ginástica. O cavalo imóvel, a rua na penumbra, a excessiva transparência da academia. O homem anda rápido sobre a esteira, sem sair do lugar.
3476 Mar branco. A imagem saturada - produzida pela excessiva abertura do diafragma da câmera - rarefaz a paisagem e as pessoas. Elas pescam, jogam e recolhem a rede. Uma cena banal, ligeiramente deslocada: no interstício que se produziu, esse mundo e, ao mesmo tempo, um mundo totalmente outro.
8879 Sombras sobre o muro da casa. Elas deslizam, moduladas pelos faróis dos carros. Imagens em movimento, choques, sobreposições, interrupções: o mundo faz cinema.
0793 Entre uma e outra tela preta, algo passa, atravessa a imagem e continua para além, muito além dela. Esse algo - a vida (alheia, ordinária, indeterminada) - continua, vaza, escapa por todos os lados da imagem. Assim são os “rizomas”, como Marcellvs chama seus vídeos: segmentos de imagem, mundos interrompidos, cortados, extraídos, escavados, arrancados à vida e a ela novamente endereçados.
2418 Para produzir suas imagens, Marcellvs parece se situar ali, em uma zona ambígua, misto de atenção, crença e desprendimento. A contingência da captura desses eventos (ou quase-eventos) é fundamental na produção dos vídeos. Não há, contudo, a ilusão de que basta olhar o mundo para que ele se revele aos nossos olhos: puro, ingênuo, transparente.
Essa espécie de “atenção desatenta” é o que permite o encontro - o afeto (no sentido literal de afetar e ser afetado) - entre o olho e o mundo: encontro distendido pelo tempo, mediado pela câmera, transfigurado pela edição digital (parcimoniosa, na maioria das vezes).
2376 Nada aqui é puro, natural. Apesar da sua aparente crueza, estas são paisagens eletrônicas, acontecimentos mediatizados, mundos que só podem emergir entre: o evento e sua dissolução em pixels e elétrons.
2998 A câmera (olho, cérebro, espírito) espera. Não se trata, contudo, de uma “má esperança”, aquela que aguarda o Mesmo (o que, comodamente, já prevíamos). Mas, sim, de uma esperança aberta ao “inesperado de toda esperança”. Como ainda nos sugere Blanchot, “a esperança é esperança verdadeira pelo fato de pretender dar-nos, no futuro de uma promessa, aquilo que é”.
3470 “Aquilo que é, é a presença.” O evento em sua eventualidade.
0687 Se acreditamos em Bergson, o mundo é um conjunto de imagens que se chocam umas com as outras, que deslizam umas sobre as outras. Diante desse movimento incessante e caótico, podemos intervir de duas maneiras: barrar o movimento, obstruí-lo, adestrá-lo, tornar as imagens do mundo meras repetições das imagens que, desde já, costumamos ter do mundo; ou simplesmente abrir passagens, fissuras, brechas através das quais imagens (outras, diversas, estranhas) possam vazar, nos afetar e continuar seu movimento mundano.
O que deriva da primeira alternativa é um pensamento confortável, que nos oferece o conhecido e o reconhecível; afinal, é sempre ao Mesmo que ele nos conduz. Bem diferente é o pensamento (à deriva) produzido pela potência de movimento das imagens: precário, hesitante, esboçado, “quase” por se fazer e logo já desfeito, ele é uma espécie de “pensamento que ainda não pensa” (Blanchot). Ou como quer Rancière, “um pensamento que se tornou ele próprio estranho a si mesmo: produto idêntico ao não-produto, saber transformado em não-saber, “logos” idêntico a um “pathos”, intenção do inintencional”. Pensamento estético, se é que podemos chamá-lo assim.
0378 Em uma de nossas conversas (gostaríamos que elas fossem mais freqüentes), Marcellvs lembra uma cena de Tarkovsky (“O espelho”): alguém caminha por um campo verde, amplo, imóvel. A câmera fixa o acompanha, dando ao tempo o tempo que ele necessita. Não anseia, não interrompe, não apressa o movimento. A cena dura e quase nada acontece: a não ser o fato de que alguém caminha. Eis que, ao mesmo tempo, intenso e sutil, o vento corta a imagem, fazendo todo o campo se agitar. Um pensamento leve, um estremecimento nos perpassa como um arrepio.
3354 Após a exibição de um de seus trabalhos, refletindo sobre a recepção do público, o artista faz um diagnóstico preciso: “o tempo é político”. Ele se referia à duração distendida de seus vídeos, aos tempos mortos, tempos lentos, que os constituem.
Sim, em vários sentidos, o tempo é político. No caso destes “videorizomas”, principalmente, porque é a duração que nos permite entrever no mundano, no banal, no ordinário, sua potência inaudita, rotineiramente sufocada pela pressa: aquilo que sempre escapa à escuta apressada dos jornalistas; o que o editor, pressionado pelo deadline, deixa de fora; o que o documentarista, preocupado com a pertinência de seu argumento, se recusa a perceber; o que nosso olhar de espectador, sedento por novas e novas imagens, não nos deixa esperar: o acontecimento (ou quase um acontecimento).
Se ele é raro - ao contrário do que nos querem fazer crer os telejornais -, é porque é aliado do tempo, precisa da duração para acontecer (para ser percebido, nos afetar). O tempo é político porque é ele que nos permite, através das imagens, vislumbrar, ou melhor, inventar o acontecimento e os “mundos” precários que se formam em torno dele. É o tempo, portanto, que, aberto à duração, nos possibilita novas partilhas do sensível (Rancière): novos modos de percepção e de visibilidade, reconfigurações do possível e do pensável. Por isso ele é político, e é por isso mesmo que ele é, indissociavelmente, estético.
9643 O homem caminha. Mas a forma como ele aparece e atravessa a imagem é bem distante daquela que costumamos ver nos reality shows, nos telejornais e em certa produção documental - estes que possuem em comum o fato de absorver a vida banal, ordinária, sem, no entanto, conseguir escapar à comodidade do estereótipo: reduzem a estranheza do outro ao Mesmo, ao já reconhecido e esperado.
Aqueles que atravessam os vídeos de Marcellvs nos parecem mais próximos do “homem sem qualidades” (Musil), sem nome ou propriedade. Ser qualquer mantido ali em sua estranha singularidade, impossível de ser capturado pelo clichê, impermeável às categorias “a priori” nas quais costumamos nos proteger (profissão, gênero, classe, nacionalidade...). O ordinário mantido assim em sua “ordinariedade”, em sua pura potência: “o ser mais o poder do ser”, nos diria Blanchot.
7854 “O ser que vem é o ser qualquer” (Agamben). Ser singular, sempre por vir, que não se reduz ao estereótipo que se cria dele, nem, por outro lado, se dissolve indistintamente na massa. Ser qual-quer, mas que não é indiferente: o homem que caminha pela rua e que não hesita ao atravessar o rio; ou aquele que anda pelo acostamento, alheio aos carros, atento aos restos.
“Quodlibet ens”: um qualquer, nos diz Agamben, “contém, desde logo, algo que remete para vontade (“libet”), o ser qual-quer estabelece uma relação original com o desejo”.
8642 Não se capta o acontecimento - esse instante precário em que, mesmo circunstancialmente, uma “verdade” se esboça - meramente por meio da destreza técnica e, tampouco, do virtuosismo formal: mais que uma técnica, indissociável de uma estética, trata-se aqui, antes de tudo, de uma ética das imagens. Muito mais que um instrumento tecnológico, mais ainda que uma ferramenta de linguagem, a câmera torna-se parte de uma maneira de ver, de estar e agir no mundo.
6798 Em meio a um mundo tornado imagem, extrair imagens do clichê em que transformamos o mundo é uma tarefa difícil, mas necessária. É o que nos sugerem estes “videorizomas”, cravados ali nessa fronteira indiscernível entre a ética, a política e a estética.
5558 Observar, perceber, escutar, participar do fluxo do tempo - uma política; moldar, ou melhor, modular o tempo (e daí extrair mundos outros) - uma estética; deixar que o tempo nos atravesse, nos module e nos recrie - uma ética.
9875 Em sucessivos lances de dados, Marcellvs costuma numerar aleatoriamente seus vídeos: 0314, 7077, 5040, 8011, 2004, 3172, 0667. Depois os envia, um a um, para endereços sorteados no catálogo telefônico. Quem recebe, como recebe, qual o fim? Pouco importa. Fundamental é o encontro fortuito, frágil, entre acontecer e não acontecer: o homem ordinário que produziu as imagens; os homens ordinários que, vez ou outra, as habitam; o homem ordinário que recebe as fitas pelo correio. A comunidade que se inventa aí, efemeramente, se liga por fios tênues.
0873 O que deriva destes rizomas é, afinal de contas, isso: fios delicados, quase imperceptíveis. Quase nada: o afeto