Biografia comentada Marcio Harum, 2011
Corpo em Movimento
A limpidez técnica – câmeras fixas e lentas, sem cortes de edição ou efeitos de zoom – do trabalho de Shaun Gladwell examina certas disciplinas esportivas da cultura urbana que ocorrem em ambientes outdoor versus indoor. Há um constante apelo de sentido que reclama a perda e, ao mesmo tempo, clama pela reconquista do espaço público, urbano ou natural, comum à paisagem das cidades de toda ordem.
Performances colaborativas ao vivo são realizadas no lugar exato onde se cruzam a noção de grupos e subculturas, entre o still fotográfico e o play do vídeo. A produção do artista, a rigor, formal, retrata uma única pessoa, num determinado local e em um momento específico de atividade corporal.
Suas obras irrompem as exposições de centros de arte, bienais e galerias ao legitimar institucionalmente o estilo comunitário de vida dos skatistas, bikers e b-boys, previamente circunscrito ao circuito de migração da cena de rua para as páginas de revistas de moda ou videoclipes da MTV.
Dançando na chuva
Em uma perspectiva recente, o vídeo Storm Sequence (2000), de Shaun Gladwell, representa um certo papel histórico: foi o primeiro trabalho instalativo da Austrália a ser leiloado. O fato de um colecionador anônimo ter adquirido a obra em DVD, via Sotheby's – em Melbourne, em 2007 –, transformou-a numa marca indelével da presença do artista, mundo afora, e em ícone do vigor da arte australiana no romper da virada do século.
Uma harmoniosa pintura romântica sobre o shape de um skateboard, com Bondi, a praia de Sydney mais agitada dos verões australianos, ao fundo. Storm Sequence reúne, por lentes respingadas de chuva, os leves movimentos de um corpo que, em equilíbrio de manobras, dança, por entre serenas imagens de mar revolto, céu tempestuoso e o duro asfalto da cidade que surge em meio à visão da praia. Há uma indecifrável similaridade com as imagens de Hélio Oiticica como passista da Mangueira, registradas em super-8 por Ivan Cardoso nos anos 1970 no Rio de Janeiro: corpos que dançam dessincronizadamente debaixo das capas e dos parangolés, ao som de antigos sambas e Rolling Stones.
A obra foi selecionada para a curadoria de Robert Storr Think with the Senses, Feel with the Mind, na 52ª edição da Bienal de Veneza, em 2007.
Sobre duas rodas
Em Busan Triptych: Calligraphy & Slowburn (2006), um homem exercita com graciosidade diversas manobras radicais sobre uma bicicleta BMX dentro de uma sala de exposições. A percepção do antagonismo conforma, à moda oriental, o embate entre aspectos da cultura tradicional (a caligrafia em ambiente museológico) e um expoente específico da subcultura urbana contemporânea (o exímio biker em sua apresentação sobre duas rodas em meio a uma exposição). A ausência de naturalidade do entorno faz com que observemos, sem narrativa estrutural alguma, não a caligrafia na parede, mas sim a nova linguagem do biker solitário que permanece ilhado no estranho contexto, enquanto desenha acrobaticamente seus movimentos no espaço. Nada mais acontece, exceto a ação insistentemente meditativa do gesto antigravidade, que é absolutamente explorado pelo biker ao se mover sobre a bicicleta, com o seu significado elástico, em tempo desacelerado. A rua invade o museu. Uma cópia deste vídeo está depositada no acervo do Videobrasil em São Paulo.
Repetição e meditação: espelho duplo
Erótico sem ser frenético, oscilando entre o silencioso e o áudio de skate art, Double Voyage (2006) é a videoinstalação em dupla projeção comissionada pela curadoria da 27ª Bienal de São Paulo e produzida localmente no mesmo ano. Apresentado sob a forma de um retrato duplo, o trabalho atua como uma investigação sobre indivíduos que forçam seus corpos além dos limites físicos.
Diante do conjunto de edifícios do Parque do Ibirapuera, duplicados por um enorme espelho de parede, exibem-se juntos, lado a lado, a dançarina transexual de pole dance Grace O'Hara, em evoluções constantes de sedução, e o skatista Oggy de Souza, que maneja o skate em manobras radicais, com o auxílio somente do tronco e dos braços.
Tendo a arquitetura de Niemeyer como pano de fundo, a instalação deixa entrever a sensualidade cruel da vida noturna de prazeres, mixada à perversidade urbanística que tanto afeta as relações de pertencimento nos dias atuais – esse duro tema de difícil acesso a todos.