Entrevista Marcelo Rezende
Existe alguma forma de estratégia no seu uso de diferentes linguagens para se chegar a uma espécie de materialização da palavra?
Nunca me senti um artista, um artista visual. Na verdade, eu parto da palavra, da poética, que é um ponto seguro de onde me aventuro para outras linguagens, seja música, poesia ou artes visuais. Sempre o que está em jogo é a brincadeira com a significação poética. Mas essa procura por outras linguagens foi me levando em direção a uma presença física da palavra. Esse processo está também em minha poesia, já tenho nela esse mesmo tratamento material com a linguagem, esse corpo a corpo. Não sou o tipo de autor que faz um verso ou um poema sem rascunhos, de uma só vez. Eu mudo, mexo, subtraio, inverto aordem. Até poder me sentir satisfeito, tenho que externar minha memória de forma a ver materialmente todas as possibilidades.Tenho esse desejo pelo material. O mesmo acontece com a música, vou mudando, gravando, ouvindo e alterando. Não resolvo internamente. Há a busca do essencial nesse corpo a corpo com a linguagem.
A criação localiza-se, então, nesse próprio processo.
Exatamente. Nessas mudanças de linguagem houve sempre a busca por uma materialidade, por uma presença maior da materialidade. Na música, na poesia falada, nas performances, por exemplo, o uso da voz é muito importante, essa execução física da palavra, trazer a palavra para o corpo. Do mesmo modo, o gesto, que está presente na música e na poesia falada. Há também a exploração das variações timbrísticas. No caso das artes visuais, fui primeiro para a caligrafia, que envolve o gesto, o traço que entoa a palavra, o ato do braço e o tremor da mão. Passei então a realizar grandes caligrafias, monotipias que são quase catárticas em seu ato de feitura. O fazer da caligrafia acaba trazendo outras coisas, surge uma palavra durante o processo, o texto vai mudando através dessa entregapara o traço.
Todo o processo se dá sem um plano racional estabelecido?
Sim, mas ele muda, vai mudando. Pode começar a partir de uma frase, de uma melodia, mas o processo é de transformação, e o ponto de chegada já está longe daquela ideia inicial, isso acontece, e acaba sendo mais interessante. Foi assim que das caligrafias cheguei aos objetos que envolvem palavras, placas de metal, instalações que são ambientes também muito táteis. Isso até chegar a objetos que podem prescindir das palavras, como em uma obra em que desloco uma porta de seu uso habitual, que pode girar em 360 graus epassa a ser uma porta sem utilidade prática, mas com uma utilidade poética, porque não é mais usada para ir de um lugar para outro, mas girar em torno de seu eixo.
Esse processo de desvio do contexto, de um uso original, acontece também com a as palavras?
Sim, fazer uso do contexto, desviar o contexto.
Você não se sente satisfeito com o sentido dado pelas palavras?
Há sempre o desejo de querer mais, de abarcar o mundo, procurar uma significação absoluta, o que me leva a essas direções todas em meu trabalho. Na criação, para o uso criativo, a palavra é para mim sempre material, que pode ser olhada de vários ângulos, sertirada de uma função para ser colocada em outra, pode ser quebrada ao meio. No uso criativo é sempre assim, matéria que se aplica a várias situações. Mas ela tem ainda um uso cotidiano, no qual é mais transparente, e no trabalho artístico procuro dar uma opacidade a ela.
Ser um ‘artista da palavra’ não limita seu campo de pesquisa?
Mas eu tenho o desejo de pesquisar os limites da linguagem. Por que isso significa isso e não aquilo? Isso chega até a filosofia da linguagem. Mas, além de usar a linguagem, interessa-me saber qual é o limite da própria linguagem, da nomeação. Isso se liga ao uso dos formatos, perceber até onde a palavra pode ir ao se misturar com a imagem, com o som. Palavra e som podem resultar em algo que não seja canção? Quais os limites da canção, quando ela trabalha com vozes simultâneas?
Um ponto interessante em sua trajetória é desenvolver essas pesquisas, também, na produção de massa, como os CDs, presença na TV e shows. Mesmo antes de sua carreira solo, com os Titãs, colocando o consumidor de massa diante de alguns procedimentos poéticos específicos, como o concretismo, com o qual ele teve quase nenhum (ou nenhum) contato.
Isso também é testar os limites, testar os limites do gosto comum. A canção é uma linguagem que permite isso, ir um pouco além do que as pessoas estão acostumadas em direção a alguma coisa mais estranha. Acredito que as pessoas são muito mais sedentas de novidades do que querem nos fazer crer os veículos de informação. A música popular não precisa ser banal, e em sua história sempre houve a busca pela sofisticação. Pode ser que uma pessoa que conhece minha música se interesse pela minha poesia, ou vá a uma exposição dos meus trabalhos em uma galeria. De certa forma podem se criar laços. Mas termina sendo uma experiência com públicos muito distintos. É um abismo a diferença entre a penetração da música popular e a poesia. Eu sou privilegiado, porque a música dá visibilidade para minha poesia. Ainda é um trânsito muito rarefeito.
Todos esses processos envolvem novas tecnologias de informação. Elas são capazes de alterar a sensibilidade do criador e do público?
Sem dúvida. Hoje, grande parte do meu trabalho se desenvolve a partir de recursos que o computador oferece. Mudou minha maneira de gravar um CD, tudo se monta como um quebra-cabeça. Você passa a incorporar pessoalmente em seu processo de criação esses novos processos. Mas a colagem, a tradição da colagem, é um pensamento que está na modernidade, recompor e reconstruir, e que se aplica na essência na alta tecnologia e na existência contemporânea. O pensamento voltado para a edição passa a ser mais corrente.
Você consegue imaginar todos os caminhos de sua produção se encontrando em algum momento e projeto?
Pode vir a acontecer. Há momentos em que todas as ações andam juntas. A produção é feita de forma paralela; enquanto gravo um CD, posso estar pensando na performance, e acontece, mesmo em uma escala muito pequena, um cruzamento, como o uso da canção em uma performance, ou a performance em um show, ou no vídeo Nome. Talvez um dia tudo possa acontecer em uma escala maior.
E qual a expectativa que você mantém com o público, qual sua relação com eleao propor uma performance, e não um show?
Estranheza, uma relação de estranheza. Mas não tenho uma expectativa precisa com o público, na verdade. Já fiz performances em muitos países, porque tem um trânsito internacional mais intenso do que meu show musical. Existem festivais de performance, poesia,literatura, com propostas mais experimentais. As pessoas têm reações muito diferentes. Nesse caso aproxima-se da canção, porque é capaz de chegar ao público independentementeda língua, da mesma forma que amávamos os Beatles sem saber inglês.