Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, ensinou o filósofo grego Heráclito (544 a. C. – 484 a. C.), mais de dois mil anos atrás. Do outro lado do Atlântico, dezenas de séculos mais tarde, seu homônimo, o artista baiano Ayrson Heráclito, mostra que a fluidez, a transitoriedade e a transformação das coisas do mundo continuam a ser tão desafiadoras quanto férteis para o fomento da reflexão e da criação intelectual.
Esse Heráclito, de Macaúbas, mergulha na história para trazer à tona múltiplas, faiscantes e nem sempre reconhecíveis jóias fundadoras da cultura brasileira. Inspirado pelo amplo leque de elementos que os escravos negros plantaram aqui – do açúcar ao dendê – e concentrado em aspectos, leituras e indagações não-folclorizadas da sobrevivência africana nas Américas, descortina nesgas da compreensão do mundo pelos olhos de quem teve mãos, pés, braços e entranhas dominados.
Dores, temores, solidão, mas também força, glória e fé, tristeza e júbilo, sabedoria e servidão, criatividade e sofrimento dos cativos – fios da desconcertante trama que compõe a gênese do Brasil – são reelaborados e inspiram novas leituras da contemporaneidade na obra do artista. As releituras se apresentam sem que se percam de vista os mitos, medos e marcas que acompanharam o tumultuado surgimento do “afro-brasileiro”, sua trajetória e o contexto econômico, histórico, social e cultural da chegada e “aclimatação” do negro ao território nacional.
Para Heráclito, escravidões contemporâneas como fome, miséria e discriminações dialogam incessantemente com o jugo colonial. Sem amarras lineares, o presente ilumina o passado, que por sua vez enriquece a compreensão do dia-a-dia e ajuda a construir um porvir de mais conhecimento. “Sou da turma utópica”, avisa. “A ação artística estabelece relações estreitas com a política. Mesmo que ela não gere grandes mudanças, pode ser uma estratégia contra as lástimas deste mundo.”
“São excepcionais os casos nos quais as referências da cultura negra aparecem além do exótico e do factual. É precisamente contra isso que Ayrson Heráclito constitui a sua proposta radical, no sentido original de ir até as raízes do assunto”, escreve a curadora Alejandra Muñoz, autora do Ensaio que integra este Dossier. “Nossas reduzidas referências sobre a escravidão são deslocadas da superficialidade cotidiana para uma consciência reflexiva aguda.”
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