Sabemos que estamos num mundo cheio de mediações e que, muitas vezes, conhecemos o outro e as diversas culturas do mundo através dessas mediações. No entanto, nesse processo de relações de poder e de denominação se sobrepõem ao meramente informativo. Com isso, as mediações passam a estabelecer poderosos círculos de denominação que nos fazem algumas vezes criar visões distorcidas da realidade. A percepção da realidade passa a ser uma construção mediada pelos inúmeros instrumentos, técnica e práticas de comunicação, dominação, informação e entretenimento.
O trabalho do colombiano François Bucher que apresentamos desta décima edição do FF>> Dossier é construído justamente nesse complexo emaranhado de circuitos de comunicação que experimentamos hoje. Partindo de imagens que ele próprio grava, e também das imagens vindas da televisão, do cinema e da internet, assim como áudios capturados no rádio ou na rua, Bucher cria seu trabalho de forma reflexiva, uma espécie de “videoensaio”, um modo de operar com as imagens e sons que expõe diversos pontos de vistas.
Essas questões ficam bastante nítidas em instigantes projetos como Televison (an address) (2003-2004), desenvolvido em parceria com o artista Drazen Pantic. Nesse projeto, os artistas fazem da transmissão da televisão uma outra transmissão – uma apropriação subversiva do fluxo de imagens da televisão. Artistas e teóricos são convidados a assistir TV com um microfone em uma mão e o controle remoto na outra. As imagens da TV são captadas por uma câmera e enviadas a espaços públicos, junto com os comentários. A aparente simplicidade do dispositivo desenvolvido por Bucher e Pantic não deixa de revelar a potência subversiva da apropriação do fluxo televisivo, que passa a ser uma forma de crítica ao vivo.
Entre os participantes, Martha Rosler, Keith Sanborn e Thomas Keenan estiveram diante da TV com seus comentários extremamente críticos ante a alucinante programação televisiva.
Essa vertente política e crítica, sobretudo com relação aos meios de comunicação, está presente em quase toda a recente produção artística de Bucher. Como por exemplo no premiado vídeo White balance (2002). Tomando como nome o processo usado pelos produtores de vídeo para balancear as cores ao iniciar as gravações, o vídeo se estrutura como um ensaio sobre as repercussões dos atentados de 11 de setembro em Nova York. As imagens das ruas da cidade, os vendedores ambulantes comercializando fotos e camisetas da tragédia, assim como imagens da televisão, da internet, discursos políticos e áudios dos mais variados, compõem o “videoensaio”, que nos abre diversas possibilidades de interpretação dos fatos reais. O vídeo é intercalado por ruídos da imagem de respiração entre uma imagem e outra, que precisam ser preenchidos pelas nossas possíveis interpretações dos fatos e do próprio vídeo.
Esse ruídos “fora do ar” também estão presentes no vídeo Attaining the body (2003). Mais uma vez o ponto de partida são as transmissões televisivas, mas desta vez localizadas no complexo contexto da guerra do Iraque. Bucher cria um vídeo que utiliza os recursos formais da videoarte para mostrar um fato bastante estranho, a invasão de três emissoras (Al-watan, Ammway e Al-Sharang) durante a ocupação israelense em Ramallah – os soldados ocuparam as emissoras e veicularam vídeos pornográficos.
Intercalando telas vermelhas com textos quase telegráficos, embalados por uma suave música clássica e o típico “fora do ar” da TV em silêncio, Bucher nos mostra como a dominação do espaço simbólico também está nos complexos expedientes da ocupação israelense. Esse vídeo de Bucher mescla videoarte e documentário e nos convida, mais uma vez, à reflexão.
François Bucher nos foi indicado por Marta Lúcia Velez, importante articuladora da arte eletrônica na Colômbia, e o ensaio ficou a cargo de Ana Maria Lozano, artista e teórica colombiana que nos enviou um brilhante texto sobre a obra de Bucher.
É com enorme prazer que mostramos nesta edição a instigante e provocativa obra de François Bucher, ensaios audiovisuais que mostram a força da imagem eletrônica e da arte como ponto de reflexão e resistência em tempos de domínio e globalização.