Texto de apresentação 2005
My Possession - Ingrid Mwangi
Nem lá, nem cá – antes no espaço entre uma coisa e outra – Ingrid Mwangi (Nairóbi, 1975) transita no estranhamento desde que partiu do Quênia natal, aos 15 anos, para viver na Alemanha da mãe. Escura demais na Europa, clara demais na África, tornou-se receptora de percepções e influências dos dois lados, o presente ocidental e as raízes ancestrais. Sua obra utiliza corpo e voz para expressar a personalidade singular que essa experiência moldou. Como em “Song of the Devastation”, libelo de alta voltagem sonora e emocional contra mordaças, estigmas, estereótipos e preconceitos. A artista ingressa num círculo formado pela platéia e, deitada, deixa que seu corpo demonstre como, da destruição, surgem alternativas de luta e resistência. “Trato de identidade negra, de viver em meio à violência, mas também de como criar algo positivo disso”, explica Mwangi. Sua performance no Festival, “My Possession”, deriva de “Devastation”.
Os dois mundos que a alimentam geram as questões propostas ao longo de sua trajetória artística – e o corpo, o único lugar onde eles finalmente podem se encontrar. “Utilizar meu corpo como principal instrumento de expressão não foi opção, mas necessidade. Era o que eu tinha à mão. O começo foi muito difícil, um processo doloroso em que tive de me conhecer, descobrir minha interface com a sociedade, como ela me via e como eram minhas projeções. Meu corpo é a única coisa que realmente me pertence. Posso me cortar, posso me apropriar desse material como me pareça melhor.”
Pés, mãos, pernas, costas, rosto e voz são os elementos cênicos que sua obra ressalta, além dos onipresentes cabelos: dreadlocks que, presos ao teto, convertem-se em gaiolas, tranças que pendem, fios que se juntam como xales. Mwangi assume papéis de colonizador e colonizado, de opressor e oprimido, ironiza noções de claridade e escuridão, pinta na barriga o mapa da Alemanha (que define como um “país queimado”) e o da África (“continente escuro brilhante”), substitui fotos de mulheres numa propaganda nazista por seu próprio rosto, multiplicado ao lado de Hitler. O corpo é meio, mensagem, laboratório, porta de entrada, janela, sensor do mundo.
“Minha matéria-prima são as circunstâncias, as experiências diretas e indiretas que despertam um sentido de urgência, alertam para a necessidade de tratar dos problemas. Viver no exterior me deu a dura noção do meu espaço particular, das diferenças, dos conflitos que podem ser transformados criativamente. Com os anos, o uso de referências pessoais ficou mais difuso na minha obra. Evito ser específica, tento ser mais abstrata, universal. Uso a arte para criar consciências. Quero abrir um fórum de discussão.”
ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil - 'Performance.'": de 6 a 25 de setembro de 2005, p.138 e 139, São Paulo-SP, 2005.