Depoimento 2003

Entrevista


Depoimento de Carlos Magno sobre seu trabalho a partir de perguntas formuladas pelos orgaizadores do 14º Videobrasil


1- Durante o festival estaremos discutindo as questões do deslocamento e dos processos nômades como imagens e ações emblemáticas da situação política e cultural contemporânea. Como você reflete isso no painel da arte eletrônica? Este é um tema de interesse em sua obra?


CM - O impacto das novas tecnologias levou os autores de arte eletrônica a uma maior autonomia, antes tudo era muito caro e dependia de mecenato institucionalizado ou de uma colaboração patronal. Antes, apenas artistas renomados, apadrinhados por instituições ou, patrões e seus

empregados queridos faziam seus devaneios eletrônicos. Isto podia acontecer em meio a orgias fellinianas de final de semana, ou usando as sobras de tempo da última campanha publicitária. Assim os donos da bola sonhavam. O sonho de ser artista era materializado em equipamentos caríssimos que só um rico patronato poderia ter, ilhas solitárias, medidas em ccds, polegadas de fitas magnéticas, e outras jóias como as da hera IBM / Macintosh.

Também havia aqueles que, mais perspicazes, sem dependerem de um aparato tecnológico, se desdobravam como camaleões diante de uma câmera caseira, punham suas „esquizofrenias‰ para fora, sendo sujeito e obra ao mesmo tempo. Outros, também sem dependerem de um aparato tecnológico, buscavam sua sobriedade na subjetividade do ato de gravar o mundo exterior criando realidades pixeladas, onde o sujeito de se consolidava no ato-sentido, ver.

Quando vejo a produção dos anos 80-90, mesmo reconhecendo suas especificidades, impacto sócio-cultural e ainda estando compactuando com os mesmos subsídios, que aqui condeno, sinto um desconforto. Este tempo já foi? Acho que já foi tarde. Hoje, alguém que tenha algo a propor ou criar, basta fazer um esforço e comprar um computador mais uma câmera caseira. E como ficam aqueles que nem dinheiro para comprar comida tem? Ficam passando fome do mesmo jeito, mas em um mundo onde a arte burguesa perdeu mais um flanco. O acesso às novas tecnologias não garante a democratização dos meios, nem a popularização dos olhares transgressores. Estes olhares sempre serão restritos ao meio intelectual burguês. A diferença é que haverá menos barganha, menos mecenatos e mais transgressão. Transgressão para deleite burguês, mas agora ao valor de mil e quinhentos dólares.

Como intelectual desprovido de capital, sou uma exceção, como um vendedor ambulante que se tornou dono de uma emissora de TV, sou um branco pobretão, filho de motorista de ônibus alcoólatra e professora primária, que conseguiu se fazer presente pela ascensão intelectual, milagrosamente ocorrida nas brechas da escola pública. Como autor me fiz valer do seguinte conhecimento, aprendido na escola de arte que estudei: não importa o suporte, mas sim, o conceito que você desenvolve, se este reflete a subjetividade contemporânea, que bom. Digo ao mundo, "ainda estou vivo, desgraçados". Estar presente só não foi mais difícil porque tentando aparecer, mostrar minhas imagens, minhas realidades, tive cooperação dos meus bons amigos que aqui espolio, semioticistas e vídeo-realizadores que conheci e que me ensinaram a insistir no fazer, que amenizaram minhas palavras brutas com contrapontos para que eu não me isolasse totalmente nesse meu ressentimento de classe social. Tento ver o mundo, tento criticá-lo a partir de meu micro universo, minha família. Exercendo minha individualidade, busco uma realidade espelhada em minhas ambições "humoradas".

Graças à atual conjuntura, tenho o privilégio de tornar tais realidades, públicas pelos canais midiáticos e assim somá-las a outros olhares que fluem de diversas partes do mundo, de diversas argumentações intelectuais e emocionais. O acesso aos canais de propagação e discussão das realidades da arte eletrônica como este aqui, possibilita a exposição de minha ambição atual, propor olhares críticos sobre a realidade sócio-política. Sendo eu, militante de uma resistência anticolonial, antiburguesa, ao mesmo tempo sou vulnerável à proposição transgressora e aos meus próprios equívocos racionalistas e reacionários.

Acredito que devemos falar mesmo que na manhã seguinte não concordemos mais com o que havíamos dito neste evento posso fazê-lo. Ainda bem.


2 - A relação entre arte e política é ao mesmo tempo rica e conflituosa. Como você percebe esta relação no caso específico do seu trabalho?


CM - Desde "targa-stalke" (vídeo selecionado para a competitiva do 13º VIDEOBRASIL) venho assumindo um posicionamento militante a favor da realização romântica e contra o imperialismo, concluo com um clichê, o clichê da realização caseira como proposta revolucionária, a tela é quebrada e em meio a um discurso do Fidel Castro, meu filho dá tapas na câmera e fala "viva os Panteras Negras!", na época ele tinha quatro anos.

Em "Imprescindívei" (vídeo presente na competitiva atual), desenvolvendo uma proposta de realização caseira, manipulo meu filho. Ainda em seus quatro anos de idade, imponho meus heróis (Zapata, Comandante Marcos, Carlos Prestes, Lamarca e Marighela) e suas ideologias implícitas, ele fazendo resistência evoca os nomes dos seus heróis (Jaspion, Batman e Robin). Assim me exponho, como sujeito manipulador, um pai imprudente que tenta adestrar seu filho, deixando-o exposto à violência simbólica existente na mídia.

"Imprescindívei" é o perverso desdobramento de "targa-stalke" e com ele tento provocar os atentos à manipulação ideológica, tento provocar uma tensão entre arte e política. Às vezes, após a exibição de "Imprescindívei", me vejo por parte dos espectadores, cercado de questionamentos éticos e morais a respeito de minha vida pessoal, minha conduta enquanto pai. Eu queria provocar um desconforto, pus uma arma na mão de meu filho, propositalmente tentei manipulá-lo à maneira behaviorista, era um momento impar de nossa relação, uma farsa. Que algumas pessoas se deixam enganar. Fazia uma ficção como alguém que faz um filme sobre fantasmas que aterrorizam um garotinho. É impressionante a dificuldade das pessoa em abstraírem. Talvez seja esta a eficácia de "Imprescindívei", talvez importe mais os sujeitos contidos ali e não minha intenção de constituir uma farsa onde a tensão ideológica e a manipulação ideológica sejam o objeto de estudo.


3. As tecnologias da imagem e da informação participam de estratégias de controle e vigilância, sutis (ou não) e generalizadas. Diante desta realidade, qual seria , a seu ver, o papel da arte em contextos midiáticos?


CM - Vivemos um momento onde o deslocamento geográfico assim como o midiático ocorre com uma facilidade jamais compartilhada em outras épocas, o homem sempre buscou o conforto individual e este é o erro. Saímos da caverna, inventamos mundos de coisas para o nosso conforto, mas quase sempre buscamos para nossa individualidade e não para o bem comum. Problemas como a manipulação ideológica e a incomunicabilidade reforçam nosso etnocentrismo e muitos outros males. A incomunicabilidade se dá também pelo monopólio dos canais de comunicação mundial, pois trabalha sempre em uma única via. Quando o canal de comunicação se força em falar sobre o estrangeiro, este esforço se anula com a difusão dos modelos estereotipados do mesmo estrangeiro. Peguemos o Mito da Torre de Babel, antes todos falavam uma única língua, então o homem se ergueu pelo seu raciocínio lógico e pelo seu orgulho, tentou igualar-se a seu ideal, um ideal não terreno, divino, perfeito, perfeito em si, em sua vaidade. Aí, veio a punição, tudo caiu por terra e cada homem passou a falar uma língua diferente. Resumindo, o mito citado trata da "incomunicabilidade". Como negar a incomunicabilidade? Como negar o mito de Babel? Fazendo arte, fazendo qualquer tipo de proposição estética. Pois só a arte comunica o incomunicável, por isto a arte está tão presente em manifestações religiosas. No exercício da arte vemos poéticas de devaneios, coisas boas como amor, a superação de conflitos, produtos sintomáticos de realidades vividas em diferentes geografias. Também outras coincidências interculturais aparecem na arte, perturbações, pesadelos. Por isto há uma coincidência temática no devanear e no aterrorizar, conseqüentemente deflagram-se realidades estéticas semelhantes em vídeos de diferentes autores de diferentes nacionalidades. Um pouco destas realidades me comunicam algum desconforto, alguma vivência, alguma poética. Existe poética na ilustração do controle e vigilância de circuitos internos de tv? Existe poética na ilustração do mito da conspiração internacional, no monitoramento on-line da CIA ou de quem quer que seja? Existem, são males comuns a boa parte dos viventes, das baleias monitoradas em suas rotas de migrações a pessoas que fazem compras com cartões de crédito. Isto tudo pode se consubstanciar em propostas estéticas que apontam o tormento ou conforto de viver sob esta realidade, mas não vejo na arte a necessidade de uma militância em produzir algo que esteja relacionado a esta realidade. Não defendo militância alguma, posso exercer o papel de militante a alguma causa, mas não prego o engajamento obrigatório, nem receitas de bolo.

É também sabido que o fluxo de informação influencia a produção cultural mundial. Em algum lugar tem-se a publicação de uma novidade ou fato comovente e logo ocorre uma reação produtiva com base temática. Estar ligado a uma rede de difusão de assuntos, leva muitos indivíduos a uma reação produtiva, em escalas diferentes, alinhados ideologicamente, economicamente, etnicamente, ou por qualquer outra questão subjetiva, os indivíduos vão reagindo aos estímulos. Acontecem coincidências de produção, em diferentes localidades, em diferentes facções das populações. Ao final temos um autor o dono da idéia, que foi aquele que conseguiu tornar público primeiro uma boa resposta para o estimulo, novidade ou fato comovente. Para tornar algo público demanda, espaço, canais midiáticos, muito dinheiro, por isto muitas vezes os canais de difusão se dão em vias monodirecionadas, A difusão se dá pelo poder e reforça o poder. Estaria a Internet quebrando esta realidade? Acho que não, a mídia industrializada continua dominando e impondo seus modelos. Seria o tormento do controle e da vigilância vivenciada enquanto proposta estética, o fruto da dominação cultural exercida pelos donos da mídia industrializada? Ou o afloramento espontâneo de um tormento vivenciado nas vias da arte eletrônica? Acho que ambos, um não anula o outro apenas reforça o sentido contextual do produto artístico criado.


4. No contexto sócio-político e cultural contemporâneo, as identidades locais se reconfiguram em tensão com os fluxos globais. Inserida neste processo, a arte eletrônica participa como um campo aberto à experimentação e expressão de novas formas de subjetividade. Como essas questões se manifestam em seu trabalho?


CM - A utilização da câmera e do computador é para mim um maravilhoso meio para a expressão de novas formas de subjetividade, uso-os para falar de mim mesmo e ao falar de mim mesmo esbarro em ícones locais como Luiz Carlos Preste e Lamarca e ícones da cultura popular universal como Zapata, Comandante Marcos e Batman. Naturalmente me faço pela existência de meus produtos artísticos, meus vídeos, o que amo ou odeio estão presentes neles hoje me atenho a conflitos como a manipulação e a perversidade que nos reserva muita subjetividade e assim chegam em outras pessoas tencionadas pela atual conjuntura.


5 - Atualmente, verifica-se nas culturas locais o desafio de reinventar as memórias pessoais e coletivas, sem deixar que elas se esvaziem frente aos fluxos de comunicação global. A seu ver, como este desafio se traduz nas experiências da artemídia?


CM - O homem em um primeiro, inventa algo visando sua aplicação funcional, em um segundo momento o momento de sua popularização, tal invenção chega às mãos de mais pessoas que entre as quais, autores iniciam sua humanização, produzindo com poética. Quando alguém tenta reinventar memórias pessoais e coletivas, este alguém está se esforçando para criar uma nova realidade espelhada em sua individualidade. O acesso a um novo meio de produção possibilita a emersão de novas propostas poéticas, que já existiam em outros suportes. Se não fosse em vídeo seria um álbum de família com fotos legendadas ou em um diário pessoal, ou em uma pasta de textos digitados. O homem usa os meios, às vezes quer tornar público às vezes não. Sempre quando se barateia um meio de produção aumentam-se as chances de mais pessoas falarem sobre seu próprio mundo, sua própria subjetividade. Somos tantos, somos tão redundantes, sempre contamos a mesma estória na história na nossa história.


6 - No contexto de abordagem dos meios eletrônicos-digitais , interessa-lhe as questões do corpo? Como o corpo aparece em sua obra?


CM - Às vezes me deparo com realidades criadas por terceiros onde, como já havia dito, pessoas aparecem como camaleões diante de uma câmera caseira, exteriorizando suas esquizofrenia. Este procedimento leva a uma fusão do sujeito e obra. Aprecio poucos trabalhos deste tipo. Acredito que a eficácia dos mesmos ocorrerá com a identificação dos apreciadores. Só há eficácia se há identificação ou a repulsa. Se formos apáticos a uma proposta estética esta inexiste para nós. Se me identifico com uma dessas „esquizofrenias‰ ela vai para minha prateleira de trabalhos apreciáveis. Se não me identifico inexiste. Em meus vídeos quero meus parentes queridos, meus amigos. Quero vê-los e que estes se revelem em sua totalidade apenas no meu íntimo. Para os espectadores serão pessoas gravadas em situações familiares naturalistas, apresentadas e articuladas por processos intelectuais como parte integrante de uma realidade reinventada que fiz e que quis mostrar ao mundo. O mesmo processo poderá acontecer estas minhas imagens, meus sujeitos, aí não sou mais dono delas, elas poderão ir para a prateleira ou para o lixo.

Associação Cultural Videobrasil

Texto crítico André Brasil

Vídeos sobre interiores

Hoje e cada vez mais, os recursos próprios do vídeo digital permitem a disseminação de um tipo de produção caseira, que lembra, em certa medida, a dos escritores. A despeito de certo deslumbre com a técnica, que se mantém na maioria dos vídeos, essa que estamos chamando uma poética da domus continua a ser o traço de algumas obras que não se rendem à pirotecnia visual ou à pura auto-referência, tais que, apesar da imensa oferta de efeitos especiais oferecida pelas ilhas de edição, constroem-se através de imagens simples e despojadas, banais, domésticas. E por isso mesmo, apontam para uma singularidade expressiva rara e utilizam a técnica sem se deixar determinar por ela. A casa, o quarto, o quintal. Em “Cerrar a porta” (2001), Pablo Lobato volta à casa no interior, pouco antes da morte do avô. Um poema lido com a fala embargada. Aqui novamente a voz, sumindo, como uma despedida. Entre imagens de um cotidiano esboçado, residual, o pedido do avô para cerrar a porta e a leitura inesperada de um poema. Como que tomado pelo acontecimento, Pablo corre pelo quintal da casa, entre as árvores. A respiração ofegante, imagens manchadas.. A corrida termina quando ele colhe uma jabuticaba e prova a fruta. Nessa obra, a casa é o local de produção (os vídeos do autor são caseiros, no melhor sentido do termo, feitos em casa, numa elaboração quase artesanal), o lugar onde a memória emerge e o tema: o quarto, que abriga a leitura do poema pelo avô; a porta cerrada; o quintal. Por fim, estamos vendo as imagens, mas, principalmente, ouvindo a respiração e provando com o neto o sabor da fruta (a boca está mais perto da memória do que os olhos?). Os sons timbram-se segundo o acre-doce, o fumado, a sensaboria do feijão fervido, a vinhaça acre, o fermento das palhas quentes. Os timbres comem-se. Os sentidos menores eram honrados, na domus física. (Lyotard, 1989, p. 194) Vídeos curtos, ruidosos, também residuais, que oscilam entre a ironia, o lirismo e um discurso político furioso: são assim as dez obras de Carlos Magno de Oliveira, reunidas na série Vídeos de Escutar (1995 a 1999). Vídeos de temas difusos, compostos de fragmentos de histórias, restos de filmes gravados diretamente em vhs, sobras de imagem de amigos e diálogos esboçados. Todos ganham um tratamento quase monocromático, o que ressalta ainda mais sua precariedade material e garante uma certa identidade entre eles. Em alguns, os letreiros aparecem no rótulo de um vinil que gira, iniciando o vídeo. Os personagens aparecem repetindo gestos, ensimesmados, entre a perplexidade e a ação, sozinhos em silêncio ou em grupo, em meio a conversas captadas espontaneamente. Ao fundo uma música, também repetitiva, atravessada por vozes maquínicas (“eu não sou uma pessoa caridosa, mas existem pessoas caridosas”). Textos pontuam os diálogos fragmentários (“estou inabitável/ mesmo assim/ um inseto entrou em meu ouvido/ hoje eu acordei errado”, ou “você me percebe tão somente agora/ despossuído de tudo/ o que é demasiado/ todo dia você vai me ver passar/ mastigando cacos de vidro/caminhe por rios de água fria/ admirável”) . As imagens captadas de improviso ou mesmo em “segunda mão” são re-articuladas numa escritura pessoal, que produz sentido através de rasuras e de ranhuras entre uma e outra imagem. Em “Contra vocês: um vídeo sobre interiores”, alguém anda no quintal em direção a uma casa. Quando entra, o corte nos oferece imagens de vísceras que vão sendo demoradamente remexidas por uma pinça. Cada um dos vídeos, curtos e construídos a partir de poucas imagens, apresenta uma forma de narrativa singular, um novo agenciamento discursivo, bastante pessoal, que produz sentido através de cortes bruscos entre restos de imagem. O tom pessoal das obras funde-se a um discurso político, marcado por certo lirismo. O tema da guerrilha, por exemplo, é recorrente, de forma mais ou menos direta. Vídeo recente de Carlos Magno, “Imprescindíveis” (2002) revê esta “contaminação” entre subjetividade que se abriga e se expressa na domus e a micropolítica. O pai (no caso, o próprio Carlos Magno) brinca com o filho, fantasiado de zapatista. Em determinado momento do vídeo, a criança passa a manipular uma arma de brinquedo, mas bastante semelhante a uma “bereta” de verdade. A imagem nos remete àquelas, cada vez mais comuns, de pequenos guerrilheiros que, ao invés de brinquedos, lidam com armas. Como nos lembra sub-comandante Marcos, em um comunicado de 2 de maio de 95, divulgado na internet: Os filhos dos zapatistas, donos de nada além da sua dignidade, passam o dia brincando de serem soldados para recuperar as terras que o governo lhes tomou, brincam de semear milho, de procurar lenha, de ficar doentes sem ter ninguém para curá-los, brincam de ficar com fome e, em vez de comida, enchem a boca de canções. (Marcos, 1998, p.106). A “brincadeira” continua no vídeo e o pai pede ao filho que diga para a câmera nomes de heróis revolucionários (Marcos, Lamarca, Guevara...). Ele, no entanto, insiste em desconcertá-lo e repetir “meu nome é Jaspion” ou “meu nome é Batman”...ao fim, recita, meio que displicente, um conhecido poema de Bretch. Toda a (im)possibilidade da política se condensa ali, numa situação banal, doméstica, mas que, ressaltada no vídeo, torna-se emblemática.

BRASIL, André. “Vídeos sobre interiores“. In: Casa, letra, corpo, voz: vídeo-escrituras domésticas, p. 6. Disponível em: www.bocc.ubi.pt.

Ensaio Carlosmagno Rodrigues, 2006

DIANTE DO ABISMO DOS SEUS OLHOS


Sempre serei sua inimiga, sou filha do medo e de suas agressões, você pode me condenar pode até me matar mas não pode ,me julgar, para fraseando apocalypse now são estas as meias verdades que eu vi,

"como uma bala de diamante",

"uma pilha de braços vacinados".

"Eu queria chorar, eu não queria viver".


Existirá algo além do abismo dos seus olhos?


Quero ganhar um vidro de maionese vazio e colocar todos os meus sonhos

Quero deitar em um lençol branco e sentir cheiro de limão.

O vento balança a margaridinha, o sol clareia a face e ela nem tem olhinhos para evitá-lo de brincadeira.


Em Matrix Revolution não existe revolução e sim manutenção do sistema, a figura do hacker como um revolucionário messiânico expressa a incapacidade dos ideólogos criarem uma figura política a partir de fundamentos democráticos, lá não existe socialismo nem democracia, o poder é institucionalizado por alguém que desde o seu nascimento estava predestinado a propagar o mito da luta pela liberdade, de maneira hierárquica, óbvia e patética como toda a realidade americana, não sou antiamericano, só tenho pavor de mau gosto.

Embora sonhe com o total...

Agora eu esqueci...


Embora sonhe com o total aniquilamento dos países imperialistas temo o holocausto nuclear. Acho que ao menor sinal de confronto nuclear, aqui como em todo o território do sul estaríamos banidos de nossas vidas, seriamos exterminados, viraríamos adubo para soja e trigo e só haveria uma zona de segurança, determinada pela pressão de botas sobre nossos corpos em putrefação.


Como ser livre se criamos Deus? Como ser livre se criamos continuidades? Gradativamente pela interação o nosso medo e substituído pelo estabilidade aterradora do poder religioso, pela manutenção do direito à propriedade - pela acumulação desigual de alimentos - pelos limites entre o pensamento reflexivo e a solidão.


Serão estas meias verdades, será este um pretexto, uma justificativa aos exercícios de embelezamento do mundo?


Imposição é perversidade, toda a crueldade da humanidade é falseada de amor.


“A nós nos resta chorar o que se anuncia é que o ser humano é finito e que alcançando o ápice de toda a palavra possível, não é ao coração de se mesmo que ele ou ela chega mas às margens do que se limita, nesta região onde ronda a morte, onde o pensamento se extingue, onde a promessa de origem recua indefinidamente... Onde colocamos as finitudes e as atenções hoje em dia? São estas as grandes dúvidas que sempre temos, e retorna o sentimento que de observação que é puro sentimento de linguagem. E ficamos nesta região indefinida, incapazes de observarmos o mundo absolutamente lotado de referências.” *


*Christine Mello

Texto enviado pelo artista

Ensaio Cezar Migliorin

Carlos Magno: do privado para o político



As presenças da casa, do filho e dele próprio poderiam nos levar a crer que Carlos Magno (na foto ao lado, em Kalashnikov) é um documentarista do cotidiano, um artista do íntimo ou de filmes que se fazem como diários filmados. Entretanto, não é na exposição do privado que estas obras se

sustentam: apesar deste privado ser a porta de entrada (ou de saída) para um universo, este tem a história, a política e eventualmente a mídia em primeiro plano. A casa, misturada às novas tecnologias digitais, arquivos de textos e discursos históricos, grafismos, cultura pop, música techno,

história da arte, etc, faz com que as fronteiras entre o privado e o público se tornem bastante incertas. Os vídeos de Magno apresentam este privado explicitamente conectado com o público; o privado não tem em seus filmes nenhuma homogeneidade, é um espaço combinatório. Entretanto, não é um lugar qualquer. A câmera que freqüenta o big-brother e a agência do banco não freqüenta a minha casa.


Os vídeos assinados por Carlos Magno são marcados por uma necessidade: a impossibilidade de não fazê-los. Esta necessidade, essa urgência, já começa nos vídeos feitos em meados dos anos 90, ainda em VHS, e parece se acentuar com o passar do tempo. Do ano 2000 para cá, seus trabalhos acompanham o crescimento de seu filho, Bruno, percebendo que é a própria relação de pai e filho que se constrói através da produção destas imagens (e, como em outras famílias, a relação passa por uma bola de futebol). A necessidade destes trabalhos passa por esta relação.


O filho de Magno, como ele mesmo diz („Papai, liga a câmera que eu vou fazer performance‰), é um performer que não deixa de ser filho, que atua e interpela o diretor e o pai. Estas duas instâncias não se separam, o que traz para a presença de Bruno (nas fotos abaixo, em três momentos: Imprescindíveis; Kalashnikov; Anticristo) uma suspensão das garantias que o espectador poderia ter em relação a como entender os movimentos que acontecem ali. Quem demanda quem? É o pai que transforma o filho em performer? Sim, mas é também o filho que transforma o pai em realizador, trazendo o acaso e o texto para as imagens. O espectador se encontra nestes limites percebendo as performances e ao mesmo tempo as variáveis distâncias entre pai e filho, entre os poderes, opressões, violências e amores que esta relação comporta.


É desta dupla paixão que os filmes são feitos: invenção do mundo privado (de um filho e de um pai) e invenção de um mundo novo, que passa pelo privado. Transforme a tí próprio que transformarás o mundo? Não! A invenção de mundo de Magno, tanto do privado quanto do coletivo, passa por uma escritura das imagens, por uma complexa articulação entre imagens, sons e textos. Estamos definitivamente distantes aqui de uma verdade, seja do mundo, seja do privado, que apareça nua, como testemunho da realidade. O estranhamento e a riqueza estão em algo tão próprio ao cinema: o entrelaçamento entre o registro maquínico, sobretudo quando este registro compartilha a intimidade e a realidade

cotidiana, e uma poética combinatória que é produtora de dessemelhança entre a realidade e a imagem.


É nesta dupla potência que os filmes de Magno se constroem. Suas imagens são ao mesmo tempo afetadas pelo mundo filmado

ˆ o filho que não responde à demanda do pai, o co-realizador que pede para parar de filmar, a mãe que fala em off enquanto ele filma o filho, a gagueira de Bruno ao ler a palavra „inconstitucional‰ ˆ e afetadas por uma escritura que vem acrescentar poesia ao silêncio das imagens nuas,

perturbar seus sentidos, fazer-lhes combinar com outros sons e imagens perturbando esse silêncio, tornando, através da imagem, o mundo ora excessivo de sentidos, ora mergulhado no nonsense.


O procedimento clássico da montagem no cinema narrativo de ficção é a construção de um contínuo onde só há descontinuidade ˆ é assim que se faz um raccord. Mas, esta continuidade é preparada na captação e, uma vez estabelecida a relação contínua entre dois planos, a memória da

descontinuidade original se perde. É o que nos acostumamos a chamar de montagem transparente, uma montagem sem memória da descontinuidade. Já nos trabalhos de Carlos Magno essa continuidade no descontínuo aparece de maneira distinta.


Em Andrômeda (2005), por exemplo, um close de seu filho em contra-plongée (de cima para baixo) aparece diversas vezes intercalando uma narrativa construída com imagens oníricas e textos que parecem narrar um filme. A imagem do filho é colorida, e nitidamente descontínua em relação às imagens em preto e branco que a sucedem. Entretanto, este artifício de montagem, utilizado com muita freqüência, nos dá a impressão

de que as imagens narradas são vistas ou imaginadas pela criança. O que era separado e descontínuo é atravessado por uma composição que os une sem que com isso se abandone a natureza heterogênea das imagens. Em Anticristo (2006, foto abaixo) é a imagem de dois ratos que reagem aos sons do filme, provocando o mesmo efeito. Este tipo de composição tem a força de revelar os fios que unem os objetos do mundo,

as pessoas e as coisas, ao mesmo tempo em que faz aparecer a fragilidade destas conexões.


A montagem, nesse sentido, não se constitui como oposição de dois elementos, onde um deles se sobressairá, nem como fusão dialética em que um terceiro elemento (uma síntese) será atingido. O sentido da montagem aqui é de criar um comum, uma linha entre sons, textos e imagens que tenha uma dupla função: a manutenção da potência paratáxica de cada elemento, ou seja, a manutenção do isolamento e a possibilidade de esses elementos manterem a abertura para novas e outras conexões; e a ligação que retira cada elemento de seu isolamento e o coloca em relação, criando um comum ˆ por vezes frágil ou fugidio, mas que produz passagens entre elementos. O que chamei de uma memória da

descontinuidade nos filmes de Carlos Magno é justamente essa abertura para o múltiplo das imagens. Ao mesmo tempo em que uma conexão é feita e um contínuo se constitui, essa memória paratáxica mantém aberta uma infinitude de conexões. O lugar do espectador é justamente lidar com o sentido que o filme faz ver na criação de um contínuo e nos sentidos que se abrem na criação deste contínuo ˆ uma vez que todos os

outros não foram criados.


Em Anticristo ˆ co-dirigido por Dellani Lima ˆ ouvimos um grande discurso de um dirigente chileno do MIR (Movimento Revolucionário de Esquerda); em Imprescindíveis (2003), Carlos Magno pede ao filho que repita nomes de lideres revolucionários históricos, Marighela, Zapata, Comandante Marcos; em Todo católico é punk (2003) é um peruano que faz um discurso pró-zapatista que termina com a palavra de

ordem: „Viva a revolução!‰. Os exemplos se sucedem: o realizador parece ter grande crença nos discursos revolucionários que apresenta, mas a sua escritura faz com que estes discursos se percam e escapem de quem os pronuncia e os valoriza.


A forma como os discursos revolucionários se perdem não é irônica nem paródia, eles são rearticulados com o contemporâneo e reaparecem aqui em pequenos ambientes, ditos de maneira às vezes mecânica, ou conectados a imagens com as quais não conseguimos fazer ligações claras. São discursos de massa que reaparecem em uma certa solidão ou com extrema dificuldade de se impor, de recuperar um sentido. Magno está consciente que estes discursos já estão esvaziados e que, se proferidos distantes de uma práxis, são apenas palavras jogadas no ar que evocam uma época. A operação aqui se torna então não a de recuperar o texto de esquerda revolucionária como princípio político, mas de fazer pontes entre esse discurso e os lugares e pessoas onde este devir revolucionário possa ainda operar.


Sem medo dos arquivos, Magno evita dois procedimentos correntes no audiovisual quando do uso destes: o primeiro, mais clássico, entende o arquivo com uma prova de verdade e o utiliza de modo sacralizado, como uma imagem nua, uma imagem que garante a relação de verdade entre o evento e o discurso que sobre ele se faz hoje. Neste caso, a imagem não se apresenta como arte, mas como um testemunho. O segundo

faz o sentido contrário ao dizer que o arquivo não pode nada, que ele nada revela sobre o passado e que o passado se apresenta como um irrepresentável. Neste caso, o arquivo aparece como imagem estetizante da obra ou fragmento isolado do acontecimento e da história.


Uma utilização do arquivo faz da montagem, da colocação em relação do passado com o presente, um puro encontro de heterogêneos sem troca, outro que faz desses encontros uma versão consensual, onde os arquivos se dão como explicação acabada do presente. Penso então em uma poética do arquivo. Esta poética do arquivo recupera textos, imagens e nomes históricos e os conecta com novos eventos e outras imagens,

sem pretender a totalidade do evento primeiro. O arquivo não é uma parada em um momento histórico, mas uma abertura para suas qualidades combinatórias, criativas ˆ da história e das imagens. Como se os eventos não pudessem ser jogados fora, devendo-se guardar a virtualidade de algo que foi no passado, uma virtualidade do discurso, uma força criadora que surge dos próprios homens e que corre o risco de ser apagada como um todo. Guarda-se a potência de transformação do presente do acontecimento que transborda o tempo em que foi produzido.


O agenciamento dessas imagens, nesse cinema, se faz político menos porque faz reverência a uma ideologia anti-imperialista da esquerda revolucionária, do que pela ,forma como procura os devires possíveis nestes discursos ˆ e é com o filho, nas tensões e trocas do privado, que esses devires revolucionários acontecem. Se as identidades desses discursos estavam dadas, aqui elas se perdem sem reivindicar uma nova identidade. Trata-se de uma operação de desidentificação construídas pelo cineasta, que passa pelo privado e que permite a formação de novas formas de se fazer a história (pessoal e coletiva).