Depoimento Coco Fusco, 06/2005
DEPOIMENTO DA ARTISTA COCO FUSCO
Sou atraída por modos de fazer arte que envolvem a performance, da arte corporal ao teatro, de ações ao vivo nas ruas a discursos em público, devido ao meu interesse em elucidar a complexa dinâmica psicossocial dos encontros entre pessoas de diferentes culturas no mundo real. Mesmo quando trabalho com vídeo, tenho uma forte consciência do encontro com a tela da televisão em si e do contexto social dessa experiência de mídia. Sendo assim, por exemplo, minha vídeo-instalação "Dolores from 10 to 10" [Dolores das 10 às 10] é uma simulação de um circuito fechado de televisão, portanto as platéias que assistem a esse “filme” de vigilância simulado não só lidam com as implicações das imagens, mas também do local onde elas são exibidas.
Por mais de quinze anos, explorei a influência da dinâmica intercultural sobre a construção do eu e dos conceitos de alteridade cultural. Criei obras que enfocam o turismo como canal central de intercâmbio entre as Américas do Norte e do Sul; criei obras que discutem como o próprio conceito ocidental do “primitivo”, surgido no Iluminismo, influencia não somente a antropologia, mas também o modernismo e pós-modernismo euro-americanos e a cibercultura contemporânea. Grande parte da minha obra e de meus textos trata da política de identidade cultural cubana e dos modos e motivos para estudar as experiências de migração e diáspora. Mais recentemente, venho estudando os efeitos da globalização sobre os conceitos de identidade cultural e de se pertencer a uma determinada cultura.
Desde meados da década de 1990, estudo as conseqüências daquilo a que muitos sociólogos chamam “feminização do trabalho” na economia global. Isto é, tento criar obras que lidam com o estereótipo de passividade e docilidade das mulheres latinas e sua utilização para justificar a exploração dessas mulheres como mão-de-obra barata em zonas de processamento de exportações (EPZ’s – Export Processing Zones), bem como na indústria de serviços, principalmente na fronteira EUA/México. Em "The Incredible Disappearing Woman" [A Incrível mulher que desaparece], uma performance multimídia recente, discuto como o aviltamento político e econômico ocorrido no “Sul do Globo” é convertido em entretenimento pela cultura de mídia contemporânea, que lucra com a excitação gerada pela violência. Em meu último vídeo, "a/k/a Mrs. George Gilbert" [Também Conhecida por Sra. George Gilbert] , prossigo com minha análise do imaginário racial. Combino materiais fictícios e documentais para refletir sobre o uso de vigilância eletrônica contra Angela Davis, de 1969 a 1972, em operações secretas do FBI, em situação muito semelhante aos atuais esforços da polícia americana para criminalizar a divergência, inspirados no "Patriot Act" [‘Lei Patriótica’, conjunto de leis antiterroristas adotado depois do 11 de Setembro].
Meu novo trabalho caracteriza os cenários militares contemporâneos como encontros interculturais. Estudo em particular as prisões e os centros de detenção comandados pelo exército dos EUA, últimos “teatros do combate” na era da ‘InfoGuerra’. Fui motivada a pensar no tema pelas discussões correntes na mídia mundial sobre as tentativas do governo dos EUA de reescrever as leis internacionais relativas à tortura e, ao fazê-lo, redefinir os parâmetros dos direitos humanos. Os textos do filósofo italiano Giorgio Agamben sobre a condição do Homo Sacer (homem sacro) me ajudaram a entender as implicações dessas que, para mim, são formas profundamente perturbadoras de desumanização. Analisando conceitos filosóficos da Grécia Antiga sobre o sentido da vida, Agamben ressalta que a vida política era considerada uma categoria separada do simples fato de viver, que ele denomina “vida nua”. Para Agamben, “Na política ocidental, a vida nua tem o privilégio peculiar de ser aquilo cuja exclusão funda a cidade dos homens”.(1) Em seguida, ele explica que a política do estado político moderno se transforma em biopolítica, a gestão da existência física por meio de tecnologias que disciplinam corpos e os destroem em massa.
A vida do homo sacer (homem sacro), que pode ser morto sem ser sacrificado, e cuja função essencial na política moderna pretendemos definir. Uma figura obscura da lei romana arcaica, na qual a vida humana é incluída na ordem jurídica ( ordinamento) apenas na forma de sua exclusão (isto é, de sua capacidade de ser morta), fornecendo, assim, a chave com a qual não só os textos sagrados da soberania, mas também os próprios códigos do poder político revelarão seus mistérios.(2)
As histórias das torturas ocorridas nessas prisões geralmente se concentram no extremo abuso físico e em formas de degradação específicas a cada cultura. No entanto, há também diversas atividades humilhantes de rotina que os soldados dos EUA forçam os prisioneiros a realizar, com o intuito de desmoralizá-los. Algumas dessas atividades são executadas diante de câmeras, ao passo que outras funcionam apenas como performances ao vivo dentro da prisão, que dramatizam a subserviência do prisioneiro, para que seja vista por outros prisioneiros e pelas autoridades militares. Nesses espetáculos grotescos, as exigências do poder soberano são reordenadas, bem como as expressões de desejo e contentamento dos prisioneiros. Sob esse aspecto, eles podem ser entendidos como versões contemporâneas das cenas de repressão que a crítica literária Saidiya Hartman analisou tão bem com relação à escravidão nos EUA. Hartman descreve como negros escravizados eram forçados a cantar, dançar e fingir que se divertiam a caminho dos leilões de escravos. Ela relata que essas performances combinavam a “festividade forçada do comércio escravo” com “recreações instrumentais dos administradores de plantações [...] em um exemplo do uso do corpo como um instrumento contra o eu”.(3)
Ao tornar públicas as performances forçadas que as autoridades norte-americanas tentaram esconder de forma sistemática, pretendo provocar reflexões não somente sobre as implicações desse “estado de exceção” como parte da vida política contemporânea, mas também sobre o papel do público mundial enquanto testemunha.
(1) Agamben, Giorgio. Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life, trad. Daniel Heller- Roazen. Stanford: Stanford University Press, 1998, p. 5.
(2 )Ibid, p. 8.
(3) Hartman, Saidiya. Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America. Oxford: Oxford University Press, 1997.
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Ensaio 2005
"Norte : Sur_ Roteiro de performance para rádio" - de Coco Fusco e Guillermo Gómez-Peña Norte : Sur Roteiro de performance para rádio (Este projeto foi especialmente encomendado aos artistas pelo Festival 2000 de São Francisco, em 1990, e produzido pela Toucan Productions. A transmissão foi realizada pela Rádio Pública Nacional (NPR) dos Estados Unidos.) voz feminina_ Este é Norte: Sur. Um programa sobre a América, não apenas os Estados Unidos, mas toda a América. [música: Los Electrodomésticos cantam: Les deseo de lo más profundo de mi corazón. A todos ustedes y los suyos...] voz masculina_ Queridos radioescuchas(1), diretamente de Santiago de Chile, Los Electrodomésticos. Dedicamos esta música ao presidente deposto recentemente, General Augusto Pinochet, o condutor desta máquina, um entre tantos outros... [música: Los Electrodomésticos cantam: Así mismo como también, para respetarle Señor conductor de esta máquina, que también cumple un papel importante en nuestra cuidad...] [jingle de musak latino] locutora norte-americana_ Saudações, meus amigos. Meu nome é Meredith James e eu apresento a série semanal da npr Buscando América. Hoje vamos ouvir algumas idéias ousadas sobre a mudança de identidade cultural da América. No nosso estúdio em Miami, estão dois convidados que acreditam que os Estados Unidos não podem mais ser concebidos como uma entidade separada da América Latina e do Caribe. Guillermo Gómez-Peña (interrompendo)_ Na verdade, a identidade americana é uma ferida de 500 anos que nunca foi curada. Coco Fusco_ O norte e o sul não são mais entidades bipolares. O primeiro e o terceiro mundo, o inglês e o espanhol, estão totalmente interligados. meredith james Espera aí. Acho que estamos nos precipitando. Nós ainda nem fizemos as apresentações. Caros ouvintes, como vocês podem perceber, os nossos convidados têm bastante a dizer sobre essa questão. Com vocês, Gwermo Comes-Pinis, do México... GG-P_ Guillermo Gómez-Peña, por favor. Na verdade, eu me considero um cidadão de San Diejuna. MJ(irritada)_ Tudo bem. E também contamos com a presença de Coucou Fusco, uma cubana que vive em Nova Iorque. [bizarra música de flauta] CF_ O meu nome é Coco Fusco, e na verdade eu nasci nos Estados Unidos. A minha genética compreende os sangues iorubá, taino, catalão, sefardita e napolitano. Na década de 1990 isso quer dizer que sou hispânica. Se estivéssemos nos anos 1950, talvez eu fosse considerada negra. MJ_ Que romântico! [ruflo de tambores] GG-P_ Você acredita que uma das minhas avós era metade alemã e metade britânica? Na década de 1940, na Cidade do México, ela escrevia poesia bilíngüe. Mas, naquela época, ninguém ligava para essas coisas. Os meus outros avós tinham uma mistura de sangue espanhol e indígena. MJ_ Que interessante. Desculpe, mas agora vamos ter que voltar para o nosso assunto. Coco, de que modo a sua história pessoal fez de você uma parte da América? voz masculina_ com um forte sotaque espanhol Pregunta de la semana - qual é a tolerância máxima de um ouvido culto ao idioma espanhol? [música: Fernando Albuerne canta: Siento la nostalgia de volverte a ver, más el destino manda y no puede ser. Habana, mi tierra querida...] voz feminina_ Ay, vivir en la música ajena, padecer de nostalgia importada, importar la nostalgia propia, triste condición de nuestras tierras. [música: música romântica de violão] CF_ Mi tio abuelo Flaviano escucha a su Frank Sinatra por la Radio Martí. GG-P_ Mi padre escuchaba ferviente a Nat King Cole en la xew, México, d. f. CF_ Me acuerdo de mi abuela, bailando en la cocina al ritmo de Los Panchos, escuchando a la whom de New York. [interferência: rádio pirata cb] [a rádio invade a transmissão] rádio pirata_ Quem lhes fala é o Comandante Ruiz, no exílio, transmitindo pela Rádio Sandino. Preciso informar ao público americano que o resultado das últimas eleições na Nicarágua foi fortemente influenciado pela ajuda norte-americana, no valor de treze milhões de dólares, à campanha de Violeta Chamorro. [som de interferência] apresentador de notícias Interrompemos_ a programação para informar que, esta noite, em Washington, haverá uma reunião entre as autoridades do governo norte-americano e a Motion Picture Association of America, para discutir as mais recentes descobertas do Relatório Rockefeller sobre as exportações da indústria norte-americana de entretenimento à Bolívia, Colômbia, Peru, Nicarágua, Paraguai... [música: um mexicano canta uma versão parodiada de “I Wanna Hold Your Hand”: Oye, dame tu mano, quiero rascarme aquí, quiero rascarme acá, quiero rascarme aquí...] [música: versão mexicana de “Shake Rattle'n'Roll”] [música: La Lupe canta “Fever”: Fever de mañana, fiebre en la noche azul. Todo el mundo tiene fiebre, eso bien que lo sé yo. Tener fiebre no es de ahora, hace mucho tiempo que empezó. Dame tu fiebre...] [gritos de platéia de estádio] voz de professor, com eco_ La calcutización, la tijuanización, la fronterización, la tropicalización, la rascuachización, la picuización... A rádio bilíngüe é uma infecção continental, e não há antídoto que cure. [música: musak latino com uma grande quantidade de instrumentos de sopro] vozes imitando um comercial de tv_ Para los niños en América Latina, la primera figura de autoridad es una “miss”. Ya después, llamar a la reina de la belleza “Miss Universo” no representa ningún problema. As crianças de Caracas adoram os sucrilhos da Kellogg's no café da manhã. En Chile, los corn chips se llaman “Crispies”. Em Cuba, “Fab” é sinônimo de sabão em pó. En México, el pan para sandwishes es “Wonder” o “Bimbo”. Na Costa Rica, o caixa eletrônico é chamado de “Anglomatic”. É triste, mas en California, Colorado, Arizona y Florida, aprovou-se o English Only(2). Mas o que vão fazer com palavras como “barbecue”, “lasso”, ou “salsa”? Línguo-futurólogos prevêem que o prato “chile con carne” será rebatizado de “carne com pimenta” e será servido no McDonald's. Speedy Gonzalez vai se tornar Speedy Gordon e vai estrelar filmes Cyberpunk. [música: Speedy Gonzalez] locutor de rádio_ Esta é a Rádio Frontera fm, como sempre estragando o seu jantar, em 200 megahertz en todas las direcciónes. [música: orquestra latina dos anos 1950] voz masculina_ com forte sotaque espanhol Queridos radioescuchas, les habla Joaquín Esteban Taylor, ministro de cultura de Panama. Alguns de vocês já expuseram suas preocupações diante do fato de que talvez estejamos perdendo a nossa cultura. É verdade que a nossa moeda oficial é o dólar, e que o nosso presidente tomou posse em uma base militar americana. Pero les aseguro que seguimos tan panameños y tan latinos como siempre. [música: o bolero nonsense de Medio Evo: ...y propongo que de una vez y por todas, sea respetado el rumbo que requiere el país nacional, el cual atraviesa por una coyuntura histórica indisolu, en cuanto a la estructura que se...] [música: música indígena mexicana] voz em megafone_ Nuestros centros culturales chicanos deben promover el ballet folclórico, el muralismo y el teatro alegórico como expresiones idiosincráticas de nuestra raza, única y auténtica. voz feminina_ Devido à pressão exercida pela secretaria de turismo do México, o artesanato dos grupos indígenas Huichol e Chamula deve manter sua autenticidade, pelo menos até 1992. [GG-P fala palavras em várias línguas incompreensíveis] voz de leiloeiro_ 30, 40, 100, 300, não, 3.000 anos de arte mexicana no Museu Metropolitan. Uma aventura pela sabedoria e pelo orgulho de um povo. voz feminina, com eco_ Arte autêntica, nostalgia autêntica, controle de qualidade. (repete) [música: Yomo Toro no violão] GG-P_ Visite Vieques. Desfrute do nosso calor tropical. CF_ Relaxe nas nossas praias imaculadas, na areia mais branca de todo o planeta. GG-P_ Compre o nosso artesanato de cores vivas. CF_ Saia com nossos homens e nossas mulheres exóticas. GG-P_ Tome o nosso rum Bacardi ao pôr do sol, na varanda de seu bangalô. Visite Vieques. Você vai dormir em paz. Protegido pelas bases americanas que ocuparam a maior parte da nossa ilha. voz masculina_ Ligue para o seu agente de viagens ou para o centro de alistamento da marinha mais próximo. voz feminina_ Este anúncio foi promovido pela Câmara de Comércio de Boriquen. [música: jingle de musak latino] CF_ Bem, eu diria que as pessoas sempre tiveram problemas com a minha identidade. Estão sempre tentando mudá-la. Quando eu nasci, as freiras do hospital acharam que fariam um favor aos meus pais se me classificassem como branca. Logo depois, a minha mãe foi deportada para Cuba e me levou junto. Lá me chamavam de mulatica clarita. GG-P_ Eu sou o filho mais novo e também o mais escuro. Nasci morenito y peludo, uma coisinha escura e cabeluda, no Hospital Espanhol, na Cidade do México. MJ_ E isso foi um problema para você, Gwermo? GG-P_ Na verdade, não. Noventa por cento de todos os mexicanos eram mestiços, como eu. Em um certo sentido, eu cresci sem sentir a diferença racial. CF_ Meus pais tentaram me criar sem a noção de raça, mas era impossível. A minha abuela, que veio morar na nossa casa em 1963, ficou feliz porque eu era branca o suficiente para poder me chamar “la princesa francesa”. MJ_ A princesa francesa? [tango dos anos 1950] GG-P_ Depois do que você disse, Coco, percebo que a minha realidade também tinha questões raciais. Comecei a perceber que havia um privilégio associado à cor da pele quando meus colegas de escola, aqueles que eram ligeiramente mais escuros do que eu, me tratavam de modo especial, com mais respeito. Para eles, era como se eu fosse branco. MJ_ Mas o que significa ser branco no México? GG-P_ Ser de uma “buena familia”, ter alguma ligação misteriosa com a Espanha. Sabe, no México, a questão racial está mais ligada à classe social. Espere aí, quero lhe fazer uma pergunta - aqui, nos Estados Unidos, já aconteceu de alguém perguntar para você o que significa ser branco? MJ_ Não, na verdade não. Mas sou eu que faço as perguntas. Então, Coco, você acha que os seus pais estavam tentando esconder alguma coisa de você, como uma forma de proteção? GG-P_ Que tipo de pergunta é essa? MJ_ Deixe-a responder! CF_ Não exatamente. Eles sabiam que o movimento dos direitos civis não ia conseguir acabar com a classificação racial, mas não queriam que eu me prejudicasse emocionalmente. Por isso, procuraram uma escola particular, na qual eu não precisaria lidar com a minha classificação racial de uma forma negativa. Entrei para a escola em 1966 como uma criança “de cor”. MJ_ E? CF_ A segregação havia sido superada pelo separatismo. Ninguém mais ligava para a idéia da “mistura de raças”. E quando eu fazia as provas do exame nacional, tinha que assinalar o quadradinho da minha classificação étnica, mas eu não conseguia achar a alternativa correta. Por isso eu sempre assinalava “Outros”. Chicanos, porto-riquenhos e cubanos ainda não haviam sido colocados em um único grupo. [música: harpas kitsch] MJ_Você acha que as coisas melhoraram quando as pessoas começaram a usar a palavra “hispânico”? CF_ As pessoas ainda se confundiam, não sabiam dizer se eu era ou não era negra. No final do colegial, três funcionários da administração - um negro, um chicano e um judeu - precisavam decidir se eu atendia aos critérios para me candidatar a uma bolsa de estudos para minorias étnicas; o negro disse não, o chicano disse sim e o judeu disse que eu deveria perguntar à minha mãe se nós tínhamos antepassados africanos. O meu cabelinho afro não os convenceu. Você já pensou sobre os seus antepassados? MJ_ Bem… não. Gwermo, a época em que você chegou a este país foi o momento em que os americanos estavam começando a usar o termo “hispânico”, não foi? Você acha que isso os ajudou a entender quem você era? GG-P_ Usavam uma série de outros termos para denominar a minha condição racial, além de “hispânico”. Quando eu atravessei a fronteira em 1978, eu ipso facto me tornei um “engraxate”, um “costas-molhadas”, um meskin(3). Naquela época, eu não entendia o que essas palavras queriam insinuar. MJ_ Estou ficando confusa. Bem, está chegando a hora de terminarmos o programa. Muito obrigada pela presença de vocês em Buscando América. Na semana que vem, vamos receber o professor Malcolm Stevens, da Universidade de Purdue, que vai falar sobre as tradições que cercam o artesanato da cestaria entre os indígenas da fronteira do Texas com o México. [música: melodia no estilo ranchero mexicano] [som do tic-tac de um relógio] voz de jovem chicano_ Sssspanglish, o idioma da diplomacia pop-cultural... Ssssspanglish é o nosso idioma, yeah. É a voz do futuro, 1992, glasnost americana con safos. [música: melodia no estilo Tex-Mex] CF_ Cardápio de fronteira para o almoço, do lado americano. As nossas especialidades do dia: enchiladas de tofu, salada de taco, pita com fajita, burritos de churrasco e pizzadillas. GG-P_ Cardápio de fronteira para o almoço, do lado mexicano. Cachorros-quentes com bacon e molho de salsa picada, hamburguesas en mole verde e Kentucky Fried tripa. voz feminina_ Menu de arte para os anos 1990: realismo mágico chicano, arte conceitual de artistas indígenas norte-americanos, rap de dominicanos e performance art de asiáticos. A América é maravilhosamente estranha e barata. voz masculina_ Ei, você aí, está querendo fazer um programa divertido hoje à noite? Não importa onde você esteja, sempre encontrará preços acessíveis na cultura do Outro. Um mestiço musculoso em Tijuana, por apenas $25. Uma beleza de mulata em Havana, por apenas $35. Um porto-riquenho de Nova Iorque em Los Sures, por apenas $15. voz feminina_ El otro siempre sabe mejor. [GG-P fala várias coisas em línguas incompreensíveis, entremeadas de nomes de marcas de computadores, como ibm e Macintosh] CF_ Em Santiago eu conheci um sem-teto que se vestia de índio Mapuche. Ele usava uma placa no peito que dizia: “Índio autêntico - made in Chile”. GG-P_ Estou me lembrando dos “dançarinos astecas autênticos” das Cataratas do Niágara, que juravam que sabiam falar nahuatl e que executavam rituais exóticos para os turistas assombrados. Na verdade, eles eram imigrantes ilegais, ex-mecânicos de Mazatlan. voz feminina_ Yaqui, Seri, Guaycura, Diegueño, Barona, Seminole, Comanchero, Tuscarora. Pontos românticos em mapas turísticos. Palavras românticas em ouvidos ocos; cambio de canal. [música: Corazón de Melon (cha-cha-cha): ...Corazón de melon, de melon melon melon melon, corazón de melon. Your heart is a watermelon heart, just a watermelon heart...] voz de camelô mexicano_ “Amor Salvaje”, el nuevo supervideo de Madonna y Julio Iglesias ya está a la venta en su tienda favorita. En su compra recibirá gratuitamente un paquete con diez simpáticos preservativos para que el “Amor Salvaje” no lo traicione. voz masculina_ Caro ouvinte, você sabe a diferença entre intercâmbio cultural e colonialismo? Entre vampirismo e apropriação criativa? Estamos aqui para ajudá-lo a entender essas diferenças. Hoje, vamos falar com Enrique Mendez Orduño, assessor de Assuntos Latino-americanos de Arteamérica, um novo programa da Agência de Informação dos Estados Unidos. [música de percussão] locutor mexicano_ Nuevas aventuras para toda la familia. Buenos Aires cartelera doble: “O Exterminador” e “O Incrível Hulk”. Sessão dupla de São Francisco: “Bronson, Vengador Asesino” e “Mojados Precolombinos contra la Sico-Migra”. [música: Charlie Parker tocando “La Cucaracha”] [sons de um restaurante popular] voz feminina com sotaque espanhol_ Aquele homem está distribuindo folhetos que falam sobre a identidade cultural latino-americana. Eu me pergunto se ele já viajou para algum país da América Latina. Lá, muitas mulheres da classe-média pintam seus cabelos de loiro. voz feminina com sotaque americano_ Elas não são as únicas que gostam da cultura do outro. Já vi um grande número de gringas progresistas que usam huaraches e huipiles. mulher nº 1_ ok, ok, entendi. Então, todo mundo quer ser o outro. É essa a idéia? mulher nº 2_ Ou dormir com o outro. (Elas caem na risada) mulher nº 1_ É verdade! Não estou brincando - escuta só essa música. É La Cucaracha - em russo! [mulher russa canta “La Cucaracha”] locutor mexicano_ A América não é mais o continente que você imaginava. Audio-graffitti fm, buscando un nuevo lenguage para expresar sus temores y deseos interculturales. [música: jingle de game show] apresentador do programa_ Olá a todos, chegou a hora da sua competição de rádio favorita, Pura Bicultura. Nós tocamos a música e você liga para nós com a resposta. Diga o que está tocando ou quem está cantando e, na hora, você ganha uma passagem de avião para qualquer cidade no continente americano, com exceção de Havana, é claro, ha, ha, ha! O nosso telefone é 270-loco. loco! Agora, a nossa primeira música da noite. Vamos lá! um americano canta em espanhol com forte sotaque inglês_ De la Sierra Marenga, cielito lindo, vienen cantando. Un par de ojitos negros, cielito lindo, de contrabando. Ay yay yay, Frito Bandito! [música: jingle de game show] locutora_ Esta es radio educación. Construyendo un nuevo lenguage para nuestro atormentado continente, América poscolombina. [som de máquinas de escrever] apresentador de notícias nº 1_ Boa noite. As principais notícias do dia. A série americana Kojak é o programa de televisão mais votado nos Andes peruanos. apresentador de notícias nº 2_ Um chefe do tráfico de drogas colombiano afirma que seus modelos são Al Pacino e Marlon Brando. apresentador de notícias nº 1_ Dois trabalhadores mixteques imigrantes foram mortos a tiros por um Esquadrão da Morte totalmente norte-americano em Encinitas, na Califórnia. apresentador de notícias nº 2_ Um tribunal de Chicago chega à conclusão de que a morte de um caixa guatemalteco, empregado em um supermercado da cidade e baleado por falar em espanhol no local de trabalho, não foi fruto de preconceito racial. apresentador de notícias nº 1_ O Papa e o Rei da Espanha estão realizando os preparativos para a comemoração do quinto centenário da descoberta da América. Doze países latino-americanos decidiram participar. [música: banda de circo] CF_ 3.000 cidadãos norte-americanos vivem na base de Guantánamo e 17.000 em Vieques. GG-P_ 100.000 residências na Baja California, no México, são de propriedade de cidadãos norte-americanos. CF_ Há tropas norte-americanas com 26.000 militares no canal do Panamá e com 25.000 em Tegucigalpa. GG-P_ Los Angeles é a segunda maior cidade mexicana do mundo. CF_ Los Angeles é a segunda maior cidade salvadorenha do mundo. GG-P_ Nova Iorque é a segunda maior cidade porto-riquenha do mundo. CF_ Nova Iorque é a segunda maior cidade dominicana do mundo. GG-P_ Miami é a segunda maior cidade cubana do mundo. [um eco repete: a segunda maior, a segunda maior...] GG-P_ Miami é a segunda maior cidade nicaragüense do mundo. apresentador de notícias nº 1_ Agora com vocês Trans-American Radio, como sempre, interrompendo a hora do sexo. Buenas noches. [música: Mercado Negro tocando “La Cucaracha” em versão punk] ------------------- (1) N. E.: Nesta versão do texto, optou-se por traduzir para o português os trechos escritos originalmente em inglês, preservando as passagens e os termos em espanhol. (2) N. do T.: Movimento criado nos Estados Unidos com o objetivo de preservar o inglês da influência de outros idiomas ou culturas, combatendo toda espécie de bilingüismo. (3) N. do T.: Meskin é uma corruptela de mexican que, como as outras expressões mencionadas (no original, greaser e wetback), é usada de forma pejorativa para designar os imigrantes mexicanos em situação irregular nos EUA. Coco Fusco e Guillermo Gómez-Peña
FUSCO, Coco e GÓMEZ-PEÑA, Guillermo. "Norte : Sur_ Roteiro de performance para rádio". In: Caderno Videobrasil. Associação Cultural Videobrasil, nº1, p. 64-72, São Paulo, 2005.