VIDEOBRASIL 40 | 22º Videobrasil

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postado em 23/05/2024

Edição tem a memória como tema central na celebração dos 40 anos do Videobrasil

     

Seria difícil imaginar uma frase mais propícia para intitular a edição comemorativa dos 40 anos do Videobrasil do que “A memória é uma ilha de edição”. Primeiro, porque falar em memória, para um evento criado há quatro décadas e com uma história tão vasta e complexa, não poderia ser outra coisa senão um grande processo de edição, uma seleção de histórias, imagens, registros e recordações. Além disso, pode-se afirmar que foi a partir das “ilhas de edição” de artistas e dos então chamados videomakers que surgiram as tantas obras que participaram de um festival dedicado, por ao menos duas décadas, ao vídeo e às linguagens eletrônicas. Para completar, o título foi tirado de um célebre poema de Waly Salomão (1943-2003) – Carta aberta a John Ashbery –, figura marcante na história do Videobrasil tanto por suas participações como artista quanto por sua atuação na aproximação do evento com artistas do Oriente Médio, a partir da virada do milênio. Não menos importante do que estes aspectos históricos, o título se mostrou coerente com um contexto contemporâneo no qual os traumas e mazelas do passado se configuraram como um dos aspectos mais relevantes da produção artística. No espírito do verso de Waly, escrevia Solange Oliveira Farkas, fundadora do festival em 1983, “reeditamos nossas memórias à luz de um novo presente”. 

 

 

Com curadoria geral do brasileiro Raphael Fonseca e da queniana Renée Akitelek Mboya, a 22ª Bienal Sesc_Videobrasil | Especial 40 anos* aconteceu entre outubro de 2023 e fevereiro de 2024, com uma exposição principal dedicada à produção contemporânea, uma mostra paralela sobre a história do Videobrasil (curada por Alessandra Bergamaschi e Eduardo de Jesus) e uma série de Programas Públicos. Reunindo 60 artistas e coletivos de 38 países, selecionados a partir de chamada aberta que recebeu mais de 2.500 inscrições, a exposição principal apresentou diferentes modos de lidar com a memória – e o esquecimento –, por vezes com foco mais individual, por outras coletivo. Os diversos olhares a partir do Sul global, com a presença de artistas de diferentes gerações, advindos de regiões tão afastadas do mundo e com produções em mídias e suportes variados, constituíram um complexo e vibrante conjunto de obras que ocupou diversos espaços do Sesc 24 de Maio.

“É interessante que temos desde artistas que lidam com uma noção de macro-história até pessoas que lidam com uma ideia de micro-história”, dizia Raphael Fonseca. Segundo ele, “alguns trabalham, por exemplo, com arquivos, material de jornais ou imagens de televisão, que têm uma relação mais direta com as massas, enquanto outros partem de materiais familiares e íntimos, interessados numa relação mais subjetiva”. Estavam presentes também obras que criam universos fantasiosos e ficcionais, trabalhos que se utilizam da Inteligência Artificial e, também, produções concebidas em suportes considerados mais tradicionais, como pinturas, têxteis e esculturas. O vídeo, que remete aos primórdios do Videobrasil, ganhava espaço de destaque. “Há realmente uma espécie de alargamento do que poderia ser essa relação entre a memória e o esquecimento, a partir de muitos interesses artísticos diferentes. E assim é criado um ziguezague interessante para o público, com um conjunto expositivo que não aponta apenas para uma direção”, concluía Fonseca.

Após um dos momentos mais trágicos da história contemporânea, com a pandemia de Covid-19 que deixou milhões de mortos ao redor do mundo – sendo cerca de 700 mil apenas no Brasil, desastradamente governado pelo presidente de extrema-direita e antivacina Jair Bolsonaro –, a Bienal refletia um momento ao mesmo tempo de luto e de esperança, dada a possibilidade de retomada dos encontros sociais após longa fase de medo e isolamento. Além disso, na sequência de um período de fortes retrocessos nos campos político e social, uma eleição realizada sob grande tensão no final de 2021 – que hoje se sabe ter sido ameaçada por planos golpistas por parte do governo em vigência – resultou na vitória apertada de Luís Inácio Lula da Silva. Principal líder da esquerda brasileira, Lula assumia o cargo pela 3ª vez após uma trajetória marcante, na qual inclusive esteve preso por longo período após uma condenação injusta e sem provas.

Neste contexto, Solange escrevia no texto de apresentação da Bienal: “Em um ambiente político renovado que, afinal, busca fazer frente às perdas humanas e de direitos dos últimos anos, recompõe-se nossa disposição de manter viva, ativa e à disposição de todos a produção de uma região (o Sul) que, como percebemos com alegria, do alto de nossas quatro décadas de dedicação, apenas começa a mostrar sua força ao mundo”. Em sintonia com esta ideia, Mboya afirmava: “Acho que o ponto central com o qual todos concordamos, neste momento sociopolítico do Brasil e do mundo, é a necessidade de que haja um foco maior na solidariedade. E uma das formas pelas quais podemos identificar-nos uns com os outros e criar posições de solidariedade é recordar juntos, recordar coletivamente e encontrar formas de articular noções de memória. Isso, de algum modo, reestabelece nossas posições políticas e nosso compromisso uns com os outros”.

Em sintonia com estas ideias, é possível perceber que a exposição principal, montada sob direção de Fonseca, trazia consigo menos um tom de lamento sobre as tragédias vivenciadas nos anos anteriores e mais um ar estimulante e surpreendente. Se o adjetivo “alegre” seria impreciso para descrever uma mostra com obras tão contundentes, várias delas ligadas às desigualdades e violências vigentes mundo afora e até mesmo aos traumas recentes, pode-se dizer que uma visualidade de cores, luzes, telas e projeções realçava um aspecto vivaz e pop na exposição. 

 

 

 

Por todo o edifício 

Isso ficava claro já na fachada do Sesc 24 de Maio – em pleno centro da cidade –, na vitrine que abrigou a obra de Froiid e chamou a atenção de milhares de passantes durante os meses da Bienal. Em O pulo do gato, o artista brasileiro criou um rap “infinito e aleatório”, guiado por Inteligência artificial, que tocava em caixas de som enquanto painéis de LED expunham os códigos de programação usados no trabalho. A obra, criada em parceria com o rapper Matéria Prima e o beatmaker Barulhista, foi vencedora do Prêmio Sesc de Arte, passando a integrar o acervo da instituição.

Também interativas eram as duas obras com as quais os visitantes se deparavam ainda no piso térreo do edifício. A instalação O que desaparece, o que resiste, da brasileira Leila Danziger – também agraciada com o prêmio Sesc – tratava da memória a partir de um tipo de imprensa, o jornal impresso, que ocupa cada vez menos espaço na vida contemporânea, pautada pelo ambiente virtual. Reunindo páginas de jornal com textos “descascados” e TVs que exibiam estes processos de apagamento, a artista construiu uma banca de jornal na qual o público lia frases como “pensar em algo que será esquecido para sempre”. Ali ao lado, o game criado pelo coletivo neo-zelandês Fafswag apresentava, em contexto referente à cena LGBTQIA+ e maori da cidade de Auckland, um jogo no qual o participante escolhia dançarinos para uma batalha de dança Vogue, em um ambiente de celebração da diversidade racial, sexual e de gênero.

Outra obra que causou grande impacto visual foi Flat Circle, dos estonianos Karel Koplimets e Maido Juss, instalação composta por 16 telas LCD que exibiam, incessantemente, noticiários, propagandas e documentários, propondo uma reflexão sobre as distorções e excessos de informação no mundo capitalista contemporâneo e sobre o medo gerado pela proliferação de fake news. Duas outras obras ocupavam paredes de diferentes andares da instituição. A enorme pintura mural Guerrillera, montaña, compañera, da colombiana Gabriela Pinilla – que ganhou Menção Honrosa – apresentava um mural de 9 metros de altura e 6 de largura para retratar uma passagem da vida da guerrilheira Carmenza Cardona Londoño (1953-1981). A obra reunia, ainda, livros de Pinilla com textos e ilustrações sobre a história de grupos políticos de esquerda e a repressão de Estado em seu país. Em outro espaço, o zambiano Nolan Oswald Dennis concebeu, em um papel de parede de grandes dimensões, um diagrama complexo sobre relações geopolíticas de poder, a história do tráfico de escravos, o passado colonial e a exploração de mercadorias ao redor do globo – sempre sob um ponto de vista não ocidental e, por vezes, espiritual. Pela instalação, intitulada A Recurse for three Oceans, o artista radicado na África do Sul levou o Prêmio do Júri da 22ª Bienal.

A atmosfera criada nestas áreas se intensificava no espaço expositivo principal do Sesc 24 de Maio. O “ziguezague” proposto por Fonseca se via, de saída, na área central da mostra, onde duas grandes faixas com o escrito “FA-TAL- VIOLETO” – obra de 1971 criada por Luciano Figueiredo, Óscar Ramos e Waly Salomão para a cenografia de show de Gal Costa – se contrapunha ao chamativo neon do australiano (de descendência Wiradjuri) Brook Andrew, no qual se lia: “Na vida, nada se esquece de tudo até a morte”. No espaço entre as duas obras via-se a instalação Corrientes de retorno, da equatoriana Pamela Cevallos, que ao reunir réplicas de objetos arqueológicos pré-hispânicos produzidos por habitantes do vilarejo de La Pila questiona o patrimonialismo e a violência que representa a retirada das peças de seus locais de origem para serem apresentadas em museus e coleções particulares ocidentais. Estavam ali também as obras de duas artistas convidadas pela Bienal para finalizar seus trabalhos no Brasil, antes da exposição, na residência Kaissá (São Sebastião): os tecidos em grande escala da queniana Agnes Waruguru, pendurados no teto e integrados com destaque à cenografia da mostra; e Trouble Skirts, instalação da holandesa radicada na Indonésia Mella Jaarsma que trata de memória e identidade a partir de roupas e dos atos de vestir-se e despir-se.  

Mesmo com a notável diversidade de suportes e práticas artísticas, algumas das obras que chamaram maior atenção do júri responsável pela premiação – formado por Adrienne Edwards (EUA), Gabriela Golder (Argentina), Maria Magdalena Campos-Pons (Cuba), Patrick Flores (Filipinas) e Vivian Ostrovsky (Brasil/EUA) – foram trabalhos em vídeo. Entre eles estava o impactante Mês Rêves / My Dreams, que deu ao haitiano Maksaens Denis o Prêmio de Residência Instituto Sacatar (Itaparica, Brasil). Partindo de seu “mundo interior” e de seus sonhos, o artista mescla cenas de beleza e sexualidade com registros de conflitos de rua em seu país, mostrando que temas aparentemente tão contrastantes podem habitar simultaneamente a mente humana. Outro destaque foi The Revolution Will Not Be Air-conditioned, do chinês Bo Wang – agraciado com o Prêmio O.F.F –, vídeo em dois canais que parte de protestos realizados em shopping centers de Hong Kong, em 2019, e traça um sutil paralelo com o ativismo negro norte-americano dos anos 1970. Na obra, que mescla filmagens novas e antigas com animações com a estética de games, Wang demonstra como ambientes de consumo organizados e assépticos podem ter seu espaço arquitetônico e sua atribuição original subvertidos e ressignificados.

 

 

 

As memórias ligadas a uma história recente ainda pouco “digerida” no Brasil – a construção da rodovia Transamazônica no período da ditadura – surge, com ares poéticos e por vezes fantasmagóricos, na videoinstalação em dois canais Cinema caverna (Quebrante), da brasileira Janaína Wagner, vencedora do Prêmio de residência Centro Cultural Cariri (Ceará, Brasil). A articulação dos relatos de dona Erismar – professora aposentada na pequena cidade de Rurópolis que descobriu sozinha diversas cavernas da região – com sons e imagens de rochas, da lua ou das estradas de terra acaba por criar uma atmosfera que remete a um tempo-espaço difícil de se distinguir. Por fim, Vitória Cribb, vencedora do Prêmio de residência Wexner Center for the Arts (Columbus, EUA), apresentou outro trabalho que propõe novos caminhos para a linguagem do vídeo, neste caso a partir da computação gráfica e da animação. Em Bugs, Cribb explora as tensões entre o humano, a natureza e as tecnologias a partir da criação de personagens “monstruosos”, insetos e máquinas que habitam um espaço virtual.

Obras como as de Bo Wang, Janaína e Vitória explicitavam, de diferentes modos, uma espécie de alargamento das linguagens ligadas ao vídeo no mundo contemporâneo, trazendo à 22ª Bienal questões pertinentes para a celebração das quatro décadas do Videobrasil. Ao visitar a mostra especial dos 40 anos e a exposição principal, era possibilitado ao público traçar uma espécie de arco histórico, com uma compreensão tanto dos primórdios quanto dos variados caminhos trilhados por uma mídia que – pioneira no Sul global nos anos 1980 – se mostra extremamente difundida nos dias atuais, não só no meio das artes, mas ao alcance das mãos em telas de celular e computadores. “No rescaldo da pandemia, é importante repensar como o vídeo se tornou o principal meio das nossas vidas, seja interagindo online, vendo o YouTube, jogando jogos e assim por diante”, ressaltava Fonseca. Ao que Solange completava: “Nos interessa mostrar como o vídeo, se há 40 anos atrás era exibido em uma TV de tubo, hoje pode ser visto em um tablet ou em um videowall. E, na exposição, surge essa sobreposição de maneiras de mostrar o vídeo, em uma conversa também com as linguagens mais tradicionais.”

Entre os muitos vídeos e videoinstalações apresentados, vale destacar ainda aqueles que partem majoritariamente de realidades mais pessoais e subjetivas. A porto-riquenha Natalia Lassalle-Morillo, por exemplo, na videoinstalação em três canais Retiro, cria um retrato em prosa e performance das recordações de sua mãe, repassando a vida de três gerações de mulheres de sua família e refletindo sobre a decomposição da memória. A brasileira Julia Baumfeld, por sua vez, se utiliza de vídeos e fotografias registrados por sua família nos anos 1980 para conceber a instalação Era, na qual o caráter supostamente banal das imagens acaba por nos causar estranhamentos capazes de ressignificar memórias coletivas. Já a chinesa Youqine Lefèvre narra, em The Land of Promises, a jornada de famílias belgas que viajaram à China em 1994 para adotar crianças – sendo uma delas a própria artista. A partir de sua história pessoal, Youqine debate a política chinesa de controle de natalidade, suas nuances e complexidades.

Em um momento de forte tensão no Oriente Médio, onde a guerra entre Israel e Hamas e o massacre produzido contra o povo palestino se intensificavam, a presença de artistas do Oriente Médio – seguindo uma tradição do Videobrasil – também ganhava peso. Com um trabalho que reúne cinco curtas-metragens, o coletivo Sada [regroup] – agraciado com Menção Honrosa – apresentou relatos marcantes sobre a vida no Iraque, o impacto dos novos meios de comunicação na sociedade, as violências vividas no país e a dificuldade para artistas produzirem neste contexto. Estiveram na Bienal, ainda, um velho parceiro do Videobrasil, o libanês Ali Cherri, que apresentou uma série de esculturas em barro; e a também libanesa Marie-Rose Osta, com o vídeo ficcional de ares poéticos e misteriosos Thouma Ya’ti Al Zalam / Then Came Dark.

Outra região com grande representação na exposição foi a Ásia Oriental, em uma das edições do Videobrasil com mais artistas desta parte do mundo. Para além dos já citados Bo Wang e Youqine Lefèvre, estavam na mostra o taiwanês Hsu Che-Yu, com a animação Lacuna; Isaac Chong Wai, de Hong Kong, com Crying People, instalação sobre a comoção gerada em torno da morte de líderes ditatoriais em seu continente; o coletivo sul-coreano Moojin Brothers, com o vídeo The Trace of the Box – Technicalized Good People, inspirado na obra de Nan June Paik; e os chineses Peng Zuqiang e TANG Han. Esta última chamou atenção com Pink Mao, vídeo em que trata do passado e do presente de seu país ao analisar a nota de 100 yuans, descobrindo que, apesar da representação oficial, a cédula traz a imagem do líder comunista na cor rosa, e não vermelha.

Para além das residências ou valores financeiros, todos os artistas premiados receberam um troféu original produzido pelo brasileiro Denilson Baniwa. Em diálogo com o tema da edição, o artista criou a peça Matapi, escultura em bronze inspirada em um tipo de armadilha indígena para pegar peixes. Assim como a memória, o matapi captura e filtra, separa o que sai do que permanece, “como uma edição mesmo”, explicava o artista. De certo modo, a obra de Baniwa coroava uma bienal com forte participação de artistas de povos originários de diferentes cantos do mundo, entre eles o brasileiro Ailton Krenak, o guatemalteco Antonio Pichilla, a argentina La Chola Poblete, a chilena Seba Calfuqueo e o coletivo australiano Iwantja Arts.

  

Quatro décadas de história

Criado em 1983, nos anos derradeiros da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), o Videobrasil foi o primeiro festival no país voltado à produção em vídeo – ainda incipiente, mas que ganhava força com a crescente democratização dos equipamentos eletrônicos. Criado por Solange com estímulo do fotógrafo e cineasta Thomaz Farkas (1924-2011), o evento enfrentou embates com a censura, chamou atenção da imprensa e foi um dos grandes incentivadores para a produção de jovens artistas e para os então chamados videomakers, ávidos por experimentar linguagens e romper com o monopólio das emissoras de TV. Ao longo das décadas o festival se internacionalizou, estabeleceu a produção do Sul como recorte geopolítico, firmou uma longeva parceria com o Sesc-SP, se abriu para as mais variadas práticas artísticas e adotou o formato de bienal de arte contemporânea, não mais de festival de vídeo. Estas e outras muitas histórias das quatro décadas do Videobrasil foram contadas, na 22ª Bienal, na exposição paralela Especial 40 anos.

A partir da ideia de “acervo em performance”, os curadores Alessandra Bergamaschi e Eduardo de Jesus selecionaram uma série de obras e depoimentos que marcaram edições evento – entre os mais de 3 mil itens do Acervo Histórico Videobrasil –, construíram uma detalhada linha do tempo com textos e vídeos (disponível online aqui), criaram uma biblioteca com livros de referência selecionados por artistas e curadores e outra com livros pessoais de Waly (com os grifos feitos pelo poeta), propondo assim caminhos para o público se aprofundar na história do Videobrasil. A exposição apresentava, portanto, um panorama não só da produção artística nos países do Sul, pautada tanto pelo desenvolvimento das mídias quanto pelo crescente hibridismo entre linguagens e práticas, mas também um quadro sobre as questões geopolíticas que marcaram a contemporaneidade. Em um mundo ao mesmo tempo desigual e violento, mas também culturalmente rico e diverso, discussões sobre colonialismo, questões indígenas, racismo estrutural, conflitos e guerras, entre outros, surgiram de modo pioneiro no Videobrasil – antes de virarem pauta em tantas instituições culturais ao redor do globo.

O recorte geopolítico, por mais que já fosse enfoque antigo do VB, surgiu novamente como tema preferencial na vasta cobertura da imprensa sobre a 22ª Bienal. “Ambiente e memória no Sul global”, manchetava o jornal Valor Econômico; “Sul global como ficção”, intitulava a matéria da revista seLecT ceLesTe; “Videobrasil faz 40 anos e mira arte produzida fora do centro”, cravava a Folha de S.Paulo; e “O Sul global no centro” era o destaque na Revista Continente. Outros artigos, por sua vez, deram maior destaque à questão da memória, como o texto da revista Bravo! intitulado “A memória em contínuo movimento” ou outra matéria na Folha de S.Paulo com a manchete “Jogo da memória”.

Por fim, ainda sobre a memória, mais especificamente a do próprio VB, Solange escrevia em seu texto de apresentação da edição: “Olhar para o passado do Videobrasil revela, paradoxalmente, um movimento constante de auscultação de futuros.” Neste sentido, ela destacava o Acervo da associação como o grande vetor para a continuidade desta história. “Fonte de articulações curatoriais, poéticas e históricas profícuas e reveladoras, que se estendem em muitas direções no tempo e no espaço, a coleção reunida em torno do Videobrasil assume um lugar cada vez mais central em nossas ações. (...) Se o que motivou sua constituição inicial foi a urgência de preservar trabalhos produzidos na frágil mídia eletrônica, hoje vemos esse esforço como algo que vai muito além da tecnicalidade. Preservar essa história para gerações futuras é olhar para o Acervo como um projeto de memória em edição, buscando sua pertinência no presente”, concluía.  

Diversos assuntos ligados aos 40 anos foram destacados também nos Programas Públicos, eixo fundamental do evento que buscava expandir as discussões levantadas nas exposições. “O conceito dos programas é a Câmera de Ecos [título de poema de Waly], que reproduz a ideia de que estamos sempre dando feedbacks uns aos outros. Falando, mas também ouvindo uns aos outros”, ressaltava Renée Mboya. “Há sempre espaço para uma colaboração contínua, há espaço para as ideias circularem, reverberarem e se expandirem – ou se contraírem, se necessário.” Nos encontros intitulados Acervo Comentado, por exemplo, artistas, curadores e pesquisadores que colaboraram com o Videobrasil ao longo das décadas falaram sobre obras exibidas em outras edições do festival/bienal ou sobre períodos da história do evento. Entre os participantes estiveram os artistas Ayrson Heráclito, Carlos Nader, Eder Santos, Lucas Bambozzi, Rivane Neuenschwander e Vincent Carelli, o jornalista e crítico Fabio Cypriano e o jornalista e professor Gabriel Priolli.

Mais relacionadas à exposição principal, três performances marcaram a semana de abertura da Bienal: Solar Orders, de Kent Chan (Singapura), obra que remete à crise climática e ao aquecimento nos trópicos a partir da criação de “sociedades solares” fictícias; a ação da suíça de origem vietnamita Thi My Lien Nguyen, uma espécie de ritual participativo realizado na Ocupação 9 de Julho em parceria com integrantes do movimento sem-teto do centro de São Paulo; e a palestra-performance Fragments Untitled #5, da dupla sérvia Doplgenger, projeto que examina a participação da mídia na construção de narrativas históricas na antiga Iugoslávia. 

 

 

 

Para as chamadas Vivências, por sua vez, quatro artistas de diferentes áreas foram convidados a apresentar ao público o resultado de suas imersões na Bienal. O artista visual e educador Moisés Patrício realizou uma “conversa ritual” sob o título Memória, encarnação e cultura; a educadora, artista e ativista das causas indígenas Naine Terena refletiu sobre as interações entre arquivo, colonialismo, memória e a ideia de revisão histórica; a dupla Marcela Vieira e Lívia Benedetti, da plataforma curatorial aarea, propôs uma espécie de intervenção virtual a partir da obra do coletivo congolês Cercle d’Art des Travailleurs de Plantation Congolaise (CATPC); e a cantora, compositora e cineasta Ava Rocha apresentou uma performance cênica e sonora interativa, baseada em escritos e no pensamento de Waly.   

Por fim, foram realizados diversos encontros com artistas participantes da mostra. Grande destaque recebeu a mesa com o camaronês Samuel Fosso, renomado fotógrafo e artista visual que, desde jovem, deu à autoficção e ao autorretrato uma dimensão ao mesmo tempo política e histórica. Na Bienal, Fosso colocou em diálogo registros produzidos em dois períodos distantes de sua trajetória, obras das séries 70’s Lifestyle Series (1974-1978) e Fosso Fashion (2021). Outro encontro que chamou atenção contou com a artista Anna Bella Geiger, que conversou com Vivian Ostrovsky sobre sua histórica produção audiovisual e o lançamento, em parceria do Ostrovsky Fund Family com o VB, do Projeto de Preservação de Filmes e Vídeos Brasileiros - BFVPP (saiba mais aqui). 

 

O fim de um ciclo

Em uma bienal que traçava um grande arco histórico, refletindo sobre a memória do passado, demonstrando um olhar atento para o presente e explicitando a necessidade de se propor novos caminhos para o futuro, o texto de Danilo Santos de Miranda para a apresentação da edição parece resumir bem o que se viu ao longo de quatro meses no Sesc 24 de Maio: “‘A memória é uma ilha de edição’, expressão emprestada de Waly Salomão para dar nome à 22ª Bienal, convida a pensar nos processos de seleção e exclusão de elementos para a formação de relatos a respeito de culturas e identidades situadas nas margens dos centros de poder e privilégio. Nesta bienal, que marca os 40 anos de atividade do Videobrasil, o vídeo representa metáfora da passagem do tempo e da produção de memória, haja vista a importância do movimento, da montagem e do encadeamento de fatos audiovisuais na sintaxe dessa linguagem técnica”.

Sociólogo e filósofo que dirigiu o Sesc-SP por cerca de três décadas e foi um dos mais importantes gestores culturais do país, Danilo faleceu pouco mais de uma semana após a abertura da Bienal. “Há 30 anos, quando éramos um festival ainda bastante experimental, dedicado especialmente ao vídeo, o professor Danilo – esta pessoa visionária – foi quem acreditou em nosso projeto e se tornou um parceiro fundamental para transformar o Videobrasil em uma plataforma maior para as artes visuais no Sul global”, escreveu Solange em sua homenagem.    

Desde o festival de 1983 até a bienal de 2023, com estruturas e características tão distintas e em realizadas em contextos históricos tão distantes, o Videobrasil parece não ter deixado de preservar o que sempre foi sua essência. Entre rupturas e permanências, se manteve como um evento contestador das estruturas de poder consolidadas e propositivo de caminhos alternativos. Colaborador da associação por mais de duas décadas, Eduardo de Jesus ressaltava, ao ser perguntado sobre o que percebia como o “espírito” que se mantinha nesta trajetória: “O que mantém o Videobrasil e o coloca neste lugar é algo que parece com a própria matéria que o constitui, que é a imagem eletrônica, o vídeo e a imagem em movimento: ele é sempre inquieto, nunca para, nunca é um evento no mesmo formato, nunca está do mesmo jeito. Ele está sempre com suas antenas ligadas”. 

 

Por Marcos Grinspum Ferraz

*a nomenclatura utilizada para intitular a principal mostra organizada pelo Videobrasil, hoje chamada Bienal Sesc_Videobrasil, passou por adequações ao longo dos anos. As mudanças se deram a partir da percepção dos organizadores sobre as características de cada edição, especialmente no que se refere ao seu formato; duração; periodicidade; parcerias com outras empresas e instituições; e à expansão das linguagens artísticas apresentadas. Os principais reajustes no título das mostras foram: inserção do nome da empresa parceira Fotoptica entre a 2ª (1984) e a 8ª (1990) edições; a inclusão da palavra “internacional” entre a 8ª e a 17ª (2011) edições, a partir do momento em que o evento passa a receber de modo intensivo artistas e obras estrangeiros; o uso do termo “arte eletrônica” entre a 10ª (1994) e a 16ª (2007) edições, quando se percebe que a referência apenas ao vídeo não dava conta dos trabalhos apresentados; a inclusão do nome do Sesc, principal parceiro da mostra nas últimas três décadas, a partir da 16ª edição; e a substituição de “arte eletrônica” por “arte contemporânea” entre a 17ª edição e a 21ª (2019) edições, a partir do momento em que o foco se expande para as mais variadas linguagens artísticas. A mais recente mudança significativa se deu em 2019, na 21ª edição, quando o nome festival é substituído por bienal, termo mais adequado a um evento que já vinha sendo realizado bianualmente e com uma duração expositiva de meses, não mais semanas.

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Imagens: 
Everton Ballardin, Pedro N. Prata e Denise Andrade / Acervo Histórico Videobrasil 
Acervo Histórico Videobrasil 
 
1. Identidade visual do vigésimo segundo Videobrasil, por Luciana Facchini e Flávia Castanheira.

 

Galeria 1
1. Vista geral da exposição, com instalação de Josué Mejía à frente e faixas de Luciano Figueiredo, Óscar Ramos e Waly Salomão ao fundo.
2. Vista geral da exposição, com obra luminosa de Brook Andrew ao fundo.
3. Renée Akitelek Mboya, Solange Oliveira Farkas e Raphael Fonseca.
4. Artistas participantes da Bienal.
5. Obra de Froiid na fachada do Sesc 24 de Maio.
6. Vista da exposição, com "Corrientes de retorno", de Pamela Cevallos, à frente.
7. Trabalhos de Peng Zuqiang, à esquerda, e La Chola Poblete, ao fundo.
8. Instalação (game) do coletivo neo-zelandês Fafswag.




Galeria 2
1. "O pulo do gato", de Froiid.
2. "O que desaparece, o que resiste", de Leila Danziger.
3. "Bugs", de Vitória Cribb.
4. "Cinema caverna (Quebrante)", de Janaina Wagner.
5. "Mes rêves", de Maksaens Denis.
6. "The revolution will not be air-conditioned", de Bo Wang.
7. "A recurse for three oceans", de Nolan Oswald Dennis.
8. "Guerrillera, montaña, compañera", de Gabriela Pinilla.
9. "Sada [Regroup]", de Sada [Regroup].


Galeria 3
1. Performance de Thi My Lien Nguyen, realizada na Ocupação 9 de Julho.
2. Artistas e júri na premiação, no Sesc 24 de Maio.
3. "Flat Circle", de Karel Koplimets e Maido Juss, na passarela do Sesc.
4. Séries fotográficas de Samuel Fosso.
5. Membros do júri da 22ª Bienal.
6. Escultura de Anna Hulacová.
7. Vista da exposição.
8. Têxteis de Antonio Pichilla Quiacain.
9. Instalação do coletivo indonésio Tromarama.