VIDEOBRASIL 40 | 8º Videobrasil
Em um mundo em transformação, Videobrasil se assume de vez como mostra internacional
Poucos meses após vencer uma eleição apertada contra Luiz Inácio Lula da Silva, o outsider da política Fernando Collor de Mello assumia em março de 1990 a presidência da República – resultado da realização das primeiras eleições democráticas no Brasil após a ditadura civil-militar. No panorama global, a queda do Muro de Berlim no ano anterior prenunciava o fim da Guerra Fria, que viria com a dissolução da União Soviética em 1991. A tal “vitória do capitalismo” não traria consigo nem a paz – vide o início das guerras no Iraque e em Ruanda ou a intensificação dos conflitos na Colômbia – nem a diminuição da pobreza e das desigualdades, mas marcaria o início de um novo período da história global. É neste contexto que foi realizado, entre os dias 9 e 15 de novembro de 1990, no Museu da Imagem e do Som (MIS), o 8th Fotoptica International Video Festival*, incluindo pela primeira vez filmes estrangeiros em sua mostra competitiva.
“Não há outra saída para o Videobrasil senão torná-lo internacional”, dizia Solange Oliveira Farkas à imprensa. E não apenas pelo desejo de apresentar aos brasileiros a produção internacional, mas pelas crescentes possibilidades que o intercâmbio entre países gerava para os artistas nacionais, que passavam a ter espaço em festivais, mostras e residências em outros cantos do mundo. “Com a internacionalização, o videomaker brasileiro passa a preparar seus trabalhos de olho noutros festivais, não só o Videobrasil (VB), tendo em vista também a veiculação comercial de seu produto”, completava a diretora artística do evento.
Em um mundo menos cindido entre os dois polos da Guerra Fria – socialismo e capitalismo –, uma outra perspectiva começava a se firmar, aquela que atentava para uma divisão geopolítica entre Norte e Sul do globo. De um lado países ricos, especialmente da Europa e América do Norte, de outro lado países pobres ou em desenvolvimento, da América Latina, África, Ásia e Oceania. Um conceito mais preciso de Sul Global, adotado pelo Videobrasil algumas edições depois, ainda seria desenvolvido gradualmente em diferentes campos do conhecimento, mas pode-se dizer que o festival se mostrava pioneiro ao debater o assunto: “É uma tentativa de, através do vídeo, procurarmos refletir um pouco sobre as semelhanças e diferenças deste planeta”, afirmava Solange.
Assim, para além da forte presença de europeus e norte-americanos – que já haviam ganhado mostras paralelas nas edições anteriores –, o festival se abria para países de fora deste eixo em 1990. Através de exibições, debates, workshops e exposições, o evento pretendia viabilizar o “intercâmbio entre o Hemisfério Norte e o Hemisfério Sul”, questionar as possibilidades e limites desta relação e, por fim, “abrir caminho para realizadores que normalmente não têm acesso ao circuito internacional”.
Mais do que o aumento no número de mostras paralelas dedicadas a países específicos, a maior novidade foi a inclusão dos artistas estrangeiros na Mostra Competitiva, que há anos colocava frente a frente realizadores de diferentes cantos do Brasil. A decisão foi permitir a inscrição apenas de trabalhos do Sul Global, dado que o desenvolvimento do vídeo em países como EUA, Inglaterra, França, Alemanha e Japão já se dava há muito mais tempo, com estrutura e financiamento. O recorte evitava uma concorrência desleal e colocava em disputa apenas países que estavam em pé de igualdade com o Brasil. Para Solange, “seria suicida simplesmente abrir o festival para todo o mundo”.
Assim, foram selecionados 32 vídeos: 17 brasileiros, cinco argentinos, quatro australianos, dois uruguaios, dois chilenos e dois moçambicanos. O júri, também com membros estrangeiros, premiou nove trabalhos, dentre os quais estavam Poesia é uma imensa paisagem, de João Moreira Salles, um ensaio delicado feito em homenagem à poeta carioca Ana Cristina Cesar, que se suicidara aos 31 anos; Night's High Noon; an Anti-Terrain, de Peter Callas, uma colagem de animações e imagens computadorizadas sobre a história da Austrália, partindo de temas como a dominação inglesa e os conflitos raciais; e Não vou à África porque tenho plantão, uma videoarte de Eder Santos, artista que se destacava cada vez mais no Videobrasil.
O décimo prêmio foi o do júri popular, que escolheu a estética underground e irreverente da 3 Antena, uma emissora clandestina que enviou para o festival o vídeo 3 Antena: Desobstruindo os Canal Tudo!. O trabalho era uma compilação de programas exibidos pela TV pirata carioca, que usava imagens da programação regular de televisão aberta com nova sonorização e legendas, no intuito de criticar o monopólio da TV no Brasil.
Olhando para fora
Para além do programa principal, as mostras paralelas foram o grande destaque do oitavo festival. Intituladas “mostras informativas”, eram dedicadas principalmente a países do Hemisfério Norte, mas não só, e tinham a seleção de vídeos feita por curadores convidados. Dos Estados Unidos, Kathy Rae Huffman escolheu trabalhos provenientes do Contemporary Art Television Fund, criado em Boston em 1983 para comissionar a videoarte no país. Foram exibidas obras de Chip Lord, Doug Hall, Joan Jonas e Laurie Anderson, entre outros nomes expressivos no cenário mundial.
Da Alemanha vieram dois projetos, o Time Code e a Van Gogh TV. O primeiro era, na verdade, um projeto internacional, criado em 1985 por programadores de emissoras e diretores de museus da Europa para aproximar videoarte e TV. Com curadoria de Carl Ludwing Rettinger, a mostra no VB exibiu o resultado da primeira experiência do Time Code, que comissionou trabalhos de nomes como Robert Cahen, Gustav Hámos e Brenda Miller. Já a Van Gogh TV era uma espécie de coletivo de artistas e técnicos criado no Media Art Lab, em Hamburgo, e que propunha uma “pesquisa do modelo de transmissão ao vivo, buscando interação eletrônica e humana”.
Os trabalhos da França ganharam grande destaque com duas mostras. A primeira, intitulada Vídeo de autor e curada por Jean-Marie Duhard, apresentava nomes importantes da videoarte e seu diálogo possível com a TV: “As novas tecnologias podem enriquecer, transformar e regenerar a linguagem e a comunicação dessa estranha pequena objetiva que se tornou uma grande janela sobre o mundo: a televisão”, escreveu Duhard. Foram apresentados quase 50 filmes, divididos em 11 programas, alguns temáticos e outros dedicados a nomes como Dominik Barbier, Michel Jaffrennou, Marc Caro e Robert Cahen. A segunda mostra francesa foi uma seleção proposta pelo curador Pierre Bongiovanni, com obras produzidas no Centre International de Création Vidéo Montbéliard (CICV).
A Mostra Informativa inglesa foi uma das mais aguardadas, principalmente por apresentar trabalhos do Gorilla Tapes, quarteto independente que ajudou a cunhar o termo scratch video – que se referia a trabalhos de tom crítico e irônico, concebidos sob a influência da indústria da música e a partir do acesso às câmeras domésticas. “Um dos principais proponentes da ‘nova onda’ britânica foi o Gorilla Tapes, que conquistou seu espaço dentro dos corações e mentes de muitos, satirizando a direita autoritária com filmagens documentais inéditas", dizia texto do curador Robert Turnock. Participante do VB também na edição anterior, o holandês Tom van Vliet trouxe ao Brasil uma seleção de vídeos participantes do 9º World Wide Video Festival (Amsterdam, 1989), evento que em movimento similar ao do Videobrasil acabava de se abrir para países do Hemisfério Sul.
Polônia e Espanha, mais periféricos na geopolítica europeia (especialmente àquela época), estiveram pela primeira vez no VB. Do Leste, Piotr Krajewski e Sherill Howard Pociecha trouxeram sete trabalhos poloneses premiados no WRO 89 Sound Basis Visual Art Festival, de modo geral vídeos dedicados à música. Da Espanha, a curadora Rosa Méndez Zurutuza selecionou 20 obras produzidas nos anos 1980. Houve ainda uma pequena mostra da Bélgica, com três filmes escolhidos por Jean-Paul Tréfois e, do Japão, uma dezena de obras foram selecionadas por Fujiko Nakaia, diretora da Video Gallery Scan – espaço fundado em 1980 como primeiro centro de distribuição de vídeos de artistas no país asiático.
De fora do eixo Europa-EUA, duas mostras chamarem atenção para trabalhos inacessíveis no Brasil até então. Vieram de Cuba obras concebidas na Escuela Internacional de Cine Y TV de Havana (EICTV), espaço educativo original onde os alunos residentes moravam e aprendiam de modo amplo e polivalente. O argentino Hugo Kovensky foi o responsável por selecionar as oito obras do EICTV, dirigidas não só por cubanos, mas argentinos, colombianos, uruguaios e peruanos. De outro canto do mundo, vieram de Israel – com curadoria de Eli Schvadron – tanto vídeos politizados, que debatiam os traumas do Holocausto ou os conflitos no Oriente Médio, quanto trabalhos experimentais de videoarte.
A presença de tantos curadores, diretores e produtores internacionais foi aproveitada na realização dos debates e workshops. Yoichiro Kawaguchi, participante da mostra japonesa, falou sobre suas técnicas de computação gráfica, pioneiras à época, enquanto Tim Morrison ministrou curso sobre o scratch video britânico. Houve ainda duas grandes conferências que reuniram vários dos convidados para discutir a criação de um mercado alternativo para o vídeo e o uso da tecnologia na videoarte; e, por fim, para falar da relação entre as emissoras de TV e a produção independente estiveram presentes não só os estrangeiros, mas nomes como Ricardo Nauenberg, representando a Rede Globo, e Roger Karman, da recém-criada MTV Brasil.
O olhar para o exterior também resultou no convite para que duas grandes instalações fossem montadas no MIS. Do alemão Marcel Odenbach, As If Memories Could Deceive Me (1986) apresentava três monitores sobre pedestais envolvidos por sacos de lixo preto. Com imagens e áudio que remetiam à história e cultura alemãs – da música de Shumann e Wagner aos comícios do 3º Reich e aos tribunais de Nuremberg –, o artista tratava tanto da memória e identidade do país quanto de sua percepção pessoal sobre elas. Já a videoinstalação The No Way Buster Project, de Barbier e da australiana Cathy Vogan, foi uma espécie de espetáculo eletrônico carregado de símbolos apocalípticos e com forte teor melancólico, ocupando um grande espaço do museu com música, imagens, cenografia e símbolos.
Com tudo isso, a vasta cobertura da imprensa, que preencheu as páginas dos principais jornais e revistas da época, destacava a amplitude da programação e o sucesso do festival ao se abrir para o mundo: “O Fotoptica Video Festival conseguiu o mais difícil: harmonizar a exibição de vídeos produzidos no rico primeiro mundo, através da Mostra Informativa, com a competição, mais equitativa, entre produtores do Terceiro”. Mas o texto dizia também que o público - “majoritariamente de atores, diretores, publicitários e músicos, muitos com suas famílias” – havia sido menor do que no ano anterior: “O evento não atingiu a meta inicial de levar ao MIS número superior a dez mil pessoas nos sete dias de sua realização”.
Olhando para dentro
Com um olhar mais específico para o documentário de produção independente, o VB organizou ainda uma mostra paralela com 16 trabalhos que apontavam para o fortalecimento deste gênero no Brasil. Com diferentes estilos e linguagens, eles revelavam “a competência, o humor e a criatividade com que são tratadas as questões sociais, políticas e culturais do cotidiano brasileiro”, segundo o catálogo. Dirigido por Eduardo Coutinho, esteve na mostra O jogo da dívida, sobre a dívida externa latino-americana; de autoria de Goffredo Telles Neto, Narrante adentrava a vida da escritora Lygia Fagundes Telles; de Rita Moreira, Dias de euforia mostrava os dias que antecederam a disputa entre Collor e Lula; e da dupla Sergio Roizenblit e Paulo von Poser, Outras panorâmicas apresentava um exercício com estudantes de arquitetura para discutir formas de intervenção urbana.
Outros dois artistas brasileiros já habitués no Videobrasil ganharam destaque no festival, com videoinstalações inseridas nos espaços expositivos do MIS. Sandra Kogut, que foi premiada na Competitiva pelo vídeo What do you think people think Brazil is?, montou Videocabines são caixas pretas, obra que apresentava o resultado de filmagens captadas em espaços públicos do Rio.
Em cabines espalhadas pela cidade, qualquer pessoa poderia entrar e gravar um depoimento ou ação no tempo de 30 segundos. “Naquele tempo pré-internet, a ideia de que indivíduos que não se conhecem travassem um contato íntimo por meio da parafernália eletrônica era estranha, rara, polêmica”, explicou Kogut. Tadeu Jungle, por sua vez, apresentou spSPsp2, uma videoescultura inspirada na obra de Oswald de Andrade e no Manifesto futurista de Marinetti. Nela, televisores reproduziam imagens da cidade de São Paulo, representando a cultura, a tecnologia e a velocidade, enquanto dezenas de cactos se espalhavam pela sala representando a natureza, resultando “em um totem industrial que mira e é mirado pela força fotossintética das plantas”, segundo Jungle.
Pelo terceiro ano seguido, o Videojornal registrou diariamente os bastidores do festival. Com linguagem jornalística descontraída, eram vídeos de cinco a oito minutos cada, uma espécie de making of do Videobrasil filmado, editado e apresentado no próprio MIS durante o evento. Dirigido em 1988 por Hugo Prata e no ano seguinte por Pedro Vieira, o Videojornal da oitava edição tinha o comando de Roberto Berliner e Marina Abs.
Parece elucidativa a conclusão do texto de Solange para o catálogo, não só no que se refere ao contexto político-econômico pelo qual o Brasil passava, mas também ao dar pistas do que viria pela frente na trajetória do VB: “Dificuldades econômicas criaram limitações à realização do festival, impedindo que puséssemos em prática tudo o que pretendíamos”, dizia a diretora, especialmente sobre a impossibilidade de pagar as viagens de todos os realizadores para estarem em São Paulo. “Mas não deixa de ser gratificante conseguir levar a cabo este Festival num momento tão crítico, ainda mais em sua primeira versão internacional. (...) Que esta seja a primeira etapa de um riquíssimo intercâmbio entre Norte e Sul. Afinal, agora a porta já foi aberta.”
Por Marcos Grinspum Ferraz
*a nomenclatura utilizada para intitular a principal mostra organizada pelo Videobrasil, hoje chamada Bienal Sesc_Videobrasil, passou por adequações ao longo dos anos. As mudanças se deram a partir da percepção dos organizadores sobre as características de cada edição, especialmente no que se refere ao seu formato; duração; periodicidade; parcerias com outras empresas e instituições; e à expansão das linguagens artísticas apresentadas. Os principais reajustes no título das mostras foram: inserção do nome da empresa parceira Fotoptica entre a 2ª (1984) e a 8ª (1990) edições; a inclusão da palavra “internacional” entre a 8ª e a 17ª (2011) edições, a partir do momento em que o evento passa a receber de modo intensivo artistas e obras estrangeiros; o uso do termo “arte eletrônica” entre a 10ª (1994) e a 16ª (2007) edições, quando se percebe que a referência apenas ao vídeo não dava conta dos trabalhos apresentados; a inclusão do nome do Sesc, principal parceiro da mostra nas últimas três décadas, a partir da 16ª edição; e a substituição de “arte eletrônica” por “arte contemporânea” entre a 17ª edição e a 21ª (2019) edições, a partir do momento em que o foco se expande para as mais variadas linguagens artísticas. A mais recente mudança significativa se deu em 2019, na 21ª edição, quando o nome festival é substituído por bienal, termo mais adequado a um evento que já vinha sendo realizado bianualmente e com uma duração expositiva de meses, não mais semanas.
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Imagens: Acervo Histórico Videobrasil
1. Cartaz do oitavo Videobrasil, por Kiko Farkas.
Galeria 1
1. "Poesia é uma imensa paisagem", de João Moreira Salles.
2. Solange Oliveira Farkas e Kathy Rae Huffman.
3. "As If Memories Could Deceive Me", de Marcel Odenbach.
4. "Night's High Noon; an Anti-Terrain", de Peter Callas.
5. Tom van Vliet.
6. Cathy Vogan e Dominik Barbier.
7. Animação digital em 3D de Yoichiro Kawaguchi.
8. Tim Morrison.
9. Rod Stoneman.
Galeria 2
1. "The No Way Buster Project", de Dominik Barbier e Cathy Vogan.
2. Equipe do Videobrasil.
3. "3 Antena: Desobstruindo os Canal Tudo!", de 3 Antena.
4. "La tirolesa", de Gonzalo Pampin e Marcelo Iaccarino.
5. Sandra Kogut.
6. "spSPsp2", de Tadeu Jungle.
7. Cartaz do Videojornal.
8. "Não vou à África porque tenho plantão", uma videoarte de Eder Santos.
9. "What do you think people think Brazil is?", de Sandra Kogut.