VIDEOBRASIL 40 | 6º Videobrasil

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postado em 16/12/2022

Racismo, questão indígena, homofobia e ascensão das igrejas evangélicas são tematizados nos vídeos do sexto festival

Assistir aos vídeos apresentados nas primeiras edições do Videobrasil, realizadas nos anos 1980, é se deparar com visualidades e linguagens que nos transportam para outro período da história do país e do mundo. Afinal, para além de refletirem outro contexto político, social e cultural, os trabalhos foram realizados com tecnologias e técnicas bastante distintas das utilizadas no audiovisual atualmente. No caso brasileiro, no entanto, várias temáticas tratadas seguem extremamente atuais, reflexo de um país repleto de mazelas que permanecem: pobreza, desigualdade, violência policial, condições precárias de trabalho e até mesmo, nos últimos anos, a volta da fome e das ameaças à democracia. Neste sentido, com um olhar distanciado, é possível dizer que o VI Festival Fotoptica Videobrasil* chama a atenção por ter apresentado obras com temas extremamente contemporâneos, que pautam ainda hoje o debate na sociedade e no meio cultural. Entre eles, o racismo estrutural, a questão indígena, a homofobia e o avanço das igrejas evangélicas no Brasil.

 

 

Realizado entre os dias 4 e 9 de outubro de 1988 no Museu da Imagem e do Som (MIS), a edição teve 174 obras inscritas e 35 selecionadas para a Mostra Competitiva. Entre elas, Raça Negra, de Nilson Araújo, um documentário sobre a condição dos negros no Brasil desde a escravidão até os dias de hoje; Wai'a Xavante, de Paulo César Soares, um ensaio experimental sobre a expressão e as coreografias dos índios Xavantes; Temporada de caça, de Rita Moreira, vídeo que explora as narrativas criadas em torno de uma onda de crimes de homofobia ocorridos em São Paulo; e Duelo dos deuses, de Pedro Vieira, uma reportagem sobre a expansão das igrejas evangélicas no Brasil, com flashes de seus programas de TV. Eram temas que, de diferentes modos, se relacionavam com pautas tratadas na nova Constituicão, promulgada justamente na semana do festival, que reestabelecia de vez a democracia no Brasil. 

Outro eixo importante entre os selecionados era o dos trabalhos ligados à música, especialmente os videoclipes que começavam a entrar na programação televisiva e que alavancavam a carreira das jovens bandas nacionais. Assim como no ano anterior, os cariocas Sandra Kogut e Roberto Berliner seguiam se destacando, com dois trabalhos premiados na edição: o videoclipe de Juliette, no qual Fausto Fawcett e Fernanda Abreu ironizam a linguagem dos telejornais; e o de Andréa androide – poesia de Chacal musicada por Ricardo Barreto –, realizado em parceria com Eder Santos e que traz uma experimentação visual de colagens em clima de ficção científica. A dupla também apresentou o documentário V o Vídeo, gravado durante turnê dos Paralamas do Sucesso, e, fora da mostra de vídeos, Kogut expôs sua videoinstalação Cabine de vídeo #2. A obra, um espaço com sofá e um monitor que exibia imagens ao som de Brian Eno, era o início da série de Videocabines que a artista realizaria nos anos seguintes.

Ainda na Mostra Competitiva, entre os trabalhos mais identificados com a linguagem da videoarte dois tiveram grande destaque: o premiado Mentiras e humilhações, de Eder Santos, no qual uma mulher recita o poema Liquidação, de Carlos Drummond de Andrade, enquanto a câmera passeia pelos cômodos de uma casa inabitada; e II Movimento de Abertura da Sinfonia Panamérica, de Lucila Meirelles em parceria com Grima Grimaldi Pichi Martirani e Walter Silveira, baseado no livro PanAmérica (1967), uma ficção de José Agrippino de Paula considerada fundamental para o desenvolvimento da Tropicália. O vídeo era descrito como “um concerto de 3 VTs para 1 monitor”, por ter as imagens divididas em três partes da tela.

 

 

Seja nos trabalhos documentais ou experimentais, comerciais ou artísticos, o profissionalismo se sobrepôs ao amadorismo nas escolhas do júri. Em texto para o Jornal da Tarde, Gabriel Priolli, membro do júri da edição, destacava: “A comissão organizadora do festival considera que o mercado da produção independente de vídeo está consolidado no país, criou laços com a televisão e a publicidade, e tem o respeito de todo o setor audiovisual. Portanto, já não cabe mais nenhuma indulgência ou paternalismo com as boas ideias mal resolvidas nem com as superproduções que não ousam ir além do convencional. Competência é o mínimo que se exige, mas o que se premia é a criatividade”.

A constatação de um amadurecimento, quase unânime entre participantes, frequentadores e imprensa como um todo, não deixou de ser questionada por alguns, como já era de costume. Uma das opiniões mais duras veio em outra matéria do Jornal da Tarde, intitulada “Videobrasil, patinando no marasmo”. Em uma passagem, o texto dizia: “Na noite de abertura do evento, a plateia permaneceu indiferente, incapaz de vaias ou aplausos – quase uma confirmação para a tese de que o vídeo é tão instantâneo e descartável quanto embalagem one way”. O fato é que o artigo – que começava ironizando os cabelos “estrategicamente arrepiados” dos videomakers – parecia destilar, mais do que críticas às obras, certo preconceito com a nova geração do vídeo e seu modo de ser: “No encontro anual da casta de videomakers, eles estavam contentes em bebericar e discutir o dilema da produção independente”.

 

O vídeo estrangeiro no Brasil

Dando sequência a internacionalização do Videobrasil, que já havia instituído relevantes mostras estrangeiras nos dois anos anteriores – apresentando nomes como Nan June Paik e Ira Schneider –, o sexto festival teve programações dedicadas à trabalhos da Inglaterra, Alemanha e EUA. Os grandes destaques foram os norte-americanos Mindy Faber, Aysha Quinn e Daniel Minahan. A primeira, curadora e diretora do Video Data Bank de Chicago, selecionou trabalhos de videoarte que apresentavam visões de mundo distópicas. Entre eles estava Control Break, da própria Faber, um vídeo que mostrava um Estados Unidos futurista e ao mesmo tempo fascista, uma nação de pessoas condenadas à impotência. Já a mostra dedicada à diretora, performer e atriz Aysha Quinn – com curadoria de Geraldo Anhaia Mello – era uma retrospectiva com sete de seus vídeos experimentais realizados entre os anos 1970 e 1980. 

Por fim, a mostra do jovem diretor Daniel Minahan – hoje um consagrado diretor de grandes séries de TV – apresentou dois de seus trabalhos em que realidade e ficção se misturavam. No ano seguinte, Minahan organizaria a primeira mostra de vídeos brasileirosem Nova York, no The Kitchen, intitulada Videobrasil Social and Experimental Tapes. Curada por Solange Oliveira Farkas e Marcelo Machado e com obras de Tadeu Jungle, Olhar Eletrônico e TV Viva, entre outros, ela seria um importante passo na divulgação da produção nacional em outros cantos do mundo. Ainda no caminho da internacionalização, outra iniciativa que marcou a sexta edição do festival foi a concessão de uma bolsa de estudos nos EUA para Pedro Vieira e de uma viagem para Rita Moreira participar do 10º Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano, em Cuba. Era o início de uma política do Videobrasil de premiar os realizadores com viagens, bolsas e residências artísticas, algo se tornou eixo central no trabalho de instituições culturais para o incentivo à carreira de jovens artistas. 

 

 

Outra novidade marcante foi o Videojornal, um boletim diário realizado em parceria com a TV Gazeta e dedicado à programação do festival. Produzido dentro do próprio museu ao longo dos dias, tratava-se de uma espécie de cobertura informativa e descontraída do evento. Com direção de Hugo Prata, textos de Gabriel Priolli, câmera de Anhaia Mello e apresentação de Astrid Fontenelle, o boletim trazia entrevistas com artistas e público, retrospectivas e exibição das premiações. O Videojornal era produzido em um miniestúdio com equipamento super-VHS e transmitia as imagens para boa parte dos 80 monitores espalhados pelo MIS durante o festival. A partir deste ano, a prática de gravar entrevistas com os artistas se estabeleceu de vez, resultando em um vasto material que integra o Acervo Videobrasil ao lado das obras em vídeo.

Vale destacar, ainda, que durante o sexto Videobrasil Arlindo Machado lançou seu livro A arte do vídeo (Editora Brasiliense), o primeiro de uma série de ensaios que o pesquisador e crítico de arte publicaria sobre o tema. O trabalho tem notável importância pelo fato de Machado ter sido o primeiro teórico a se debruçar sobre a produção brasileira de vídeo, especialmente aquela realizada nos anos 1980. Por fim, o projeto de itinerância do Videobrasil, iniciado em 1987, teve continuidade e levou os vídeos premiados para exibição em cidades do Rio de Janeiro, Maranhão, Acre, Bahia, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul.

Em ano de aprovação da nova Constituição e na aproximação da primeira eleição direta para presidente após quase três décadas, o Videobrasil de 1988 respondia a um momento incerto, porém esperançoso, do país. O texto de Thomaz Farkas para o catálogo expressa um pouco deste sentimento: “Graças ao festival, notamos, ao percorrer mostras, salas de vídeo e cinemas, um renovado interesse por material ‘não-longo’, como clips, curta-metragens e documentários. Em vez de um público minguado, desestimulado, apático, encontramos casas lotadas, gente interessada, questionando, aplaudindo, vibrando. (...) Existe no ar um clima de renovação e, porque não, de irreverência. Será este um índice de um estado de espírito geral? Será uma nova esperança? Quem sabe seja uma otimista contestação ‘pra cima’, mudança de astral. Tomara!”.

 

Por Marcos Grinspum Ferraz

*a nomenclatura utilizada para intitular a principal mostra organizada pelo Videobrasil, hoje chamada Bienal Sesc_Videobrasil, passou por adequações ao longo dos anos. As mudanças se deram a partir da percepção dos organizadores sobre as características de cada edição, especialmente no que se refere ao seu formato; duração; periodicidade; parcerias com outras empresas e instituições; e à expansão das linguagens artísticas apresentadas. Os principais reajustes no título das mostras foram: inserção do nome da empresa parceira Fotoptica entre a 2ª (1984) e a 8ª (1990) edições; a inclusão da palavra “internacional” entre a 8ª e a 17ª (2011) edições, a partir do momento em que o evento passa a receber de modo intensivo artistas e obras estrangeiros; o uso do termo “arte eletrônica” entre a 10ª (1994) e a 16ª (2007) edições, quando se percebe que a referência apenas ao vídeo não dava conta dos trabalhos apresentados; a inclusão do nome do Sesc, principal parceiro da mostra nas últimas três décadas, a partir da 16ª edição; e a substituição de “arte eletrônica” por “arte contemporânea” entre a 17ª edição e a 21ª (2019) edições, a partir do momento em que o foco se expande para as mais variadas linguagens artísticas. A mais recente mudança significativa se deu em 2019, na 21ª edição, quando o nome festival é substituído por bienal, termo mais adequado a um evento que já vinha sendo realizado bianualmente e com uma duração expositiva de meses, não mais semanas.

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Imagens: Acervo Histórico Videobrasil

1. Cartaz do sexto Videobrasil, por Kiko Farkas.

Galeria 1
1. “Wai'a Xavante”, de Paulo César Soares.
2. Pedro Vieira recebendo prêmio.
3. “Duelo dos deuses”, de Pedro Vieira.
4. “Juliette”, de Sandra Kogut e Roberto Berliner.
5. Jayme Paez, Daniel Minahan e Solange Oliveira Farkas.
6. “Temporada de caça”, de Rita Moreira.
7. Cartaz na mostra “Videobrasil Social and Experimental Tapes” (Nova York).

Galeria 2
1. Gravação do Videojornal.
2. Hugo Prata e a equipe do Videojornal.
3. “II Movimento de Abertura da Sinfonia Panamérica”, de Lucila Meirelles.
4. Público do festival.
5. Teté Martinho e Gabriel Priolli.
6. “Mentiras e humilhações”, de Eder Santos.