VIDEOBRASIL 40 | 4º Videobrasil
Após fim da ditadura, Videobrasil reflete nova realidade brasileira e se abre para o mundo
Em 1986, o Videobrasil já estava incorporado ao calendário cultural do país. Sua realização, anual à época, era aguardada entre realizadores de vídeo, produtoras, artistas, executivos de TV, público e imprensa. Talvez por isso o IV Festival Fotoptica Videobrasil* tenha chamado tanta atenção, com um número recorde de inscritos, uma audiência numerosa nas exibições e intensa cobertura da mídia especializada. Pode-se dizer ainda que, para além do destaque que o festival já havia conquistado, algumas particularidades da edição o fizeram notável: entre elas, uma grandiosa performance de José Roberto Aguilar; o passo dado rumo a internacionalização do evento; e até mesmo uma polêmica na premiação.
Realizado entre os dias 25 e 31 de agosto de 1986, novamente no Museu da Imagem e do Som (MIS) após um ano no Teatro Sérgio Cardoso, o quarto Videobrasil teve abertura marcada por “uma louca performance de Aguilar”, como descreveu o Estado de S.Paulo à época. Em uma homenagem – um tanto satírica – ao trabalho do artista búlgaro Christo, conhecido por embrulhar edifícios, pontes e até trechos de praias, Aguilar cobriu o recém-reformado museu com centenas de metros de plástico preto e o desembrulhou na frente do público paulistano. Tratava-se de uma “metáfora para o desvendamento do olhar”, segundo o artista. “Desembrulhar o MIS transforma o museu em objeto novo para o público, algo semelhante ao que sinto em relação aos trabalhos em vídeo, sempre uma descoberta.” No festival, Aguilar ganharia destaque também com a mostra O olho do diabo, curada por Lucila Meirelles e Walter Silveira e dedicada à sua produção eletrônica realizada entre 1974 e 1984, uma das mais inovadoras e experimentais da primeira fase do vídeo no Brasil.
Outra particularidade do festival que chamou atenção foi o foco dado à produção internacional. Se trabalhos estrangeiros ainda não participaram da mostra competitiva (o que passaria a acontecer na oitava edição, em 1990), exibições paralelas trouxeram ao Brasil obras de cinco países, a maioria inéditas por aqui. Da Alemanha, a mostra Alternativas de Vídeo, organizada pelo Instituto Goethe de Munique, reuniu sete produções não comerciais de forte teor político e social; do Canadá, a mostra Recent Canadian Video reuniu também sete trabalhos, realizados por artistas que integraram a 14ª Bienal de São Paulo, de 1977; da França, foram apresentados cerca de 30 vídeos produzidos entre 1982 e 1984; a mostra inglesa, por sua vez, fruto de uma parceria com o British Council, contou com uma seleção de 18 vídeos de realizadores independentes produzidos pela London Video Art.
Uma seleção bem mais ampla, feita sob curadoria de Tadeu Jungle, foi apresentada na mostra norte-americana. Foram 80 trabalhos trazidos da Video Data Bank, de Chicago, à época uma das maiores distribuidoras de videoarte dos Estados Unidos. O programa foi dividido em oito séries que tratavam de temas como a vida moderna, as linguagens artísticas contemporâneas, as questões femininas ou os trabalhos dos músicos John Cage e Laurie Anderson. O texto de Jungle no catálogo do festival era enfático sobre a importância da exibição: “Nada conhecemos da produção videográfica internacional. Não há publicações acessíveis. Escolas superiores inferiores. Descaso. Acaso de um modus kulturalis. (...) A Mostra Norte-americana de Vídeo Contemporâneo acontece em nome da informação. Alimento rumo a alternativas. Continua a busca por oxigênio. Receber e veicular. Livre tráfego de informação”.
Experimentalismo e documental
Mesmo com o grande destaque destas exibições internacionais, as atenções do público seguiam voltadas – como nos primeiros anos – principalmente para a Mostra Competitiva, que mobilizava artistas nacionais de cada vez mais regiões do país. O quarto Videobrasil teve 192 trabalhos inscritos, número recorde até então, mas focou em uma seleção mais rigorosa para selecionar os 40 competidores (em 1985 haviam sido 60). Entre os escolhidos estavam obras de Carlos Porto, Christine Mello, Eder Santos, Francisco César Filho, José Luiz Nogueira, Laís Guaraldo, Luiz Algarra, Luiz Claudio Lins, Moysés Baumstein, Tata Amaral e uma série de outros que serão citados abaixo.
A produção apresentada, segundo avaliação do júri, tendia menos para a ficção, destacada no ano anterior, e caminhava principalmente para o experimental e o documental. Do primeiro gênero pode-se destacar trabalhos como Mergulho, de Marina Abs, vídeo que dilata o tempo de um salto ornamental; e A pedra ouve passar o vento, de Leonardo Crescenti, trabalho de videoarte com imagens em close de corpos de bailarinos. Além deles, chamou atenção o grande número de videoclipes e outros trabalhos ligados à música, especialmente o pop rock dos anos 1980, como Autorretrato, de Ana Maria Escalada e Katia Penn, que apresenta depoimentos e performances de Arnaldo Antunes; e Extasis, de André Martirani, Caio França e Conecta Video, que registra a turnê brasileira da estrela alemã Nina Hagen. Entre os clipes estavam Música Urbana (da banda Capital Inicial), assinado por FACHA e Malu de Martino; Lena (Camisa de Vênus), realizado por Toniko Melo e Olhar Eletrônico; e Farofada (Ultraje a Rigor), da TV Viva.
Dos trabalhos documentais destacaram-se Hia sá-sá-hai yah, de Olga Futemma, vídeo que conta a história de imigrantes vindos de Okinawa (Japão) e mostra o papel da dança e da música na preservação de sua identidade; Do outro lado da sua casa, do Olhar Eletrônico, reportagem sobre moradores de rua conduzida por um catador de papelão; Contrário do Amor, de Jacira Melo, sobre a violência doméstica contra a mulher; e 100 terra, de Geraldo Anhaia Mello e Paulo Baroukh, um minidocumentário sobre um acampamento dos sem terra no Pontal do Paranapanema. As obras refletiam uma realidade paradoxal do país, por um lado tomado por ares mais democráticos – após 21 anos de ditadura civil-militar (1964-1985) –, por outro extremamente marcado pela desigualdade, miséria e violência social.
A polêmica na premiação se deu por conta de uma mudança de última hora na regra que estabelecia prêmios separados para obras em VHS e U-matic (as duas principais tecnologias de produção de vídeo utilizadas à época). Alegando baixa qualidade dos trabalhos em VHS, o júri premiou dois vídeos em U-matic – o já citado Hia sá-sá-hai yah e o VT preparado AC/JC, de Walter Silveira, Pedro Vieira e TVDO. A imprensa cobrou, chegando a chamar o ocorrido de “vergonhoso”. Na Folha de S.Paulo, outro artigo dizia que os trabalhos apresentados na edição tinham “apuro técnico sem originalidade”. Mas a ampla cobertura da mídia foi, de modo geral, positiva, como se nota em matéria do jornal A Tarde – IV Videobrasil foi uma festa da criatividade – ou na resenha escrita no Estadão por Cláudio Ocri, para quem “contratempos não comprometeram o sucesso do festival, (...) que marcou mais uma etapa na história do vídeo no Brasil”.
Atividades paralelas e debates
Outra iniciativa do quarto Videobrasil foi a apresentação dos trabalhos da TV Bixiga e da TV Pelourinho, criadas pelos moradores dos bairros de São Paulo e de Salvador, respectivamente, e que mostravam a vida, história e atividades culturais desses locais. Um pequeno espaço do MIS, nomeado Vídeo Bar, apresentou também uma pequena exposição sobre computação gráfica, “cada vez mais incorporada ao cotidiano urbano-televisivo” – como descreve o texto do catálogo. Intitulada Videographics, a mostra expôs trabalhos de empresas especializadas como Art Sistemas, Neo Comunicações, Palette, Pixxel e Vetor Zero. Houve ainda uma exposição com curadoria de Roberto Amado dedicada ao trabalho inovador dos fotógrafos Milton Montenegro, Carlos Fadon Vicente e Kenji. Alquimistas da imagem mostrava as obras destes três artistas que começavam a trabalhar com imagens computadorizadas, buscando expandir os limites do que era a fotografia até então. Otávio Donasci, figura marcante nas edições anteriores do festival, esteve mais uma vez presente com suas performances das videocriaturas.
Os debates e seminários, por sua vez, aprofundaram questões levantadas no terceiro Videobrasil. Coordenados por Gabriel Priolli, Paulo Nasser e APTI (Associação Paulista de Teleprodutores Independentes), deram sequência a discussões sobre a democratização dos meios de radiodifusão e a luta contra o monopólio dos grandes grupos de comunicação – ligada à campanha pela concessão de um canal UHF para a produção independente, a Antena Livre. Outra mesa redonda, coordenada por Alberto Baumstein, discutiu as políticas de financiamento da produção cultural. Neste sentido, uma conquista do setor foi a realização, no festival, do 2º Prêmio Estímulo de Vídeo, patrocinado pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, que selecionou dez roteiros e financiou a realização das obras. Deste modo, o vídeo continuava a conquistar os “espaços oficiais”, ligados seja à TV aberta ou ao Estado.
O caminho do vídeo para além do universo independente já não tinha volta, como fica claro no texto de Roberto Muylaert, então presidente da Fundação Padre Anchieta, no catálogo do festival: “Uma das perguntas mais frequentes que tenho ouvido é se haverá ou não espaço na TV Cultura para novos profissionais de televisão e produtores independentes. Mais do que uma mera resposta, esta pergunta gera uma afirmação mais ampla, um postulado: a própria TV Cultura precisa ser uma produtora independente, na mais real acepção dessas palavras”. As rápidas transformações vividas na primeira metade dos anos 1980 também estavam descritas no texto de Henrique de Macedo Netto, vice-presidente da Fotoptica: “Apenas na sua quarta edição, o Videobrasil já é o mais importante veículo da produção independente em vídeo no Brasil. Muitos produtores, a partir de suas apresentações nesse festival, já se profissionalizaram e encontraram espaço até mesmo na TV comercial”.
Por Marcos Grinspum Ferraz
*a nomenclatura utilizada para intitular a principal mostra organizada pelo Videobrasil, hoje chamada Bienal Sesc_Videobrasil, passou por adequações ao longo dos anos. As mudanças se deram a partir da percepção dos organizadores sobre as características de cada edição, especialmente no que se refere ao seu formato; duração; periodicidade; parcerias com outras empresas e instituições; e à expansão das linguagens artísticas apresentadas. Os principais reajustes no título das mostras foram: inserção do nome da empresa parceira Fotoptica entre a 2ª (1984) e a 8ª (1990) edições; a inclusão da palavra “internacional” entre a 8ª e a 17ª (2011) edições, a partir do momento em que o evento passa a receber de modo intensivo artistas e obras estrangeiros; o uso do termo “arte eletrônica” entre a 10ª (1994) e a 16ª (2007) edições, quando se percebe que a referência apenas ao vídeo não dava conta dos trabalhos apresentados; a inclusão do nome do Sesc, principal parceiro da mostra nas últimas três décadas, a partir da 16ª edição; e a substituição de “arte eletrônica” por “arte contemporânea” entre a 17ª edição e a 21ª (2019) edições, a partir do momento em que o foco se expande para as mais variadas linguagens artísticas. A mais recente mudança significativa se deu em 2019, na 21ª edição, quando o nome festival é substituído por bienal, termo mais adequado a um evento que já vinha sendo realizado bianualmente e com uma duração expositiva de meses, não mais semanas.
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Imagens: Acervo Histórico Videobrasil
1. Cartaz do quarto Videobrasil, por Kiko Farkas.
Galeria 1
1. José Roberto Aguilar. Crédito: Armando Fávaro/ Visão.
2. “Anti-Christo”, de Aguilar.
3. “Do outro lado da sua casa”, do Olhar Eletrônico.
4. Lucila Meirelles e Walter Silveira.
5. “Hia sá-sá-hai yah”, de Olga Futemma.
6. “VT preparado AC/JC”, de Walter Silveira e TVDO.
Galeria 2
1. “Autorretrato”, de Ana Maria Escalada e Katia Penn.
2. “Contrário do Amor”, de Jacira Melo.
3. Espaço expositivo do MIS.
4. As “videocriaturas” de Otávio Donasci.
5. Marcos Gaiarsa, da Fotoptica.
6. “Um homem precário”, de Luiz Claudio Lins.