As Histórias Renegadas: Memórias Indígenas e Africanas

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postado em 19/11/2014
Agustín Pérez Rubio, Ayrson Heráclito e Rosângela Rennó participam de encontro no encerramento dos Programas Públicos da exposição Memórias Inapagáveis – Um Olhar Histórico no Acervo Videobrasil. Atividade conta com apresentação da performance Batendo Amalá, de Ayrson Heráclito

No dia 29 de novembro de 2014, sábado, às 16h, no Galpão do Sesc Pompeia, os artistas Ayrson Heráclito, Rosângela Rennó e o curador Agustín Pérez Rubio debatem a invisibilidade e a marginalização impostas às populações de ascendência africana e indígena nos discursos da História e da Arte – para além da marginalidade social gritante, embora velada. O encontro marca o encerramento das atividades dos Programas Públicos da exposição Memórias Inapagáveis – Um Olhar Histórico no Acervo Videobrasil, com curadoria de Pérez Rubio e realização da Associação Cultural Videobrasil e do Sesc São Paulo. A mostra apresenta 18 obras da coleção do Videobrasil, produzidas da década de 1980 aos dias atuais, que expõem a força das narrativas pessoais e dos dissensos na construção da memória de países marcados por conflitos históricos – entre elas, Vera Cruz, de Rennó, e Barrueco, de Heráclito e Danillo Barata. Após a discussão, aberta ao público, Heráclito apresenta pela primeira vez em São Paulo a performance Batendo Amalá, inspirada em religião de matriz africana. Memórias Inapagáveis fica em cartaz no Galpão do Sesc Pompeia somente até o dia seguinte ao encontro, 30 de novembro (domingo).

O espanhol Agustín Pérez Rubio – atual diretor artístico do Museu de Arte Latinoamericana de Buenos Aires (MALBA) e primeiro curador convidado pela Associação Cultural Videobrasil a  fazer uma exposição a partir da imersão em seu acervo –, comenta os ecos da colonização sobre a contemporaneidade enumerando a cíclica negligência das demandas indígenas e o racismo atual, vestígio da mácula da escravidão africana. “É vital refletirmos sobre a forma como a história desses conflitos está sendo vista a partir de um presente em que tudo parece longínquo e passado, mas no qual as questões de raça, gênero, escravidão, fronteiras e guerras seguem existindo”, aponta o curador.

De fato, as questões propostas pela exposição e retomadas no último encontro dos Programas Públicos são particularmente atuais e oportunas. O mês de novembro foi reconhecido como o “Mês da Consciência Negra” por conta da tardia instituição, em 2011, do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Celebrada anualmente em 20 de novembro, dia do falecimento do líder negro Zumbi dos Palmares, a data provoca considerações sobre a desigualdade racial e os desafios enfrentados pela população negra. Este ano, Tribunais de Justiça de diferentes regiões do país não reconheceram ou propuseram a suspensão do feriado, prezando pelos interesses do comércio local ou ignorando sua relevância.

A população indígena também ganhou a atenção da grande mídia em episódios recentes, embora siga incompreendida a extensão dos crimes cometidos pela política repressora e desenvolvimentista no Brasil. Ao menos nas redes sociais, fez história uma outra carta, redigida 512 anos depois da de Pero Vaz de Caminha, em 2012, pelos Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Grande parte da sociedade brasileira se mobilizou contra a ordem judicial de despejo contra cerca de 170 indígenas desta etnia. No ano seguinte, 2013, o assentamento chamado de “Aldeia Maracanã” foi desocupado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro durante as preparações para a Copa do Mundo da FIFA. E o comprometimento com os povos indígenas foi pauta das últimas eleições presidenciais, contribuindo com os rumos do segundo turno quando Marina Silva o colocou como condição imprescindível para formalizar seu apoio ao candidato Aécio Neves.

A exposição Memórias Inapagáveis – Um Olhar Histórico no Acervo Videobrasil suscita a reflexão sobre estas questões a partir da seleção de obras em vídeo, videoinstalações e registros de performances que se relacionam com os temas. Vera Cruz (2000) é o primeiro trabalho em vídeo de Rosângela Rennó. A obra, produzida à época das comemorações dos 500 anos do “descobrimento” do Brasil, se baseia e reinterpreta a carta de Pero Vaz de Caminha, primeiro documento escrito do país, para o Rei de Portugal. Assim como a história que tomamos como oficial, a obra possibilita acesso apenas à versão dos lusitanos sobre o encontro com os nativos da terra que se tornaria o Brasil. “A história está sempre ancorada nos documentos (…). Entretanto, qualquer investigação feita a partir de documentos antigos e vestígios de um tempo remoto é sempre lacunar. (…) Muitas vezes instituições e poderes vigentes se utilizam da precariedade e das lacunas para reescrever ou editar a história segundo agendas específicas e é justamente isso que deve tornar-se objeto de observação, pesquisa e até denúncia”, afirmou a artista em depoimento disponível na íntegra na PLATAFORMA:VB.


O “holocausto da escravidão” e a performance inspirada em Xangô, orixá da Justiça

O artista baiano Ayrson Heráclito participa da exposição com Barrueco, vídeo criado em 2004 em parceria com Danillo Barata. A obra reconta o tráfico de escravos africanos a partir de um complexo de referências materiais, musicais, pictóricas e textuais. O azeite de dendê, reiteradamente empregado em sua produção artística, é utilizado no filme como metáfora do oceano por suas ligações objetivas e mítico-simbólicas com a terra-mãe. “Fico muito feliz quando vejo uma exposição como esta, que fala ‘não esqueça da sua dor, torne produtivo esse estorvo’”, declara o artista, em depoimento disponível no Canal VB.

A performance Batendo Amalá – que será apresentada após o debate no Galpão do Sesc Pompeia, dentro da Zona de Reflexão –, é desdobramento da sua pesquisa sobre a herança e as influências históricas, culturais, sociais e religiosas da chegada dos africanos ao Brasil e, em especial, à Bahia. Para além das tradições de origem africana, Heráclito pesquisa o nascimento de uma cultura afro-brasileira, tanto no circuito de arte contemporânea, quanto na academia, como professor titular da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Na ação performática, o artista prepara o “ajebó”, comida ritual votiva de Xangô, divindade do candomblé  relacionada à Justiça, enquanto evoca seus pedidos pessoais. “Dentro do contexto desta exposição, espero que o ritual suscite um sentimento que propicie algum tipo de cura dessas mazelas que nos atingiram, principalmente a diáspora africana advinda da escravidão. Quando abordo a escravidão através da arte, anseio por apaziguar as dores dessa memória sem escondê-la. Faz parte do meu objetivo como artista trabalhar essa dor brasileira, nordestina, por meio da arte – estetizar as feridas, conviver com elas, e não esquecê-las”, declara o artista. “É como um pedido para que Xangô lance seu sentido de justiça sobre os fatos ocorridos”, completa Heráclito. Batendo Amalá foi apresentada pela primeira vez durante o seminário “Corpo em Prospecção 2 – Performance art e intercâmbios artísticos”, realizado em 2011 na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. No mesmo ano, fez parte da programação da mostra Corpo Aberto Corpo Fechado, apresentada na Galeria Cañizares, da Universidade Federal da Bahia.

O registro da performance recriada em estúdio, em 2013, foi doado por Heráclito ao Acervo Videobrasil. Trata-se de uma videoinstalação de dois canais que revelou novas questões ao artista. “Não se trata do vídeo como registro apresentando o que foi a performance, mas ressignificando a minha ação”, pondera. “Com a videoinstalação, pretendi trazer um pouco do universo e da sensação de estar presente”. A obra é composta por duas telas, montadas juntas em uma mesma parede, tendo uma duração de aproximadamente seis minutos em loop. Além de Barrueco, em cartaz na exposição Memórias Inapagáveis – Um Olhar Histórico no Acervo Videobrasil, e de Batendo Amalá, nova doação de Ayrson Heráclito, o Acervo Videobrasil hoje conta com outras três obras do artista: As Mãos do Epô (2007), Buruburu (2010) e Funfun (2012).


Exposição dá visibilidade à diversidade e potência da coleção de 1300 obras produzidas por artistas do Sul global

Os vídeos de Rosângela Rennó e Ayrson Heráclito dialogam intimamente com outros trabalhos que formam a exposição Memórias Inapagáveis. As obras de Luiz de Abreu (O Samba do Crioulo Doido), Mwangi Hutter (My Possession) e Dan Halter (Untitled – Zimbabwean Queen of Rave) tratam de diferentes reivindicações da identidade negra. A performance de Luiz de Abreu foi vencedora da 18ª edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, em 2013. Já a invisibilidade social enfrentada pelas populações indígenas e sua insuficiência diante de grandes interesses políticos e econômicos é tema também de A Arca dos Zo’é, de Vincent Carelli e Dominique Gallois, e O Sangue da Terra, de Aurélio Michiles. Michiles participou da primeira mesa dos Programas Públicos da exposição, que tratava do tópico “Como combater a amnésia histórica a partir da arte? Responsabilidade e compromisso artístico”. O filme A Arca dos Zo’é, de Vicent Carelli e Dominique Gallois, foi criado por cineastas indígenas da tribo Waiãpi (Amapá). A obra documenta a viagem de Wai Wai, chefe da tribo Waiãpi, e de sua equipe de filmagem até a aldeia dos Zo’é, no Pará. Wai Wai teve contato com a cultura dos Zo’é através da televisão. Eles lhe pareciam manter tradições já perdidas por sua tribo, em frequente contato com o homem branco. Sua intenção era mostrar aos jovens Wai Wai os hábitos de seus ancestrais por meio dos registros em filme do dia-a-dia dos Zo'é. Um dos contatos da tribo, inclusive, era com a equipe da Organização não governamental Vídeo nas Aldeias. Fundada por Vincent Carelli em 1986, a ONG garante suporte, acesso a equipamentos e distribuição de suas obras em vídeo, democratizando a produção audiovisual e permitindo que os indígenas se tornem sujeitos ativos do retrato da sua realidade. "No Brasil, uma série de investigações tem revisto as maneiras de fazer essa história (...). Não basta dar aos povos nativos ora o papel de vítimas passivas, ora o de heróis que lutam pela conservação de sua cultura, entendida como essência imutável. Em questão está reconsiderar a maneira indígena de pensar e fazer história, uma outra história”, escreveu a antropóloga Lilia Schwarcz, em ensaio sobre a obra de Carelli e Gallois publicado no livro da exposição Memórias Inapagáveis – Um Olhar Histórico no Acervo Videobrasil, lançado em outubro e disponível para venda nas unidades e na livraria virtual do Sesc São Paulo.  

Mas a exposição reúne ainda outras obras da coleção da Associação que contribuem para o resgate de episódios e conflitos normalmente interpretados a partir do discurso oficial, dos narradores vitoriosos, mas que resistem em narrativas pessoais e são difundidas por meio da arte. O atentado às Torres Gêmeas, o apartheid sul-africano, o massacre na Praça da Paz Celestial e diferentes guerras civis são episódios retomados em testemunhos pessoais de artistas que vêm de países como Argentina, Brasil, China, Colômbia, EUA, Marrocos, Quênia, Líbano e Zimbábue nas obras selecionadas por Agustín Pérez Rubio. São eles Akram Zaatari, Bouchra Khalili, Carlos Motta, Coco Fusco, Enio Staub, Jonathas de Andrade, León Ferrari & Ricardo Pons, Liu Wei, Rabih Mroué, Sebastián Diaz Morales e Walid Raad.

Produzidos da década de 1980 aos dias de hoje, estes trabalhos formam uma pequena amostra do diversificado e rico universo das obras do Acervo Videobrasil. Segundo Solange Farkas, fundadora e diretora da Associação, embora incorpore clássicos da videoarte internacional, a grande força do Acervo é reunir a memória da produção audiovisual do Sul geopolítico do mundo, foco da mostra Panoramas do Sul do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil - universo composto por países da América Latina, Caribe, África, Oriente Médio, parte da Europa, Ásia e Oceania. “A riqueza das discussões promovidas pelos encontros dos Programas Públicos e pelos ensaios que compõem o livro da exposição, ao lado dos retornos que tivemos do público e da crítica, destacaram a relevância dos temas e a força, atualidade e a diversidade da produção destes artistas, que apesar de viverem em regiões tão diferentes, têm em comum o engajamento com a realidade política e social de seus países”, afirma Solange.

Além das obras da exposição, o público que visitar o Galpão do Sesc Pompeia pode assistir às obras do Acervo Videobrasil na Videoteca, instalada em computadores na Zona de Reflexão, espaço que concentra as diferentes ações educativas e dos Programas Públicos que ativam e aprofundam a experiência da exposição. A Videoteca disponibiliza cerca de 1.300 obras em vídeo, videoinstalações e registros de performance, além de 254 registros editados e 7 documentários da série Videobrasil Coleção de Autores, reunidos pela Associação ao longo de mais de 30 anos. São produções que olham para o amplo e ambíguo contexto contemporâneo do Sul geopolítico e que passaram a fazer parte da coleção por uma política de aquisição que contempla os trabalhos selecionados a cada dois anos por meio do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil  (organizado pela parceria entre o Sesc São Paulo e a Associação Cultural Videobrasil), e obras doadas por artistas que dizem respeito aos interesses de sua direção artística.


SERVIÇO:

O QUÊ: Mesa “As Histórias Renegadas: Memórias Indígenas e Africanas” – com os artistas Rosângela Rennó e Ayrson Heráclito e o curador Agustín Pérez Rubio + performance Batendo Amalá, de Ayrson Heráclito
Quando: 29 de novembro de 2014 (sábado), 16h
Onde: Zona de Reflexão | Galpão do Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93, Pompeia)
Entrada Franca

O QUÊ: exposição Memórias Inapagáveis – Um Olhar Histórico no Acervo Videobrasil
Visitação:
até 30 de novembro de 2014 | de terça a sábado, das 10 as 22h, domingos e feriados, das 10 as 20h
Onde: Galpão do Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93, Pompeia)
Entrada franca