Ayrson Heráclito & Danillo Barata

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postado em 28/08/2014
Parceria entre artistas é motivada pelo legado do tráfico negreiro

A pesquisa de Ayrson Heráclito aborda a herança e as influências históricas, culturais, sociais e religiosas da chegada dos africanos ao Brasil e, em especial, à Bahia. Para além das tradições de origem africana, Heráclito reflete sobre o nascimento da cultura afro-brasileira. Em vídeos, instalações e performances, Ayrson emprega materiais emblemáticos do que ele chama, em relato à PLATAFORMA:VB, de “corpo cultural baiano” marcado pela escravidão. Azeite de dendê, açúcar e charque estão entre os elementos que o artista utiliza, e são intimamente ligados à história escravista. Em sua produção audiovisual, Danillo Barata investiga o corpo em relação ao mundo e como portador de história, convenções sociais, memórias pessoais e coletivas, por meio de vídeos e videoinstalações.


Os artistas se uniram na criação de Barrueco (2004), que faz parte do Acervo Videobrasil desde sua participação na 15ª edição do Festival (2005). Os elementos que compõem o vídeo são saturados de referências ao continente africano e à memória da escravidão, tendo o oceano como assunto central. O oceano em Barrueco é feito de óleo de dendê. A pintura O navio negreiro (1840), de J. M. W. Turner, aparece e desaparece gradualmente. O vídeo é pontuado por versos do poema Divisor, de Mira Albuquerque (“É oceânica a solidão negra./Foi atlântico o medo do mar.”), enquanto a música Black Is the Colour (Of My True Love’s Hair), cantada por Nina Simone, embala a narrativa.

De acordo com Gabriela Salgado, curadora que assina ensaio sobre a obra no livro Memórias Inapagáveis, “o terror do oceano imenso” alterou a história de ao menos nove milhões de pessoas escravizadas. Do oceano, vêm as pérolas: o termo em espanhol barrueco designa a pérola imperfeita. “Me interessava pensar a ideia de uma beleza impura, não clássica. Algo complexo, mestiço, que é o fenômeno cultural brasileiro, e especificamente as dinâmicas que são criadas a partir da vinda de africanos”, declara Ayrson à PLATAFORMA:VB.

A pintura de Turner menciona o episódio de 1781, quando, para poupar água potável durante a travessia do Atlântico Norte, mais de 140 escravos africanos foram jogados ao mar pela tripulação de um navio britânico. A música tradicional Black Is the Colour (Of My True Love’s Hair) tem a letra adaptada e ganha novos contornos na interpretação da cantora e ativista Nina Simone – afrodescendente, vale frisar.


Ayrson discorre sobre os diferentes usos e sentidos do óleo de palma como ponto de partida para a compreensão de emblemas da cultura afro-baiana

Finalmente, o dendezeiro, nativo da Costa Ocidental da África, foi trazido ao Brasil nos mesmos navios que transportavam pessoas. Amplamente utilizado na culinária e nos cultos religiosos, o azeite de dendê é descrito pelo artista, em depoimento ao Canal VB, como “o sangue vegetal, o sangue ancestral, o esperma dourado de Exu” e tem ligações objetivas e mítico-simbólicas com a terra-mãe. Na 18ª edição do Festival, Heráclito participou do encontro dos Programas Públicos que abordou o tema Natureza Mágica, ao lado de artistas como Bakary Diallo (1979-2014) e Roberto Winter, com mediação do curador Pablo Lafuente. Nele, o artista afirmou que “essa relação da arte e magia sempre existiu, mesmo depois da dessacralização do mundo”.

Barrueco evidencia como o presente é, inescapavelmente, saldo de processos históricos – mesmo daqueles que acreditamos ter superado. Ao empregar o corpo negro “como veículo de conhecimento e sabedoria tradicional, os artistas exibem as ferramentas fundamentais da resistência e da descolonização, em meio ao preconceito, à invisibilidade e à opressão dominantes”, frisa Gabriela Salgado. Para Heráclito, mazelas contemporâneas como a miséria e a discriminação estão diretamente associadas a históricos coloniais: “estou interessado (...) em encontrar, no passado, possíveis leituras para a contemporaneidade. A abordagem que faço das questões de ordem civil só tem sentido dentro de um diálogo com as ‘origens’ dessas questões: racismo, miséria, falência econômica, etc.”, afirma em entrevista publicada no FF>>Dossier 036.


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