Resultado de um longo e intenso intercâmbio entre a Associação Cultural Videobrasil e os curadores Akram Zaatari e Christine Tohme, ambos figuras-chave na articulação da nova arte eletrônica libanesa, Narrativas Possíveis é, de certa forma, o lugar onde todos os anseios curatoriais desta edição histórica do Festival se encontram. Com pouco menos de dez anos, a produção que ela revela é um paradigma de consistência e de contemporaneidade em meio ao surpreendente panorama da arte eletrônica do circuito geopolítico Sul – e, nesse sentido, o complemento ideal para o mapa que a Mostra Competitiva quer traçar. A isso soma-se a forma muito específica com que esses artistas usam a imagem para resgatar a identidade e a memória de um país despedaçado por quase duas décadas de sangrentos conflitos religiosos e políticos, de modo a revelar e, ao mesmo tempo, transcender a “amnésia pós-traumática coletiva” descrita pelo ensaísta Jalal Toufic, um dos nomes da mostra. Recorrente nas obras selecionadas, nunca esse uso político da imagem eletrônica e de sua apropriação, manipulação e sobreposição foi tão contundente quanto no gesto dos artistas reunidos em Narrativas Possíveis.
O processo de formatação da mostra, que envolveu o poeta brasileiro Waly Salomão, contou com a colaboração decisiva da curadora Christine Tohme que, à frente da Lebanese Association for Plastic Arts, responde por boa parte do estímulo recente à produção de arte contemporânea no país. Para o Brasil, trata-se de uma chance única de conhecer uma das maiores riquezas do país: a inteligência de uma arte que usa imagens para sanar sua dolorosa “imemória”.
Artistas
Obras
Texto de curadoria Christine Tohme, 2003
Imagens à Margem
Nos ensinaram que a propriedade de uma imagem, ou, mais acuradamente, de uma representação, é resistir à verbalização. Afinal, qual é o propósito de fazer imagens se essas imagens podem ser reduzidas às palavras que lhes dão razão de ser? Naturalmente, esta questão sempre é lançada, mas não consegue nem pode resumir a complexidade da relação que existe entre a imagem e sua narrativa.
Talvez um meio de lidar com esta relação complexa seja promover sua complexidade, radicalizá-la ainda mais. Com freqüência falamos da relação entre a imagem e a narrativa que a cerca como se elas fossem duas entidades separadas e absolutas, definidas finitamente. Entretanto, muitas vezes esquecemos que essas duas entidades são sempre contingentes, que sempre se esquivam de definições e adquirem novos significados à medida que evoluem no tempo e no espaço. Nesse caso, em que termos deveria ser (re)definida a relação entre imagens e textos? É possível se sentir muito insignificante ao entabular essas questões, especialmente depois de tudo que foi escrito sobre o assunto. Mas o tema é premente, quase urgente. Nós vivemos numa parte do mundo na qual se consomem imagens produzidas em outros lugares; e imagens produzidas por nossa região parecem ser sempre marginalizadas, como se vivessem num espaço e tempo próprios. De que modo superar esta “divisão de trabalho” é uma questão que adiciona outra camada de complexidade ao relacionamento de imagens e narrativas — e nós deveríamos, a todo custo, evitar respostas simplistas e saídas fáceis. No mundo globalizado de hoje não basta simplesmente ficar à margem (onde imagens localmente produzidas se assentam), gritar “Eureca!” e proclamar a soberania de uma identidade recém-encontrada que deveria ser extraída dessas imagens.
Talvez fosse produtivo tentar estabelecer uma extraterritorialidade, acima e além do domínio estabelecido por um provincianismo intelectual que vê o mundo como uma dicotomia entre o “local” e o “global”.
ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Deslocamentos - 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil", p. 81, São Paulo, SP, 2003.
Texto de curadoria Akram Zaatari, 2003
História Paralela
Talvez seja benéfico para o artista que algumas imagens se encontrem isoladas de suas narrativas. Imagens sem narrativas, imagens encontradas, documentos anônimos nos impulsionam, como leitores, a projetar nossas próprias relações com uma imagem, nossas próprias histórias e fantasias, e, assim, nos proporcionar muitas “narrativas possíveis” para cada imagem.
No entanto, não queremos que todas as imagens fiquem separadas de seus enredos e histórias, das pessoas que as produziram ou nelas se representaram. Pelo contrário, nós consideramos que narrativas não oficiais como rumores ou casos freqüentemente reunidos e apresentados para explicar uma imagem, e até legendas, constituem uma história paralela, indicativa de como as imagens são usadas por quem as faz e as difunde, e que relacionamentos as ligam a seus respectivos ambientes e tempos de produção.
Nós vivemos numa parte do mundo na qual a história é um território de discórdias que não raro culminam em guerras. Vivemos numa parte do mundo na qual as imagens muitas vezes foram usadas como elementos de evidência para favorecer uma versão dessa história em detrimento de outra. Imagens existentes têm sido do interesse de muitos artistas libaneses que usaram arquivos, anúncios, fotografias pessoais e outros documentos visuais existentes para refletir sobre e entender o mecanismo com o qual as imagens são feitas ou difundidas, a fim de questionar a história e outros fenômenos complexos que as cercam.
Narrativas Possíveis diz respeito a todos os elos que podem ligar imagens existentes, fósseis ou peças arqueológicas que podem ou não portar uma história dentro delas, a narrativas e espaço, usando diferentes mídias: performance, vídeo, fotografia ou textos.
ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Deslocamentos - 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil", p. 83, São Paulo, SP, 2003.
Texto de curadoria 2003
Narrativas Possíveis, Práticas Artísticas do Líbano
Resultado de um longo e intenso intercâmbio entre a Associação Cultural Videobrasil e os curadores Akram Zaatari e Christine Tohme, ambos figuras-chave na articulação da nova arte eletrônica libanesa, “Narrativas Possíveis” é, de certa forma, o lugar onde todos os anseios curatoriais desta edição histórica do Festival se encontram. Com pouco menos de dez anos, a produção que ela revela é um paradigma de consistência e de contemporaneidade em meio ao surpreendente panorama da arte eletrônica do circuito sul — e, nesse sentido, o complemento ideal para o mapa que a Mostra Competitiva quer traçar.
Some-se a forma muito específica com que esses artistas usam a imagem para resgatar a identidade e a memória de um país despedaçado por quase duas décadas de sangrentos conflitos religiosos e políticos, de modo a revelar e, ao mesmo tempo, transcender a “amnésia pós-traumática coletiva” descrita pelo ensaísta Jalal Toufic, um dos nomes da mostra. Recorrente nas obras selecionadas para a Competitiva, nunca esse uso político da imagem eletrônica e de sua apropriação, manipulação e sobreposição foi tão contundente quanto no gesto dos artistas reunidos em Narrativas Possíveis.
Filósofos, arquitetos, jornalistas, pintores e escultores, eles chegaram ao vídeo não pelo caminho regular da experimentação estética, mas na busca por um suporte ágil, eficiente e poderoso que servisse de ferramenta na superação de questões existenciais e políticas urgentes e pungentes. Casamento de uma estética muitas vezes crua com recursos intelectuais sofisticados, essa produção singular mostrou seu rosto no Festival pela primeira vez em 1996, com o documentário experimental Teach Me, de Akram Zaatari.
Para a Associação Videobrasil, a descoberta de um foco poderoso de resistência estética e política num país que nos acostumáramos a confundir com guerra civil foi a confirmação do potencial inequívoco do circuito sul. Para Zaatari, a passagem pelo Festival mostrou a importância de se tornar, ele mesmo, um ativo instigador da produção libanesa. O desejo de mostrar essa produção de maneira compreensiva no Brasil, sem incorrer numa ingênua visão orientalista, nasceu aí, assim como a colaboração entre a Associação Videobrasil e Zaatari — cujo trabalho se torna objeto, breve, de uma Retrospectiva (que passará a integrar o acervo) e de um documentário da série Videobrasil Coleção de Autores.
O processo de formatação da mostra, que envolveu o poeta brasileiro Waly Salomão, contou com a colaboração decisiva da curadora Christine Tohme, que, à frente da Lebanese Association for Plastic Arts, responde por boa parte do estímulo recente à produção de arte contemporânea no país. Para o Brasil, que deve enviar ao Líbano, no fim do ano, seu primeiro governante desde D. Pedro II, trata-se de uma chance única de conhecer uma das maiores riquezas do país: a inteligência de uma arte que usa imagens para sanar sua dolorosa imemória.
ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Deslocamentos - 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 77, São Paulo, SP, 2003.
Ensaio Jalal Toufic, 2000
Se você nos pica, nós não sangramos? Não.
Dedicado à memória viva de Gilles Deleuze, um filósofo não-vingativo
Nós não temos olhos? Não: “Você não viu nada em Hiroshima” (Duras); “mas Ele ordenou-lhes que não dissessem a ninguém o que tinha acontecido” (Lucas 8:56). Nós não temos mãos [?] Não - o homem sem mãos em “L'Ange”, de Bokanowski. Órgãos [?] Não - Daniel Paul Schreber “viveu muito tempo sem estômago, sem intestinos… sem vesícula”; e para Artaud, “o corpo é o corpo/ ele é tudo por si mesmo/ e não precisa de órgãos”. Dimensões, sentidos [?] Não, no caso de um iogue que atingiu pratyahara, o estado de eliminação dos sentidos. Afeições [?] Não - voltando dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, Septimus, de Virginia Woolf, “não conseguia sentir”. Paixões [?] Não, para quem atingiu o terceiro tipo de sabedoria de Spinoza. Alimentados com a mesma comida [?] Não: “não há outro remédio para saciar a fome do que um bolo de arroz pintado” (Dogen). Feridos pelas mesmas armas, sujeitos às mesmas doenças, curados pelos mesmos meios [?] Não, Judge Schreber é ferido e curado por raios divinos. Aquecidos e resfriados pelo mesmo inverno e verão que um simples cristão? Não: “Viciados sempre se queixam do que chamam O Frio, virando para cima as golas de seus casacos pretos e apertando seus pescoços murchos… pura enganação junk. Um viciado não quer ficar aquecido, ele quer ficar frio-mais frio-FRIO. Mas ele quer O Frio como quer Sua Droga - NÃO FORA, onde não lhe adianta nada, mas dentro, para que possa ficar sentado por aí com a espinha como se fosse um macaco hidráulico congelado… seu metabolismo se aproximando do Zero Absoluto” (Burroughs). - Se você nos pica, nós não sangramos? Não: durante as cerimônias de andar sobre o fogo na comunidade indiana ao sul de Suva, Fiji, os participantes perfuram suas bochechas, testas, línguas e/ou orelhas sem que o sangue escorra. Meu vídeo “'Âshûrâ': This Blood Spilled in My Veins”, de 1996, com sua documentação de sangria ritualística, foi uma demonstração de que xiitas também podem sangrar? Se é de fato uma demonstração, ela seria unicamente em proveito dos israelenses e americanos, de maneira que pudessem verificar que nós também sangramos sem ter de nos bombardear no sul do Líbano. Eu, como xiita, certamente não preciso de tal demonstração, uma vez que já sinto que até mesmo o sangue em minhas veias é sangue derramado, independentemente de quaisquer feridas sofridas em minha vida; uma vez que já sinto que estou sangrando em minhas veias. Mas “'Âshûrâ': This Blood Spilled in My Veins” não é de fato uma demonstração de que, se picados, sangramos: eu não sou uma pessoa vingativa. Uma certa perturbação já é introduzida nesta fórmula por aqueles que, embora sangrem, o fazem sem ser picados ou feridos: os estigmas de muitos santos e muitos histéricos; o sangue derramado das veias de muitos xiitas. Em “O Mercador de Veneza”, de Shakespeare, o advogado informa ao judeu Shylock que ele certamente tem permissão, pelo contrato assinado por seu devedor Antônio, de cortar uma libra de carne do corpo deste, mas que tem de fazê-lo sem verter um pinguinho de sangue, pois, caso contrário, seria perseguido por tentar assassinar um cristão. A estipulação do advogado é um lembrete de que Antônio sangra. Ela implicaria que, enquanto especificava o contrato, Shylock se esquecera de pensar que, na eventualidade de ser picado, Antônio sangraria. Eu precisaria chegar à última parte do discurso de Pórcia-como-advogado, quando ela enumera todas as punições que Shylock deve sofrer, para entender que ela é uma pessoa vingativa? Não seria suficiente que ela sugerisse a Shylock durante sua defesa de Antônio: “Se você nos pica [nós, cristãos], nós não sangramos?”. A desistência de Shylock de fazer uma incisão na carne de Antônio para dela tirar uma libra - no temor de verter sangue e possivelmente causar a morte de um cristão - ainda é um gesto vingativo. Caso Antônio tivesse começado a sangrar através de estigmas, isso teria interrompido a vingança por lembrar a Shylock que Antônio também sangra? Caso o sangramento através de estigmas tivesse acontecido em outros pontos que não os contornos da área designada para sofrer a incisão, isso, ao contrário, seria um gesto vingativo. A vingança realmente poderia ter sido detida? Se a peça de Shakespeare prosseguisse não com a recusa do advogado à proposta tardia de Shylock para acertar a questão com dinheiro, e a subseqüente longa e vingativa lista de punições, variando de religiosas - a conversão - a financeiras, imposta a ele pelo advogado, mas, para surpresa de todos, incluindo Antônio, com o repentino sangramento deste através de estigmas nos contornos precisos da área especificada no contrato - fosse à maneira dos santos ou histericamente -, a vingatividade de ambos os lados possivelmente poderia ter sido detida. O sangramento de Antônio através de estigmas nos contornos precisos da área especificada para a incisão teria dado a Shylock a oportunidade de empreender vingança, já que então ele poderia ter cortado a libra de carne e nada teria provado incontestavelmente, que o sangue derramado teria se originado dos ferimentos a ele infligidos e não dos estigmas (nesta peça em que uma mulher e sua criada assumem o papel de um advogado e de seu subordinado, e em que a filha de Shylock se disfarça de homem etc., o sangue de uma ferida externamente infligida teria se disfarçado de sangue vertendo através de estigmas). O sangramento através de estigmas naquelas áreas precisas teria tornado aparente para todos os presentes, incluindo Shylock e o advogado, que Antônio não sangra no ponto da incisão, que quando picado ele não sangra devido a isso. Tal sangramento teria dado a Shylock a oportunidade de se vingar, enquanto lhe destituía da vingativa lógica da similaridade. O sangramento psicossomático teria impedido as falanges cristãs, e seu cúmplice e suserano, o exército israelense, de massacrar os palestinos em Sabra e Shatila? Eu acho que não. Se você nos faz cócegas, nós não rimos? Quanto a mim, não, e não porque esteja deprimido, mas porque em geral acho esse período histórico tão ridículo que, se começasse a rir, temo que não conseguiria parar. Lembro como, quando ficava chapada de maconha, minha ex-namorada ria nervosamente de tudo sem parar. Eu nunca tive esse tipo de acesso de riso prolongado nas poucas vezes em que fumei maconha. Mesmo assim tenho certeza de que se começasse a rir desse modo em meu estado normal de consciência, minhas risadas certamente ofuscariam as dela. Quanto a ela, não havia perigo de começar a rir e não conseguir parar até passar mal: ela não achava as sociedades contemporâneas tão ridículas. Tudo que peço a este mundo, ao qual já dei três livros, é que se torne menos risível, de modo que eu consiga rir novamente sem morrer por causa disso. E que ele faça isso logo, antes que minha melancolia se torne uma segunda natureza. Esta época me tornou melancólico não só por todas as barbáries e todos os genocídios que vem perpetuando, mas também por ser tão risível. Mesmo neste período de suma tristeza para um árabe, em geral, e para um iraquiano, em particular, tenho mais medo de morrer de rir do que de um suicídio melancólico, e assim sou mais propenso a abrir minha guarda quando se trata de estar triste do que de rir de fenômenos risíveis. O cômico pensador Nietzsche deve ter vivido numa época menos risível do que esta para ainda permitir-se à sublimidade de “Ver trágicas naturezas afundarem e conseguir rir delas, a despeito da profunda compreensão, da emoção e da compaixão que se sente - isso é divino”. Numa época risível, nem mesmo as divindades estão imunes a essa morte provocada pelo riso: não foi desse modo, de acordo com Nietzsche, que os deuses morreram ao ouvir um deles declarar que era o único Deus (“Assim Falou Zaratustra”, “Dos Apóstatas”)? Neste ponto da história, alguém ainda consegue rir lendo Nietzsche, Beckett, Bernhard? Esta época não roubou de nós uma grande faceta dessas obras: seu humor? As pessoas contemporâneas dotadas de humor ainda acham o trabalho de Richard Foreman, ou até mesmo meu trabalho inicial, risível - sem morrer por isso? Todas as pessoas engraçadas de épocas ridículas não são suficientemente cômicas; para descobrir as pessoas com mais humor numa época dessas é preciso procurar entre as sérias, as que precisam dessa seriedade para não morrer de rir. A esse respeito, atingi um ponto crítico em 20 de junho de 1996. Eu estava numa fila bem longa num caixa do supermercado Ralphs, em Wilshire and Bundy, Los Angeles. O funcionário acabara de ir até um dos corredores mais distantes para verificar o preço de um dos itens trazidos por um cliente. No meio de muitas revistas na estante ao lado, vi a última edição da “Time”. A chamada de capa era: “As 25 Pessoas Mais Influentes da América”. Folheando as páginas à procura dessa matéria, fui repentinamente tomado por uma apreensão beirando a ansiedade: se começasse a rir ao ler alguns dos nomes citados, não conseguiria parar, e até minha estimulada seriedade desta vez se mostraria incapaz de funcionar como um mecanismo de defesa. Quatro meses depois, continuo sem saber se o intenso receio que senti naquela situação foi justificado. Mas daquele dia em diante uma vigilância ainda mais intensificada contra começar a rir tornou-se uma das características salientes da minha vida.1 Se você nos envenena, nós não morremos? Não, nós não podemos morrer, seja porque temos assuntos não resolvidos (numa perspectiva restrita: o velho rei Hamlet; ou outra ampliada: os ciclos da morte e do renascimento do Budismo Hinayana); ou porque nos tornamos fundamentalmente liberados de quaisquer assuntos não resolvidos, e agora, quando em vida, estamos plenamente na vida, quando em morte, estamos inteiramente na morte, o nascimento não levando à morte, a morte não levando à vida (“Birth and Death” [“Shoji”], de Dogen). Fossemos nós somente os vivos, que em alguma data futura morreremos biologicamente e deixaremos de ser, haveria apenas a moralidade vingativa da identificação - nós também não choramos, rimos e biologicamente morremos etc.? - a nos impedir de nos matarmos uns aos outros e a impedir os outros de nos matarem. O que mais deveria nos persuadir contra o assassinato é que antes somos seres mortais, portanto não mortos enquanto vivemos, e que como seres não mortos somos submetidos a todo nome na história é eu. A vingativa questão retórica “Nós também não sangramos, rimos e (biologicamente) morremos?” deveria ser substituída por “Eles podem nos fazer chorar, rir, eles podem nos matar - isso é tudo”. A pergunta que segue diretamente as precedentes de “O Mercador de Veneza” é: E se você nos fizer mal, nós não devemos nos vingar? Que perspicácia de Shakespeare ao detectar e sugerir que essa maneira de pensar, que discorre sobre a similaridade, é vingativa. É vingativa não apenas porque uma pessoa só pode se vingar de algo que tem afeições, sentidos etc., ou seja, de alguém que possa ser afetado pela vingança, nem só porque vingança é mais uma similaridade - se somos como você no resto, nos pareceremos com você nisso (Ato III, cena I, 53-62); mas como tal. Sim, em última análise, todo discurso que invoca uma similaridade fundamental é vingativo, é um discurso de vingança. Nietzsche escreveu em algum lugar que é humano se vingar e inumano não fazê-lo. Isso não seria também porque o humanismo (nós também não rimos, sangramos, [biologicamente] morremos…?) é vingativo, mesmo independentemente de qualquer mal sofrido, mesmo ou especialmente quando isso invoca uma coexistência tolerante baseada numa similaridade fundamental? E não são muitas as maneiras antes mencionadas de dizer Não a tais questões vingativas tentativas de escapar, deixando de exercer a generalizada vingatividade em toda parte? - infelizmente, em alguns casos fracassando e resultando ainda em outros tipos de vingança.
Extraído de “Forthcoming” (Berkeley, CA: Atelos, 2000), pp. 41-46.
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1 Ainda não está claro para mim por que essa apreensão anômala aconteceu neste caso e não, digamos, em reação às notícias que se seguiram ao massacre que um extremista judeu infligiu a dezenas de palestinos que estavam rezando na mesquita em Hebron. Um toque de recolher foi imposto à população palestina de 130 mil pessoas e não aos 450 colonos judeus em seu meio (alegadamente para se proteger contra potenciais represálias por parte dos palestinos). Também não entendo por que isso não se deu em vista da leitura dos principais jornais norte-americanos dizendo que o Iraque está “invadindo” seu norte.
ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "14º Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, pp. 105-109, São Paulo, SP, 2003.
Ensaio Bilal Khbeiz, 2003
Imagens de poucos recursos
Relatos de testemunhas oculares da Palestina descrevem acontecimentos difíceis de acreditar não fosse a explicação lógica de violentos confrontos diários entre o exército de ocupação israelense e o povo palestino. Esses relatos narram minuciosamente situações em que cidades são separadas e isoladas, de modo que uma mulher grávida fica totalmente impossibilitada de chegar até seu médico, localizado em algum ponto atrás de um posto de controle israelense, uma terra de ninguém ou uma frente de batalha. Essas situações são potencialmente repletas de idéias para um roteiro no qual uma mulher grávida é examinada por seu médico via internet ou telefone celular. Um cenário assim é bem real, e como tal pode se constituir num assunto suficientemente interessante para um tipo de cinema que pode viajar pelo mundo, colecionando prêmios em festivais cinematográficos na Europa, na Ásia e nas Américas. A demanda pela manufatura desse tipo de imagens de fato é predominante. Ela requer do fazedor de imagens nada mais do que uma inspeção atenta dos vestígios e das conseqüências da desintegração urbana e social palestina, e a documentação das técnicas improvisadas - e muitas vezes insuficientes - empregadas por indivíduos e pela comunidade, na tentativa de regatear e economizar seus parcos recursos. No entanto, sabemos que uma situação como essa não pode persistir por muito tempo. A desintegração social nascida da ruptura da conectividade urbana pode levar rapidamente a um modo pré-urbano de existência, que é por si mesmo um estágio anacrônico e insuportável de uma tentativa de auto-suficiência. Nesse estágio, toda mulher idosa pode se tornar parteira e todo homem qüinquagenário pode assumir a experiência de orientar os doentes, prescrever tratamentos à base de ervas, realizar cauterizações e aplicar ventosas. Um estágio pré-urbano de existência no qual a fonte básica de alimentos se torna a estreita faixa de terra ao redor da casa e não o supermercado da vizinhança. Esse estágio pode vir a se tornar irreversível e fatal, conforme observado nos últimos anos no Sudão e na Etiópia, na medida em que o exército de ocupação israelense continue expulsando os habitantes palestinos de sua terra. Nesse ponto, as imagens de desintegração antes solicitadas e exibidas mundo afora sumariamente se degeneram, tornando-se imagens constrangedoras e vergonhosas, como observou o cineasta iraniano Mohsen Makhmalbaf ao ver imagens do Afeganistão sob o regime Taliban.
Makhmalbaf certamente não desconhece esse dilema. Ele é produtor de imagens de um Irã que vê e retrata como uma sociedade lutando arduamente para permanecer dentro das condições de uma urbanidade civilizada e manter as necessárias provisões para sua resistência. As imagens de Makhmalbaf são perceptivelmente estranhas e atordoantes, embora não capitulem à fantasia de uma imaginação extravagante apoiada por uma avançada técnica cinematográfica. Makhmalbaf é, ao lado de outros cineastas do Terceiro Mundo, um ativista lutando para ampliar as possibilidades da câmera, sem necessariamente reiterar em filmes o espanto fingido pela revista francesa “Paris Match” ao comentar a foto de jovens iranianos dançando numa festa: “Vejam, eles dançam como nós!”.
Todavia, as imagens emitidas por essa parte do mundo, lutando para transmitir os traços densos de um viver complexo e incerto, em geral são de poucos recursos, até mesmo empobrecidas, quando comparadas com a riqueza das imagens produzidas em outros países. Para começar, vamos reiterar o fato mais do que óbvio de que os iranianos não possuem o luxo requerido para produzir filmes sobre guerras intergalácticas. E que filmes históricos e séries de televisão comerciais produzidos nessa região não podem extrapolar imaginativamente da mesma forma que os faroestes americanos fazem sem ter de se apoiar num tempo vago, mágico e passado. Um tempo que é, por definição, aquele de fábulas e biografias míticas que precederam as regras e posturas da moderna narrativa romanesca. Para nós, toda extrapolação imaginativa é custosa, já que exige que se abandonem especificidades espaciais e temporais, e também que se acomodem os sinais mais óbvios de um uso anacrônico de linguagem clássica, sem mencionar uma ressurreição de estruturas sociais abandonadas. Essas são as condições de filmes históricos e séries bem-sucedidas e populares. Quanto a hagiografias e lendas heróicas de figuras como Abi Obeida Ben Al Jarrah, elas provavelmente seriam mais bem produzidas e distribuídas por Hollywood do que por estúdios locais como o Baalbek e o Al Sham para a produção.
Há quem ouse alegar que as imagens feitas nessa parte do mundo são sagazes, mas de poucos recursos. Elas são sagazes porque expõem as atordoantes discrepâncias de países vivendo constantemente sob uma lei marcial que às vezes é imposta por um regime ditatorial, como em muitos países do Oriente Médio, e em outras vezes imposta por sociedades esgotadas pela agitação social e política, como em muitos países do Terceiro Mundo. As duas causas, ou, melhor, pretextos, muitas vezes se sobrepõem. Assim, essas imagens são sagazes, mas também de poucos recursos. Seu primeiro atributo é que marcam o último estágio de um sistema social antes que ele seja permanentemente perdido, ou, mais precisamente, decaia para outro estágio regressivo. Em conseqüência, seu segundo atributo é que elas nunca podem ser produzidas novamente. Cineastas regionais certamente podem achar os meios para filmar e produzir mais imagens. Mas elas sempre são imagens finais. Pois o momento captado no filme, embora temporalmente preceda o filme, é, paradoxalmente, o futuro do presente real. A imagem documentada é o futuro almejado e ansiado, virtual em nosso sentido, e pelo qual só se pode sentir nostalgia. Vamos considerar, por exemplo, a demanda constante por aquela série de imagens de Beirute pré-guerra. Cartões-postais coloridos, que vivem de nostalgia por uma era passada e alimentam um desejo premente de recuperá-la. De forma similar, imagens de uma sociedade palestina em desintegração lutando à beira de um nomadismo forçado também são imagens de um futuro ansiado. No mínimo, elas são os ansiados primórdios de um futuro que começa com essas imagens e gradualmente se desenvolve para um estágio no qual normalidade nos relacionamentos humanos e coexistência social são novamente possíveis e visíveis, não apenas pictoricamente inteligíveis. Em outras palavras, e para dar um exemplo, um palestino não esperaria longas e humilhantes horas num posto de controle israelense para chegar até seu bebê recém-nascido com o precioso leite do peito de sua mulher coletado numa garrafa de plástico se não estivesse plenamente ciente da importância vital da medicina moderna. Caso contrário, ele se daria por satisfeito em contar com uma parteira trazendo seu bebê ao mundo em casa, assim como também não teria pruridos de tratar seu filho enfermo com ervas medicinais locais e outras misturas preparadas artesanalmente. Mas ele tem consciência. Assim, luta por esse conhecimento e por causa dele, para continuar o mais perto possível de um modo de vida civilizado reconhecível e esclarecido. As imagens desse homem e de outros como ele são amargas e risíveis. A amargura é compreensível, mas o riso é o que confunde o espectador instruído que não acha outro meio que não elogiar com sinceridade e concordar sem críticas com essas imagens complexas e difíceis. Para os palestinos, essas imagens são as últimas visíveis e compreensíveis do que eles costumavam ser e do que nunca conseguirão ser novamente. Essas imagens podem ser documentos de um passado, mas também falam de uma necessidade terrível de regressar a ele. Esse homem, cujo exemplo mencionamos, clama simplesmente por estradas abertas e uma mobilidade básica para que possa ir ao encontro de sua mulher e seu filho recém-nascido como obviamente qualquer homem pode esperar fazer em Nova York, Londres ou Paris. Ele quer ser o que era antes, nem mais nem menos. Ele quer continuar visível, mesmo que apenas às margens da civilização. No mínimo, ficando naquela margem, ele pode ser filmado e assim permanecer visível. Como o futuro é belo quando sua imagem é tão presente no passado e tão percebida por nossos sentidos.
Tal situação complexa também marcou Beirute após a guerra. Pode-se relembrar, por exemplo, como uma horda de fotógrafos acorreu em massa para captar a destruição dos mercados ao ar livre de Beirute depois da guerra civil. Certa ocasião, todos eles esperavam, com os dedos tensionados, tirar fotos da eliminação do famoso edifício Rivoli (que não se encaixava nos planos traçados pela empresa privada encarregada de reconstruir a zona central da capital, Solidere). O colapso e o desaparecimento do edifício foram fotografados com uma nostalgia veemente e até obsessiva. Tangencialmente, essas emoções fortes nos diziam mais uma vez que outros edifícios poderiam ter sido salvos caso tivéssemos tido mais consideração por este nosso passado, que também é nossa esperança de um futuro. Assim que o edifício foi arrasado e apagado, outros fotógrafos documentaram o local agora vazio. Essas fotos por certo não eram convites para contemplar o espírito do deserto, à maneira do romancista líbio Ibrahim Al Kawni. Em vez disso, suas vozes, simples e ingenuamente, nos convidavam a contemplar essa vacuidade. Aqui ficava o edifício Rivoli e aqui ele foi enterrado. Essas fotos continuaram mudas e divulgaram seu propósito apenas com comentários adicionais. Todavia, muitas vezes a tagarelice e o diz-que-diz-que são salutares, pois, nesta parte do mundo, isso pode dotar os lugares de uma história. Mas nada além disso.
Os dois atributos de imagens mencionados acima, aquele de poucos recursos e o da sagacidade, são uma combinação decididamente explosiva. Em geral imagens dizem que uma situação é apenas temporária, como no caso do alvejado edifício Rivoli. O convite para deixá-lo como estava, marcado pela guerra, era difícil de aceitar, já que carecia de uma lógica convincente. Todo mundo sabia que o edifício Rivoli inevitavelmente seria alterado. Sua reforma teria desviado e até corrompido seu programa histórico, conforme ocorreu com outros edifícios, e o teria arrastado para o presente, tão temido por imagens em geral. Por outro lado, destruir o edifício inevitavelmente produziria uma dolorosa lacuna no meio de uma cidade e privaria seu futuro de um marco notável. Em outras palavras, e independentemente do curso de ação tomado, a situação inevitavelmente teria se agravado, levando-se em conta que as pressões constantes da lei marcial sempre prometem uma crescente decadência e desintegração social geral. A situação palestina talvez seja mais óbvia nesse sentido. Por lá, quase ninguém mais espera por dias melhores. E, embora tenham certeza de que a lógica está do seu lado e de que indubitavelmente são vítimas de um poder político e militar insano e mortífero, eles não obstante são dolorosamente cientes de que nenhuma lógica pode salvá-los da destruição que os assedia. Nem pode poupá-los de forçosamente virarem um povo de nômades num deserto literal, conforme Norman Solomon notou ao observar as mudanças sistemáticas efetuadas pelos buldôzers israelenses na ecologia palestina. A violência da situação é tamanha que até o benefício dúbio de se tornar nômades também é seriamente ameaçado por uma possível extinção. O futuro para os palestinos é amargo e sombrio. Quanto a isso, todas as tentativas de manter as feridas de guerra indefinidamente são tão desejadas quanto impossíveis. E assim, imagens lutam e se esforçam para documentar e até mesmo exaltar esse doloroso presente de uma forma claramente perturbadora e sádica.
Quem olha as imagens dessa parte do mundo reconhece que o assunto é passageiro, ao passo que as imagens são tristemente eternas. Toda imagem desses lugares veicula a fragrância incômoda de seu momento, e se move na direção oposta de seu tema. O primeiro ruma para o futuro, enquanto a última regressa para um passado invisível. É essa a contradição que as imagens visivelmente tentam manter. É justamente essa aversão que torna a imagem legível para o público. Nesses casos, o criador de imagens tem o olho e o espírito de um historiador, e a percepção temporal de um profeta. Mas, veja bem, fazer imagens da história é diferente de fazer imagens para a história. A primeira instância, em nosso caso, é impossível. A história aconteceu e as imagens são impotentes para provar qualquer coisa, mesmo que sejam respeitosamente aceitas como testemunhas, uma “Machine de la Vision”, citando Paul Virilio, que jamais deveria ser contestada como em todas as sociedades modernas e tecnologicamente avançadas. Uma imagem de um edifício no centro de Beirute não pode nos dizer muito sobre a história. Isso porque, a menos que seja precedida por acontecimentos históricos reais, ela pode simplesmente aparecer como uma mercadoria visual bem produzida de um dos estúdios de Hollywood. Ter a história precedendo a imagem significa que o espectador do filme “Divine Intervention”, de Elia Suleiman, não pode assisti-lo com sincera inocência. Ao contrário, esse espectador deve ter um cabedal mínimo de conhecimento para ser capaz de observar com a atenção de um historiador e de um político, e com solidariedade e empatia. O espectador definitivamente não pode assistir com o olhar apressado e casual de um homem que lê sobre o colapso de um abrigo em Bagdá, termina seu desjejum e sai para o trabalho. É por isso que Suleiman não pode fazer imagens do passado, mas certamente pode filmar o futuro. É por isso que ele pode profetizar o futuro vindouro e inventar suas imagens com impunidade.
Talvez não seja importante demorar-se nos tipos de imagens que dominam o trabalho de cineastas libaneses, iraquianos e palestinos. Imagens que não poderiam ter surgido não fosse a morte profunda que reina nessas partes do mundo. Essas imagens falam do futuro, e parece que - pelo menos, para mim - se baseiam numa dose intolerável de oportunismo. Portanto, talvez seja melhor falar de imagens mais inteligentes. Imagens com profundidade e horizontes mais amplos. Muitos nomes vêm à mente, incluindo Kiarostami, Suleiman e Makhmalbaf. Esses cineastas são notáveis por suas imagens, que parecem respirar tão profundamente quanto as árvores. Imagens vivas e pulsantes que, não obstante, são perceptivelmente incapazes de fazer manobras a céu aberto, por assim dizer. Imagens com a precisão das faces, as quais, mesmo quando estão simplesmente perscrutando os céus, campos e trechos de mata fechada, parecem humildemente reclamar e implorar aos céus. Quando respeitosamente entrevistam palestinos que acabaram de ter suas casas destruídas pela máquina de guerra israelense, os jornalistas lhes perguntam o que pretendem fazer a seguir. Muitas vezes as respostas são: “Nós temos Deus”. Pois Deus é tudo que resta depois que um homem foi despojado de tudo e exposto. Deus é o único que pode aceitar sem condições o aparente rebaixamento deles das fileiras dos que têm casa e uma existência minimamente assegurada. Os palestinos sem-teto olham para o céu e parecem lembrar de sua beleza arrebatadora, como se ele houvesse ficado escondido durante anos por seus próprios telhados construídos. O céu é a única coisa sobre a qual se pode falar com familiaridade e segurança.
Lembre, se quiser, daquelas vistas mágicas de montanhas do Irã em filmes de Makhmalbaf e talvez você perceba quanto Deus está perto dos excluídos. É com imagens assim, imagens que respiram mesmo quando postas em quarentena, que o mundo precisa se inteirar de si mesmo.
A ironia dessa situação requer umas poucas palavras. Catástrofes e guerras precipitam um conhecimento dessas partes do mundo. Além disso, as guerras aqui são mais violentas, e portanto mais memoráveis, do que outras. Algumas são privilegiadas com atenção, tomadas de posição internacionais e debates nas televisões, ao passo que outras prosseguem desconhecidas, abaixo das ondas do ar. Um povo destroçado pela guerra pode ter ciúme de outro cuja guerra receba essa cobiçada atenção. Portanto, não é exagero dizer que os sudaneses têm inveja dos iraquianos por causa da cobertura da mídia sobre sua guerra recente. Os sudaneses sucumbem a uma guerra silenciosa e só aparecem na TV morrendo de fome e mudos, de olhos esbugalhados. As realidades de uma guerra sudanesa não podem ser privilegiadas com uma imagem, a menos que esta seja encharcada de sangue. Uma imagem dessas, embora capaz de produzir um estremecimento mínimo na mente de telespectadores distantes, é não obstante dolorosamente ingênua e de poucos recursos quando mostrada perto de seu próprio lago de sangue. Igualmente ingênuos e de poucos recursos foram os defensores do edifício Rivoli.
Logo após o fim oficial da guerra civil libanesa, testemunhamos a transação popular de cartões-postais mostrando cenas vívidas e movimentadas da Beirute pré-guerra. Essas imagens vociferantes e vibrantes davam a entender que a presente destruição tinha um passado. No entanto, logo se tornou claro que essas imagens, e a atenção que despertavam no público comprador, atestavam uma lógica diferente. Elas diziam que imagens resistem mais tempo do que cidades. Cidades morrem, enquanto os vivos choram por suas imagens. Em geral, pode-se ficar satisfeito com isso, considerando que imagens se referem ao passado. Mesmo assim, esses cartões-postais pareciam cada vez mais com nosso futuro. Os libaneses não tinham quaisquer outras imagens de sua cidade viva e vibrante. Eles queriam ressuscitá-la, como ela parecia ter sido. Esses cartões-postais rapidamente se tornaram um futuro que os libaneses estavam dispostos a defender. A cidade, com seus edifícios e suas ruas, morreu, mas suas imagens estavam ali para ser examinadas e contempladas. E então, procurávamos uma Beirute que fosse tão vibrante e viva quanto aquela das fotos.
Como parte de uma instalação intitulada “Wonderful Beirut”, os artistas e cineastas Khalil Joreige e Joana Hadjithomas exibiram uma série de cartões-postais da Beirute pré-guerra, nos quais fizeram marcas de queimaduras. O trabalho deles parecia dizer que se esses cartões-postais são o que restou intacto de uma cidade destruída, então por que não, também, mutilar as imagens num ato de vingança? Como uma cidade pode morrer se suas imagens têm permissão de sobreviver? Por que imagens resistem à degradação e à morte? Como produzimos e cultivamos essas criaturas fotográficas que inevitavelmente sobreviverão a nós e certamente não lastimarão nossa morte? Que se pode fazer diante de criaturas eternas? Vamos então destruir imagens e assim provar, mesmo que por uma única vez, que uma imagem é destrutível. Naturalmente, no ato em si tudo que estamos fazendo é produzir outra imagem. Mas pelo menos houve a destruição. Uma pequena operação que postula que uma imagem pode ser destruída e, o que é mais importante, que uma imagem é gerada por outra. Nesse caso, talvez possamos resistir por completo às imagens, mas, uma vez mais, somente se elas se autogerarem e não se originarem de experiência vivida. É possível então coexistir com elas, o que difere da situação em que imagens parecem ser de uma morte presente que não finda e que não pode ser relegada ao passado. Pois estávamos lá quando a imagem foi captada, e sabemos que, como somos seu assunto, o mais provável é que não estejamos mais vivos.
Olhando bem os cartões-postais mutilados de Joreige e Hadjithomas surge uma horda de outras imagens que também são desse lugar. Imagens de atrizes, cantoras e modelos lindas, sedutoras e frívolas. Cada vez mais, essas imagens parecem emanar de uma época que não é a época da jornada de trabalho, de afazeres domésticos ou de ver um filho crescer, enquanto se está lentamente desmoronando de fatiga. Essas imagens são indelevelmente aquelas da juventude e, assim, jamais conseguiremos acompanhar seu passo. De suas posições eternas elas examinam nosso cotidiano tedioso e fatigante. De que forma podemos realmente nos lembrar de uma imagem de uma modelo do mundo da moda? Elas não nos examinam do alto de sua eterna juventude e perguntam há quanto tempo estamos nos esfalfando por aqui? A modelo diz que acabou de nascer, e aqui estamos nós lentamente envelhecendo. Isso pode explicar parte da raiva que sentimos quando vemos essas imagens, assim como nossa raiva quando vemos artistas de meia-idade lutando para parecer jovens novamente. Essas imagens, embora variadas e abundantes, não podem nos ajudar a reivindicar nosso presente. Pois há imagens, emblemas herméticos como a guerra civil, que mantêm nosso presente como refém e o enquadram. De certa forma, essa nossa situação é similar àquela do prisioneiro iraquiano que saiu do confinamento trinta anos depois perguntando se o líder Abdel Karim Kasem ainda governava o Iraque.
ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "14º Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 111 a 119, São Paulo, SP, 2003.