Ensaio Daniela Bousso, 03/2009
Desvios
A obra de Caetano Dias emergiu no contexto dos anos 1990 e pode ser analisada a partir de um prisma sociopolítico, levando-se em conta o Brasil das duas últimas décadas. A ótica deste artista é parâmetro de entendimento da constante tensão entre mecanismos de poder e técnicas de resistência, e tem no centro de sua poética o corpo.
A complexidade na obra de Dias resulta de uma produção feita a partir de operações com diferentes meios, que vêm da escultura e da pintura propriamente ditas, passam por ações e intervenções na escala urbana, e desembocam na fotografia, no vídeo e no filme, além das ações e das intervenções na rede internet que geram sites e obras interativas.
O leque de questões propostas por Dias é abrangente, pois implica a criação de diferentes patamares metafóricos: a discussão da sexualidade, o deslocamento do estatuto da religiosidade, a presença de aspectos míticos e de fabulações. Caetano se coloca, ainda, muitas vezes, na posição de voyeur. A exaltação da sensualidade do espectador nas experiências relacionais, por último, configura o amplo conjunto de ações e desdobramentos que fazem do corpo o protagonista significante capaz de gerar metáforas em sua obra.
Ao recriar o precário e ao lançar um olhar sobre o barroco, Dias promove interações humanas inseridas no contexto urbano de Salvador e discute a condição homossexual a partir de um patamar metafórico. E o faz por meio de uma estética homoerótica, mesclada a um forte sentimento de religiosidade. Um exemplo é a série Bestiário digital: a retirada das imagens da internet, que patinam em um possível limbo, pode ocorrer por assepsia e pela elevação do pornô ao sacro.
É no campo das intervenções urbanas, seja no espaço real ou no espaço cibernético, que podemos alocar a produção deste artista, que pesquisa diferentes modos de existência e diferentes modelos de ação no interior de uma realidade. A escala escolhida por Dias é a da recriação de sentidos e novas subjetividades a partir de uma estética que conjuga perfis simultâneos que interagem.
Pelas características da época em que vive, Caetano não enfrenta problemas em relação ao uso de um determinado meio na arte. Ao contrário, vale-se da convergência e da coexistência dos meios para retirar deles o sujeito e o objeto do seu universo.
Assim, quando o artista transfere as suas apropriações do plano analógico para o plano digital, virtual, globalizado, produz as séries Santos populares, Sobre a Virgem e Corpus Christi. Cada uma delas tem gerado inúmeras outras, dentro das próprias séries, e resultam em fotos, instalações, sites, performances e vídeos.
Na obra de Caetano, o interesse pela possibilidade de ressignificar o corpo remonta ao início dos anos 1990, quando se apropriava de gravuras confeccionadas pelos artistas viajantes do período colonial brasileiro para retrabalhar o olhar exótico daqueles. Mantendo trânsito constante entre construção e apropriação, Dias é um investigador das possibilidades dos meios e os coloca a serviço de suas reflexões. Utiliza sites de busca na internet para encontrar imagens de repertório erótico e reprocessá-las. Diluindo suas formas e desfocando-as, o artista as devolve à condição de anonimato: ao perder o foco, as imagens perdem a origem; os configuradores de identidade – olhos, nariz, boca, fronte – são alterados para mudar o significado imagético.
Em um segundo momento de seqüência operacional, o artista renomeou essas representações e criou as séries Santos populares e Sobre a Virgem. Promoveu um deslocamento no centro de gravidade do objeto considerado e realizou a mutação de sua identidade. E resgatou o sentido “sacro” da tradição popular. O resgate e a aproximação com a tradição popular não ocorrem em relação à forma. “A minha intenção não é a de virtualizar o real como tecnologia da forma”. Dias caminha no sentido oposto da forma representada na cultura popular. Cria pictorialidades no uso da fotografia, atualizando a representação do corpo: “Faço uso de recursos ‘desrealizantes’ para subtração de parte da matéria... também mesclo imagens da internet com registros fotográficos de lugares que freqüento no meu dia-a-dia”.
A pintura que se desfaz em suas fotos e a perfuração das Santas Bárbaras, para subtração da matéria, configuram atos de violação, de iconoclastia; o mesmo ocorre com o site Corpus Christi – de sentido ambíguo – no qual a imagem se desintegra onde quer que o usuário passe o cursor. T
Todas essas ações de Caetano estruturam um processo de criação que constrói e instrumentaliza a perda de sentido. A criação de uma relação sensório/lúdica, que se estabelece como um jogo e promove interação, contém a percepção visual em sua gênese e propõe um confronto com a realidade. Afinal, as imagens escolhidas são partes significantes de um determinado contexto geográfico ou histórico. Por meio de ações que alteram o conteúdo “sígnico”, simbólico e formal, Dias promove “ressemantizações” que abrangem do espiritual ao estético, a despeito da tecnologização da cultura e da virtualização do uso do corpo no mundo globalizado.
As ações “iconoclastas” criadas por Dias parecem beirar a abjeção, mas as aparências enganam. Os títulos das obras evidenciam seu constante ir-e-vir entre a construção e a desconstrução. Criam antagonismo para desestabilizar um sistema dado a priori. Talvez Caetano não acredite exatamente em uma aproximação com o sacro. A tentativa de redução da carga simbólica sacro/religiosa coloca a imagem em um plano mais humano, aproximando profano e sacro. Nessa intersecção, transparece a tentativa de reduzir a culpa, situada entre o desejo e a proibição. O artista subtrai para neutralizar uma pulsão de morte. Na era cristã, a alusão à negação do corpo revela um desejo de reafirmá-lo. É uma forma de promover uma espécie de utopia do corpo pela não-negação.
A afirmação do corpo passa a ser a proposta de um outro modelo de gestão social, uma vez que ele é o espelho da nossa sociedade. A religiosidade, nesse caso, é aludida, mas não acontece de fato. A elevação do profano ao sacro é simulada, uma quase-sacralização, já que a imagem sempre se desmaterializa: nas santas, nas fotos desfocadas ou no site Corpus Christi.
O site é quase um anti-site, pois não permite o acesso a algumas imagens. Concebido a partir do princípio do mito de Midas – no qual tudo o que era tocado por ele virava ouro –, cada vez que o cursor passa pelas imagens, que representam a Paixão de Cristo, elas se desfazem. Se, em Midas, o ouro pode ser associado à morte, a imagem desfeita pelo cursor também pode associar-se à metáfora da morte, causada pela culpa do desejo.
De um lado, esse campo de abjeção em sua obra pode nos levar à idéia de uma ação predatória, uma vez que “saquear” imagens da internet evidencia o caráter voyeurístico da ação. Mas, de outro lado, a ação erótico-virtual de Caetano Dias ocorre segundo a perspectiva dos cidadãos do terceiro mundo globalizado – em direção oposta ao tipo de abjeção encontrada no universo duchampiano ou no de Cindy Sherman –, nos quais a apropriação e a ressignificação acontecem para desestabilizar os estatutos vigentes da arte e do mercado. O campo de ação de Dias é o universo da tradição e do dia-a-dia baianos no contexto do mundo global.
Com essas ações, Caetano indaga sobre a possibilidade de se simular o prazer absoluto, por meio da “erogeneização” da imagem na internet. Investiga também a idolatria do corpo morto e nu, assim como a culpa, simulada no catolicismo com a ingestão do corpo do Cristo. Ao ironizar a idéia de que a representação iconográfica de Cristo é feita “à imagem e semelhança de Deus”, acirra o conflito entre culpa e desejo por intermédio da apropriação.
A virada do milênio traz uma outra mudança na obra deste artista que passou, a partir de então, a buscar mais e mais a participação do espectador. De 2001 em diante, Caetano introduz o viés relacional em sua obra. E propõe um outro trabalho para tentar, mais uma vez, desestabilizar a noção de corpo na cultura cristã: o Re-ligar.
Migrando do universo da cultura judaico-cristã para o universo da cultura oriental, o artista observa que, no Kama Sutra, o sexo origina-se de uma cultura mais permissiva, na qual flui a alteridade nas relações. Re-ligar propõe uma nova forma de interação ou reconciliação com o corpo, daí o aspecto quase místico do vídeo Re-ligar. Nas fotos, aparecem pessoas comuns sendo “re-ligadas” ao cotidiano por meio de ventosas.
Como no site Paixão de Cristo, o trabalho só se torna real caso interaja com o público, propondo, assim, uma mudança nas relações entre as pessoas. Nas ventosas, destituídas de sacralidade e sem componentes eróticos, a ligação entre as pessoas é realizada a partir de um marco zero. Retiradas da milenar medicina chinesa, as ventosas têm a função de drenar, purificar e liberar o fluxo de energia entre os fluidos do corpo, daí a metáfora da fluência entre pessoas. Re-ligar revela novamente a idéia de resistência, no sentido de desmascarar relações de poder para “reestabelecer” uma nova ordem entre o corpo e o seu imaginário.
Esse espaço de relações humanas e de elaboração coletiva dos sentidos, que instaura diálogos em simultaneidade com os aspectos religiosos, míticos e com o das fabulações, cria o interstício que favorece e amplia certas zonas de comunicação e, ao mesmo tempo, problematiza a esfera social a que Dias se refere.
O embate antes presente entre o virtual e o real no site Corpus Christi é alçado ao plano da materialidade com a efetivação do corpo tridimensional para ser consumido a partir da metáfora da antropofagia presente na obra Cristo de rapadura – Cristo em tamanho natural feito a partir do molde do corpo de um homem negro, disponibilizado ao público para deglutição.
A representação do Cristo morto evoca o sublime já enunciado em Bataille, onde erotismo e morte se confundem. Aqui, o artista deixa vazar o tênue limite entre a erótica e o sacrifício, propagados pelo cristianismo. Água benta geladinha, por sua vez, é uma instalação composta por geladeira de bar, copos descartáveis e água, que convida o público a beber um líquido “sacro”. A ingestão da água torna (supostamente) o público participante passível de uma espécie de “purificação” ou “batismo” coletivo e, mais uma vez, o artista coloca o espectador diante de um experimento jocoso e irônico.
Canto doce 01, 02 e 03 é uma série constituída de instalação (01), de seqüência fotográfica (02) a partir da construção de um muro de açúcar que interdita uma rua em Salvador, e (03) da construção de um pequeno labirinto, com a participação do público, na estação ferroviária da Calçada em Salvador. As três ações da série geraram um processo de construção e deglutição das obras, caracterizando a evanescência e o efêmero. Como contraponto à estética da desaparição, agora se apresentam sob a forma de registro em foto e vídeo.
Já em Doce amargo, a cópia de um corpo masculino simula um indigente. Dias criou uma escultura sólida, fundida em açúcar, para ser depositada em espaços públicos como terrenos baldios, matas, praças ou lugares de passagem. Cada vez que a peça é exposta, a ação do público que se depara com a mesma deve ser filmada, como registro das diversas reações que podem decorrer do contato com a obra.
Santa preta de duas cabeças – fala que te escuto 2006 é uma intervenção urbana constituída de uma imagem sacra de uso popular retirada de seu contexto – comércio de ícones religiosos – modificada e re-inserida em seu lugar de origem. A imagem anômala, quando presente num lugar que não é mais o seu, cria um incômodo entre os transeuntes. Na feira livre, os transeuntes trocam olhares, ansiosos por entender o ícone bicéfalo, um ruído na iconografia sacra. Caetano Dias chama a atenção para a dinâmica religiosa como processo cultural. De certa forma, a mutação imposta ao ícone é, também, uma alusão às alterações dos organismos vivos, uma transgenia sagrada que fala da manipulação da vida.
Em Respire (Eternit), o artista discute a permanência das fantasias do mundo infantil escondidas no inconsciente dos adultos. Nesta videoprojeção, uma pessoa dorme dentro de um tanque Eternit cheio de água. O áudio reforça a idéia da água enchendo o tanque e sendo movimentada pelo personagem. Os temas recorrentes de subordinação do consciente às imperativas fantasias infantis e o afloramento de símbolos e imagens inconscientes são tratados aqui de forma mais contundente. O não poder acordar ou a sujeição a um estado de encantamento do qual não se pode sair torna-se agônico.
O sótão escuro onde se guardam os medos e os desejos, coisas velhas, sem uso, coisas do passado são cenários desse sonho. O vídeo fala do resgate da infância, onde o medo, a curiosidade e a fantasia acordam o encantamento. Esta obra também depende de interação com o público, que aciona um dispositivo que pode impedir ou facilitar a respiração do personagem. Mar de dentro apresenta uma série de objetos escultóricos construídos com os mesmos materiais das favelas. Estes objetos não chegam a ser casas ou abrigos por sua condição de impenetrabilidade. São projéteis, são bólidos irregulares para rolarem sem rumo, realizados para serem acionados por moradores de uma favela de Salvador. São não-esculturas, sem lugar e sem rumo, que rolam morro abaixo a partir da ação coletiva.
Os atos criados por Dias não podem ser dimensionados a partir de uma unidade de medida. Sim, pois os seus atos relacionais visam apenas a criação de intersubjetividades, de espaços fluidos e móveis no interior do sujeito, e por vários instantes eles beiram a iconoclastia.
No ato de compartilhamento proposto nestas obras, o artista comissiona o diálogo, põe em prática a relação entre sujeitos e altera as formas de recepção da arte, essência da sua prática artística. A expansão do fim primeiro da obra e seu suposto destino (a instituição, a galeria, o mercado, a coleção privada) é constantemente realizada por Dias, o qual, em última instância e por vias indiretas, também coloca em xeque o valor de troca promovido pela obra. A troca aqui é feita de transitividades abstratas, que transcendem a noção de estilo, temática ou iconográfica.
A esfera das perspectivas inter-humanas que pretendem re-ligar indivíduos e criar espaços de comunicação entre eles, escapa ao imediatismo pragmático da lógica do consumo. O artista constrói agenciamentos, relações possíveis entre unidades distintas, alianças entre diferentes parceiros; ainda nos vídeos Uma e O mundo de Janiele – uma das mais delicadas obras produzidas pela arte contemporânea atual –, o que o artista busca são situações sociais mais justas, modos de vida mais densos na construção de espaços complexos de subjetivação.
Entende-se com facilidade, então, que a fotografia, o filme e o vídeo sejam os meios predominantes. São mídias que se prestam perfeitamente à formalização das suas ações, intervenções e experiências sensoriais, onde a idéia de transformação é um veículo que favorece a alteridade, porque o que Dias visa é um tipo de comunicação expandida que alcança o coletivo no interior do seu cotidiano. Os deslocamentos que promove são, sim, de ordem conceitual, no interior da linguagem, e não desprezam o conteúdo estético da obra.
Se os seus experimentos se insurgem contra uma situação de consumo e de massificação, nem assim eles se apresentam em detrimento do objeto artístico. Eles tomam a linguagem como parte integrante da proposta, têm forte carga semiótica e são veículos que conduzem ao “outro”. Para Caetano Dias inexiste a cisão entre objeto e ação, um é parte integrante do outro. Assim, enquanto a experiência sensória vem da intervenção, a fruição estética propriamente dita vem da obra materializada.
Vídeos, filmes e fotos, como a série Coleção de cabeças, por exemplo, traduzem a materialização do efêmero. A série, apresentada sob a forma de fotoinstalação, foi confeccionada a partir de esculturas em açúcar. O espaço-tempo em que estas obras são produzidas, em sua versão fotográfica, então, muda. Muda a nossa noção de realidade, o nosso senso dialético. Os registros das suas ações, estendidos à Coleção de cabeças, quando chegam a nós, são a única fenda para o vislumbre de uma “duração” que dialetiza com a estética do desmanche e da desaparição enunciada durante as intervenções. Quando olhamos para as fotos das cabeças, por acaso nos lembramos das suas vidas anteriores enquanto esculturas? Neste sentido transparece o contraponto a uma estética de desmanche, de apagamento, onde a discussão do efêmero tangencia a idéia de morte e desaparecimento como presença.
Pelas vias do registro foto/vídeo/filme, é como se Dias enfrentasse a morte, a tradição barroca e sua carga religiosa. É uma espécie de militância do desejo explicitamente oposta a qualquer noção de tradição, sem, contudo, afirmar a ruptura. É aí que o artista desdobra seus corpos em metacorpos e formula a enunciação de um corpo erótico e de um corpo social. É, também, uma forma de sobrevivência em condição fronteiriça, sempre em suspensão. No fio da navalha, Dias resiste e promove o enfrentamento do desafio da vida, na seara da visceralidade, dos grupos malditos, das minorias sociais e raciais, dos desvios.
Entrevista 03/2009
Seus vídeos estão ambientados, na maioria das vezes, na periferia de Salvador. Por que a predileção por essa região?
Eu venho do interior da Bahia, onde as condições de vida são muito difíceis. Via toda aquela adversidade de muito perto. Nas viagens que fazia com meu pai ou meus tios, via pessoas vivendo em extrema pobreza e não conseguia deixar de me sentir afetado por aquela realidade, que comparava à minha própria. Realidade de pessoas que eu via nos limites da vida no interior do meu estado. Tudo isso me marcou muito. Acho que me tornei um voyeur do estado das coisas e acredito que isso terminou se refletindo na minha poética. Não que eu pense em fazer um trabalho sobre a periferia ou a pobreza, mas termino sempre, de alguma forma, recorrendo, de forma direta ou indireta, a essas questões. O foco principal no meu trabalho não é a pobreza ou a periferia, mas o homem e suas questões: identidade, sexualidade, corpo, religiosidade. Como tive uma infância muito lúdica, apesar do meu aguçado espírito crítico, sempre via tudo com um certo encantamento, mesmo que fosse algo muito cruel. E é claro que o que vi e vivi não poderia deixar de estar presente no que penso e faço.
O corpo, a religiosidade, a negritude e a doçura – simbolizada pelo açúcar – são presenças constantes na sua criação. O que esses elementos têm de especial para você e como eles se conectam com suas preocupações, inquietações e ambições artísticas?
Como disse, o que vivi nas cidades onde morei ficou marcado, desde as coisas mais abstratas. Lembro-me da visão de enormes galpões em Lapão, onde ficavam depositadas as colheitas de milho. Eu subia no fardo mais alto para olhar aquele mar amarelo de milho, ou o mar de algodão, em que eu mergulhava de cabeça. Eram muito prazerosos os mergulhos nos silos, lagos e rios da infância, trago sempre comigo essas memórias. Nesse fato talvez estejam presentes o corpo e a idéia de imersão dos trabalhos atuais.
Sempre fui uma pessoa reservada, tímida; sempre gostei mais de ouvir, ver, observar as pessoas como alguém que coleciona imagens, sons e cheiros, me inebriando com as semelhanças e as diferenças entre as situações e os tipos humanos, seu comportamento, costumes, os diferentes mundos que constituem a nossa diversidade baiana, brasileira. Minha visão sempre foi muito crítica. Sempre questionei a nossa estrutura social e continuo tentando enxergar a realidade humana dos negros, mulheres, gays, crianças de rua, as minorias muitas vezes jogadas à margem da sociedade. Minha formação familiar católica era forte, mas eu sempre olhei de forma muito crítica o universo religioso, principalmente a concepção cristã de corpo; sempre achei estranhíssima, antagônica em relação à vida real. O ideal de corpo proibido apresentado pela religião se confrontava com a minha própria vivência de corpo, que era lúdica e repleta de imersões na natureza.
Nos meus trabalhos o corpo é colocado nos seus limites, como nas imagens pornográficas desfocadas que são transpostas para a dimensão do sacro, promovendo um cruzamento, uma contaminação entre as coisas de Deus e as coisas do homem, tentando devolver ao homem a criação do criador, em que produzimos todo um universo simbólico a fim de justificar a nossa existência. As fronteiras do corpo e do indivíduo, as fronteiras que separam e/ou unem pessoas são capazes de ampliar ou restringir a possibilidade de existir, de estar no mundo, suficientemente forte para determinar como cada indivíduo pode projetar o seu horizonte na vida.
Nesse caso, as pessoas ou situações que aparecem nos meus trabalhos tentam discutir como estar em um mundo tão adverso, porém tento mostrar tudo isso com um pouco de doçura. Como em O mundo de Janiele ou em Canto doce pequeno labirinto, trabalhos que abordam essa vida periférica, essa vida como ela é, citando Nelson Rodrigues. Janiele é uma garota de nove anos de idade que desenha e descobre o seu horizonte enquanto brinca docemente com um bambolê na laje de sua casa. Em Canto doce pequeno labirinto, é colocada no caminho dos passageiros de uma estação ferroviária suburbana uma construção de açúcar que pode remeter ao mundo das fábulas, como nas histórias dos irmãos Grimm ou até mesmo à história do açúcar no Brasil, que deixou uma mácula ainda sentida nos dias atuais. A Bahia tem a maior população negra fora da África, e os negros na Bahia sentem ainda a sombra pesada da exclusão.
Em seus trabalhos há também lirismo e o resgate de aspectos cândidos da natureza humana: em Canto doce, as pessoas se divertem em torno de muros de açúcar; em Zilomag, adultos brincam como crianças para ver rolar um objeto de madeira e cimento ladeira abaixo. Esse é um dos objetivos da sua obra, relembrar o ser humano de sua condição sensível, conectá-lo ao outro, possibilitar que se maravilhe?
Sem dúvida, interesso-me por questões relacionadas ao corpo, à identidade e, também, a aspectos sociais. Claro que sempre termina acontecendo algo terno, mesmo quando abordo coisas difíceis, como na solidão da mulher que curte seu desamparo sob o sol inclemente de um dia de verão. Mas aí existe todo um ambiente lúdico ao redor: a água do mar, a luz do sol brilham, as crianças se divertem, os casais namoram, é uma tarde de domingo, é a vida, é o doce e o amargo da vida. Nos meus trabalhos, estou sempre buscando algo que não seja apenas poético, mas que tenha a possibilidade de tocar, causar encantamento, e problematizar, quer como superação ou transcendência.
Problematizar a vida através da ação artística tem ocorrido com mais freqüência nos meus trabalhos. Em Zilomag, a idéia era criar um paralelo entre a história coletiva das pessoas que vivem nas favelas e o mito de Sísifo. As pessoas que estão nas favelas quase sempre constroem suas casas com restos descartados pela cidade. Muitas vezes essas casas desabam durante as tempestades de inverno, são reconstruídas, arrastadas novamente nas enxurradas de verão, refeitas de novo; entre o desespero e o bom humor, essas pessoas refazem suas vidas na maciota. Isso faz lembrar o mito de Sísifo, que empurra sua sina ladeira acima todos os dias da vida. Daí construí uma peça que está entre a pedra de Sísifo e a realidade das pessoas. A função daquele objeto, também feito com restos de demolição, era fazer com que as pessoas brincassem com a sua própria realidade, histórica, que traz uma tradição de trabalho coletivo em que cantam animadamente – como na pesca de xaréu, onde, ritmadamente, puxam a rede das madrugadas no litoral da Bahia, ou no corte da cana-de-açúcar, ou no pisar o barro para a construção de casas de sopapo ou, hoje, quando batem a laje nos finais de semana.
Em Zilomag, as pessoas empurram ladeira acima e deixam rolar ladeira abaixo, para depois reiniciarem toda a brincadeira. Em Canto doce pequeno labirinto, construí desejo e ternura no caminho das pessoas, um desvio doce, um labirinto para que o público se perdesse no doce, um muro que poderia unir todos em torno de suas fábulas pessoais e coletivas, um desatino poético para a vida e um pouco de fantasia na vida urbana.
Em Uma, você registra um casal que namora no mar sem que eles notem. Como aconteceu essa filmagem?
Em 2005, eu estava repondo uma aula do curso Processos Contemporâneos no MAM da Bahia, após retornar de uma exposição no Ludwig Museum, na Alemanha. Era um domingo e as oficinas do MAM não abriam. Optamos por fazer a aula em Guarajuba, e eu estava com uma câmera que tinha acabado de comprar. Enquanto dava a aula, manipulava a câmera. De repente me deparei com um garoto que brincava de empinar pipa. Em segundo plano, um casal dentro d’água namorava; o garoto saiu de cena e continuei gravando o casal, distraidamente, enquanto conversava com os alunos. Aos poucos fui percebendo que tinha ali um plano-seqüência muito interessante. Acompanhei o casal na água, depois saindo em direção à areia. E ela ficando solitária na areia. O seu absoluto desamparo, a sua sujeição ao outro e a si mesma, o seu aparente desabar. A câmera estava em zoom total, por isso tão instável. A distância entre o ponto em que eu estava e o lugar onde se encontrava o casal era grande, e a praia estava lotada. Foi uma sorte garimpar esse registro em meio a tanta gente.
Normalmente sou muito cauteloso ao mostrar os meus trabalhos. Nesse caso, mais ainda: só veiculo em museus ou galerias, que têm um público mais restrito. Apesar de o casal ter feito sexo em lugar público, sexo para todos verem, ouvirem e gravarem em uma praia completamente lotada, ainda assim fiquei com todos os dilemas éticos possíveis. Pensei em desistir do projeto, mas não podia, o trabalho era muito forte, falava de paixão, de encontro que vira desamparo, de gozo e dor, da solidão que persiste em todos nós, sem importar nem onde nem com quem estejamos, não importa a profundidade desse oceano, a incompletude de profundidade está aí, está em Uma. Uma tarde, uma situação, uma transa, uma traição, uma fábula de amor, uma esperança.
Em que projetos está trabalhando agora e quando – e onde – eles poderão ser vistos?
Neste momento tenho vários projetos, alguns já concluídos, outros em fase de conclusão, além dos que estou iniciando. O vídeo Tempo mostra uma paisagem e o transcorrer de uma tarde fria em São Paulo, como em uma pintura naturalista.
Istmo, um curta-metragem realizado em Salvador, apresenta três personagens que passam pelos mesmos lugares e só se encontram no desfecho, trágico. Em Istmo, tento falar do universo masculino, através de um marginal, um mandante apaixonado e um açougueiro. O cenário é uma estação de transbordo de coletivos e suas extensões.
Lago é uma videoinstalação interativa, feita a partir da filmagem do Lago das Carpas, no Parque Estadual da Serra da Cantareira, em São Paulo. A imagem se aproxima muito da fotografia de um lago paradisíaco, os únicos movimentos são os da própria natureza, como a ação do vento, o vôo dos pássaros ou alguns peixes que vão até a superfície da água. Sobre todas essas ações naturais, acrescenta-se a ação do público, que poderá interagir com a obra. Como em um lugar para a contemplação da natureza, onde o público poderá escrever formas na superfície do lago.
Em Mar de dentro, trabalho com uma espacialidade que gera um mergulho ou uma vontade de quase tocar, ou mesmo provar, esse pequeno mundinho em suspensão, como algo que nos traz memórias/imagens atemporais.
Duna é um trabalho interativo que tem como cenário as dunas do litoral norte da Bahia, onde o corpo de uma mulher aparece eventualmente sobre a areia, numa espécie de marcação de espaço/tempo que faz lembrar um passar da vida constante e vertiginoso.
Erro é um projeto de videodança que trabalha apenas com os erros da câmera ou dos dançarinos, que, nus, realizam uma performance nas dunas da praia de Diogo, na Bahia.
Em 503 – Diário de viagem, o que aparece é um cotidiano simulado, em que as relações transcorrem entre um eu e a solidão. Em um suposto mergulho nos encontros virtuais nos sites de relacionamentos, onde essa solidão é mediada pela presença de personagens de filmes e seriados de TV gravados durante as horas de descanso na intimidade do apartamento 503 de um hotel em São Paulo.
Alguns desses trabalhos foram realizados e outros finalizados na residência realizada no Lab do Museu da Imagem e do Som (MIS) em São Paulo, entre agosto e dezembro do ano passado. Também tenho confirmadas algumas exposições para este ano: uma individual no Museu de Arte Contemporânea – Centro Dragão do Mar, em Fortaleza, uma no MIS-SP, e uma na Paulo Darzé Galeria de Arte, em Salvador. Para 2010 tenho confirmada uma individual no Museu de Arte Moderna da Bahia. Também nesse período vou realizar duas residências: uma pelo Videobrasil, na França, e outra em Barcelona, pelo MIS de São Paulo.
Biografia comentada 03/2009
O trabalho com metais, iniciado aos doze anos como aprendiz de ourives e relojoeiro, foi o trampolim de onde Caetano Dias mergulharia, após quase duas décadas, no mundo da arte. Aos 29 anos, o artista nascido na pequena vila de Bonfim da Feira, município de Feira de Santana, largou tudo – o emprego como designer em uma empresa de Camaçari e o curso de letras na Universidade Católica do Salvador ¬– para viver exclusivamente de suas criações.
A porta de entrada para essa nova vida apareceu em 1988, quando Dias ingressou no grupo de intervenção urbana Interferência, do qual também faziam parte os artistas Donizete Lima, Mazzola, Paulo Portela, Ademir Tuy e Carlos Rodrigues. A atividade chegou ao fim “depois de três ou quatro anos”, como conta o autor baiano, e os grafites que ele assinava nos espaços públicos da capital baiana deram lugar a experimentações pessoais, notadamente centradas na questão do corpo e da religiosidade, e que começaram a se estender aos campos da pintura e da fotografia.
“É bom explicar que produzir arte naquele momento em Salvador era algo extremamente difícil. Informações sobre o que se produzia no mundo na época não chegavam por aqui. Como eu não tinha formação na área, tive que construir todo o meu processo como autodidata, principalmente na troca de informações e na construção de um saber comum entre o grupo Interferência e com outros amigos, que fui conhecendo desde aquele momento da virada. E não importava o que acontecesse, eu estava certo do que queria: arte”, explica Dias.
A partir de 2000, seu leque de suportes e linguagens se amplia, e Dias passa a realizar também esculturas, vídeos e instalações. Algumas dessas obras foram expostas em mostras como Estratégias para a perda de sentido, vista no Paço das Artes e na Marilia Razuk Galeria de Arte, em São Paulo, no Museu de Arte Moderna da Bahia e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 2002 e 2003. Suas criações também percorreram encontros como o 1º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo (2006) e a exposição Paisagens (2008), realizada no museu Reina Sofía, em Madri.
Mais recentemente, os trabalhos do artista vêm tocando diretamente em realidades sociais que lhe são bastante conhecidas: a vida nos rincões pobres da Bahia, os pequenos universos particulares do cidadão comum, em seu trânsito constante entre a dureza e o lirismo do cotidiano. Um exemplo é Canto doce pequeno labirinto (2006), estrutura feita com açúcar fundido e instalada na estação ferroviária da Calçada em Salvador. Com o registro da obra, Dias participou do 16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil (2007), de onde saiu premiado pelo Programa Videobrasil de Residências.
Também em Zilomag (2006), o entorno urbano é não só cenário, mas também matéria-prima para sua criação. Com restos de materiais de construção, o autor produziu coletivamente, com o auxílio de moradores da periferia da capital baiana, um bloco maciço de cimento e madeira. O objeto, lúdico, tornou-se, ao mesmo tempo, símbolo do modo de vida de seus construtores. “A função (...) era levar uma obra que espelhasse a realidade do lugar e fazer com que as pessoas brincassem com a sua própria realidade”, explica o artista.
O acaso é outro elemento que nunca está fora de foco nas fábulas da vida real arquitetadas por Dias. Em Uma (2005), o flagrante acidental de um casal fazendo sexo na praia durante um domingo de sol se transformou, na lente do autor, em um registro de sensações e experiências de sonho, desilusão, espera e esperança. “As pessoas ou situações que aparecem nos meus trabalhos tentam discutir como estar em um mundo tão adverso, porém tento mostrar tudo isso com um pouco de doçura.”
As obras de Dias integram acervos de instituições como o Banco Interamericano de Desenvolvimento, em Brasília, a Casa de las Américas, em Cuba, os museus de arte moderna da Bahia e do Rio de Janeiro, o Museu Afro Brasil, em São Paulo, e o Museu Berardo, de Lisboa, entre outros. “Eu venho do interior da Bahia, onde as condições de vida são muito difíceis. Sempre vi toda aquela adversidade de muito perto”, diz o artista. “Acho que me tornei um voyeur do estado das coisas e acredito que isso terminou se refletindo na minha poética.”
Referências bibliográficas 03/2009
Com a Paulo Darzé Galeria de Arte, que representa Dias na Bahia, o artista teve seu trabalho exposto na Arco – Feira Internacional de Arte Contemporânea, em Madri, em 2008. Neste ano, tem confirmada nova individual no espaço soteropolitano.
Na rede
O Muvi - Museu Virtual de Artes Plásticas, banco de dados que tem por objetivos mapear, pesquisar e divulgar a produção contemporânea, oferece ao internauta um verbete sobre a biografia e a trajetória artística de Caetano Dias.